sexta-feira, 22 de abril de 2022

Contribuições Para um Pensar Decolonial nos Estudos Espiritas

 



Por Lídia Pimentel


Lidia Valesca Pimentel[1]

 

Esse artigo nasceu de uma inquietação epistemológica acerca das bases da modernidade, de sua visão eurocêntrica de homem e a influencia do colonialismo no movimento espirita, desde Kardec até os dias atuais. O uso de termos como “selvagem”, “primitivo”, “superior” em vários textos Espiritas e as várias alegações de elementos racistas tem vindo à baila.   

Vivemos em um momento oportuno para introduzir uma reflexão decolonial, em meio a mudanças no movimento espirita brasileiro, com o aparecimento de coletivos progressistas trazendo a leitura critica de obras e autores esquecidos, numa dinâmica dialógica com a ciências sociais e a filosofia e os seus posicionamentos frente aos acontecimentos da atualidade.  

Para compreender a importância do pensamento decolonial é necessário, inicialmente, compreender o que significou o pensamento colonial e depois a “virada de chave”, originada, ainda no século XX, com a crise de paradigmas da modernidade e a irrupção de um pensamento decolonial, crítico do colonialismo. 

O pensamento colonial apareceu na modernidade não somente como a expansão territorial dos estados europeus, com a crise do capital, na segunda metade no sec. XIX. Se constituiu como forma ideológica de entendimento de homem como ser universal, a imagem e semelhança do europeu, com padrão de civilidade típicos da cultura ocidental, legitimados a partir de conceitos evolucionistas, em escalas de evolução social e moral, elaboradas pelos próprios colonizadores.

Os avanços da biologia com as pesquisas de Charles Darwin, com grande projeção de sua obra “A Origem das espécies em 1859”, influenciou o pensamento positivista em sua visão de sociedade, os colonizadores modernos criaram um discurso sobre O outro colonizado como inferior, legitimando a exploração, como ideia de progresso e “de missão civilizatória”. Desse modo, podemos dizer que a colonialidade não é uma questão apenas da administração das colônias, mas uma epistemologia que influenciou as ciências humanas e a filosofia, tanto no plano teórico como metodológico. 

Foi assim que o positivismo deu suporte ideológico para que essas sociedades fossem consideradas primitivas e seus povos inferiorizados, numa escala onde o Europeu foi considerado moralmente superior, excluindo o conhecimento das tradições não ocidentais, como diz Walter Mignolo:    

“Colonialidade” equivale a uma “matriz ou padrão colonial de poder”, o qual ou a qual é um complexo de relações que se esconde detrás da retórica da modernidade (o relato da salvação, progresso e felicidade) que justifica a violência da colonialidade. E descolonialidade é a resposta necessária tanto às falácias e ficções das promessas de progresso e desenvolvimento que a modernidade contempla, como à violência da colonialidade. (MIGNOLO, 2017 p. 13)

 

A agenda colonial produz a descredibilidade de inúmeras formas de existência e de saber, como também produz a morte, seja ela física, através do extermínio, ou simbólica, através do desvio existencial (SIMAS e RUFINO, 2018 ) Nasce de um discurso sobre o outro com subalterno e inferior. Isso não dá para aceitar!    

O pensamento pós colonial é uma tendencia epistemológica nas ciências sociais desde a emancipação das coloniais africanas que propõe uma reflexão crítica das epistemologias modernas, que propuseram uma racionalidade ocidental, como modelo hegemônico de cultura e razão.  Como diz Santos (2014) Uma “epistemologia do sul”. Um modo de pensar que leva em consideração os saberes locais, numa metáfora do sul não como espaço geográfico, mas como modelo contra hegemônico do pensamento norte global.  Aceitação de outras cosmovisões, como modelos intuitivos de pensar, representar e viver no mundo, como as dos indígenas brasileiros, a de tribos africanas, os povos da índia entre tantos outros na vastidão de manifestação da cultura humana.   

Alan Kardec, assim como outros pensadores espiritas do seu tempo, são herdeiros de uma filosofia moderna colonial e não teria como ser diferente, dado o seu contexto.  O modelo de ciência no tempo de Kardec tentava emancipar-se do tradicionalismo e dogmatismo medieval e seus valores arcaicos. O Espiritismo de Kardec, no plano filosófico, recebeu influência do iluminismo e sua visão de racionalidade universal. Numa perspectiva cientifica, foi influenciada pelas ciências naturais e os nascentes estudos sobre a psiquismo humano.

No entanto, podemos afirmar que Alan Kardec ultrapassou a ciência do seu tempo, trazendo o “paradigma do espirito” e uma crítica as ciências a quem chamou de materialistas, por reduzir o conhecimento apenas ao que pode ser validado a partir de experimentos comprovados materialmente. O pensamento espirita vai costurar elementos complexos advindos das respostas dos Espíritos, em sua maioria cristãos, com a interpretação de Kardec e seu próprio entendimento, numa perspectiva dialógica entre os conhecimentos de seu tempo e os valores de uma ética universal dada pelos espíritos.   

A diferenças entre os povos para os franceses era chamada de civilizacion, como o conjunto dos aspectos da vida material e cultural de um grupo social em qualquer estágio de seu desenvolvimento.  Para os Espíritos em resposta a Kardec

A civilização tem os seus graus, como todas as coisas. Uma civilização incompleta é um estado de transição que engendra males especiais, desconhecidos no estado primitivo, mas nem por isso deixa de constituir um progresso natural, necessário, que leva consigo mesmo o remédio para aqueles males. A medida que a civilização se aperfeiçoa, vai fazendo cessar alguns dos males que engendrou, e esses males desaparecerão com o progresso moral. (O livro dos Espiritos questão 793)

 

Os termos primitivo, bem como, selvagem, inferior ao se referir aos povos “não civilizados” ou de uma civilidade “incompleta” está alçada numa visão de moral. Seria essa a mesma moral pensada pelo colonizador?

Os Espíritos esclarecem:

Vós a reconhecereis pelo desenvolvimento moral. Acreditais estar muito adiantados por terdes feito grandes descobertas e invenções maravilhosas; porque estais melhor instalados e melhor vestidos que os vossos selvagens; mas só tereis verdadeiramente o direito de vos dizer civilizados quando houveres banido de vossa sociedade os vícios que a desonram e quando passardes a viver como irmãos, praticando a caridade cristã. Até esse momento não sereis mais do que povos esclarecidos, só tendo percorrido a primeira fase da civilização.

 

Kardec escreve ainda em uma nota essa questão, enfatizando a dimensão ético-moral:

De dois povos que tenham chegado ao ápice da escala social, só poderá dizer-se o mais civilizado, na verdadeira acepção do termo, aquele em que se encontre menos egoísmo, cupidez e orgulho; em que os costumes sejam mais intelectuais e morais do que materiais; em que a inteligência possa desenvolver-se com mais liberdade; em que exista mais bondade, boa-fé, benevolência e generosidade recíprocas; em que os preconceitos de casta e de nascimento sejam menos enraizados, porque esses pré-juízos são incompatíveis com o verdadeiro amor do próximo; em que as leis não consagrem nenhum privilégio e sejam as mesmas para o último como para o primeiro; em que a justiça se exerça com o mínimo de parcialidade; em que o fraco sempre encontre apoio contra o forte; em que a vida do homem, suas crenças e suas opiniões sejam melhor respeitadas; em que haja menos desgraçados; e, por fim, em que todos os homens de boa vontade estejam sempre seguros de não lhes faltar o necessário

 

Ainda na mesma questão, uma nota de Herculano Pires, tradutor dessa edição:

 Será essa a civilização cristã que o Espiritismo estabelecerá na Terra. Como se vê pelas explicações dos Espíritos e os comentários de Kardec, a civilização incompleta em que vivemos é apenas uma fase de transição entre o mundo pagão da Antiguidade e o mundo cristão do Futuro. Nos costumes, na legislação, na religião, na prática dos cultos religiosos vemos a mistura constante dos elementos do paganismo com os princípios renovadores do Cristianismo. Cabe ao Espiritismo a missão de remover esses elementos pagãos para fazer brilhar o espírito cristão em toda a sua pureza.

 

O que deduzir do significado de “costumes mais intelectuais do que materiais”? Como interpretar os dizeres de Herculano Pires? O que significa remover os elementos do paganismo?  Que elementos são esses? O pensamento de Pires soa flagrantemente colonialista, de uma visão de cristianismo como religião superior. Isso deve ser assim?

Admitir a influência de uma visão colonialista nessa interpretação é fundamental para poder ultrapassá-la. Se considerarmos que a ideia de costume e leis são próprias de cada cultura e tem manifestações históricas próprias, cada civilização teve o seu próprio processo civilizador e não poderíamos classificar como superior ou inferior, mas como participe de seu próprio processo de mudança, rumo a uma ideia de progresso moral intrínseca ao próprio conceito.   Problematizar a ideia de uma escala civilizatória para admitir que o processo civilizatório é  necessário para ultrapassar o orgulho do ocidente, sua noção de desenvolvimento material, para adentrar as noções princípios ético-morais,  como esclareceram os espíritos a Kardec.

As Ciências Sociais, nascente no mesmo tempo de Kardec, nasceu sob os auspicio de uma epistemologia colonialista e com forte influência do darwinismo social. Todavia, as Ciências Sociais realizaram sua própria critica, se abriram para as perspectivas pós coloniais. Assim pode ser os estudos espiritas? Essa é a questão posta, as quais não é mais possível jogar para baixo do tapete, mas encará-la como dilema epistemológico, que só poderá ser resolvido com a superação dogmáticas das obras básicas.

A decolonialidade é como uma chave que pode abrir as portas de uma auto reflexão do movimento espirita e ajudar os seus estudiosos a revisitar criticamente a influência do paradigma racionalista da ciência moderna e do positivismo, método hegemônico na ciência do Sec. XIX, para admitir que o Espiritismo é um conhecimento produzido a partir de fontes europeias, com a influência de espíritos cristãos, com os valores ocidentais sobre homem, Deus e sociedade.  

Se no passado o Espiritismo acompanhou as ciências do seu tempo, nos dias atuais, pode abrir-se aos dilemas do sec. XXI, continuar a produção do saber espirita, iniciada por Kardec, entender as emergências do novo tempo, seguindo os passos que o próprio mestre de Lion ensinou, alinhar a Ciência Espirita ás dinâmicas da própria ciência.

A superação da mentalidade colonial abre as portas do pensamento para o encontro de interculturalidade e para o diálogo interreligioso que rejeita o discurso sobre o outro, valoriza a auto determinação identitária. Proporciona um encontro entre sujeitos, suas diferenças, tendo em vista a diversidade do mundo.

A decolonialidade nos leva a compreensão de uma humanidade ampla, com experiências reencarnatórias plurais, vividas em corpos sociais diversos, com visões de mundo distintos e multiculturais. No plano da mediunidade, admite a importância de outras narrativas de espíritos que viveram realidades não europeias e não cristãs, admitindo como espiritualidade válida na grande rede de interconexão existente. Alcançar uma ideia de universalidade constituída por culturas diferentes, respeitadas em suas manifestações. 

A decolonialidade pode lançar luz as práticas espiritas a partir do pressuposto que a ação e o pensamento perfazem o sentido do fazer espirita conjuntamente.  A ação espirita deve ser manifestada com as bases ética do bem comum, do respeito as diferenças dos povos, da democracia, da tolerância e da cultura de paz entre as nações, sem superioridade econômica e ou cultural, estabelecendo a cooperação mutua. Os povos originários, por exemplo, têm muito a ensinar aos povos ocidentais

Um fazer que propõe uma pedagogia, ao invés de uma evangelização que cria a caricatura do “evangelizando”, depositário de um conhecimento, desconsiderando os aprendizados já existentes e a realidade em que vivem. Sujeitos ativos da aprendizagem, com sua bagagem cultura local e cosmologia própria. Uma pedagogia da autonomia, como ensina Paulo Freire, com os valores da emancipação, da troca de saberes e uma construção partilhada do mundo.

Uma ação fraterna e solidária que supere as práticas assistencialistas que objetifica as pessoas. Percebe o outro não como um “necessitado” ou “assistido”, mas como um sujeito de direitos.  Cidadania ativa, transformadora da sociedade rumo a justiça social e a igualdade entre todos. Uma espiritualidade viva que integre o sentir, o pensar e o fazer com bases éticas do cuidado e do bem comum.    

Por fim, é preciso esclarecer que o pensamento decolonial não nos dá um roteiro pronto para os estudos espiritas, mas aponta para as bases epistemológicas, um jeito de pensar que supere o poder de um conhecimento sobre o outro, supremacia religiosa, filosófica ou cientifica, que possa engendrar como únicos ou verdadeiros.

 

Referencias:

KARDEC, Alan. O livro dos Espiritos. Tradução de José Herculano Pires. Lake: São Paulo, 2013.

MINOLO, Walter D. Colonialidade o lado mais obscuro da modernidade. Revista brasileira de ciências sociais - vol. 32 n° 94 – Tradução de Marco Oliveira. 2017.

SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. As ciências encantadas da macumba. Mórula: Rio de Janeiro, 2018. 

SANTOS, Boaventura de Sousa, MENEZES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Edições Elmedina, Coimbra, 2009.

 

 

 

 



[1] Doutora em Sociologia. Professora Universitária. Espirita, membro do Coletivo Girassois – Espirita pelo Bem Comum.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Política e Coletividade como Caminhos do Progresso



Por: Luiz Gustavo


Reconhecer o pensamento político da doutrina espírita é essencial para o espírita se posicionar e atuar em sociedade de modo coerente com sua crença. Kardec escrevia:


O Espiritismo ..., tocando a todos os ramos da economia social, às quais presta o apoio de suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam. (A Gênese, cap. I, nº 55.)

[Proceder a] uma comunidade de ideias em moral, em política, e sobretudo em religião. Tal será a obra da filosofia nova, o Espiritismo, que vos ensinamos hoje. (Revista Espírita, nov. 1862, “Da origem da linguagem”.)

E Léon Denis nos deixou esta definição clara: “O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência positiva, uma filosofia, uma doutrina social”. (Síntese espiritualista doutrinal e prática, nº 89.)

Infelizmente, muitos adeptos desavisados, ou desviados por orientações alheias aos fundamentos doutrinários, rejeitam pensar a partir do Espiritismo sobre ideias “políticas” ou de “economia social”, que tocam à doutrina, como diz Kardec. Pior, rechaçam com veemência aqueles que as abordam, tachando-os injustamente de “materialistas”... Isso se explica por uma reflexão de séculos. Desde que há injustiça na sociedade, que há “forte” e “fraco” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 781), “exploradores” e “explorados” (Allan Kardec, Viagem espírita em 1862, Discursos, nº III, § 2), isto é, a chama “dialética senhor-escravo”, surge uma mentalidade apropriada aos dominados, como explicava o filósofo Hegel:


O “escravo” [isto é, o dominado] encontra “ideologias escravas” que justificam sua posição, incluindo o estoicismo (na qual ele rejeita a liberdade externa em troca da mental), o ceticismo (na qual ele duvida do valor da liberdade externa) e a consciência infeliz (na qual ele encontra a religião e escapa, só que em outro mundo). Hegel detectava essa relação “senhor-escravo” [dominante-dominado] em diversos lugares – nas guerras entre estados mais fortes e mais fracos, e nos conflitos entre classes sociais e outros grupos. (Paul Kelly et al., O livro da política, cap. “Georg Hegel”, p. 159.)

É fenômeno frequente e antigo na história, como se vê (desde o período helenístico), a criação de discursos conformadores, apassivadores, em religiões e filosofias. Os antigos chineses e indianos aceitavam a dominação dinástica, numa sociedade de castas, valendo-se da religião hindu, reencarnacionista; com ela, procuravam abster-se da “liberdade externa”, social, buscando a “liberdade íntima”, a realização do “Eu interior”. A fuga da atuação social transformadora atingiu parte do pensamento grego antigo, no estoicismo e no cinismo, assim também do romano. Na Idade Média, na Europa, a sociedade feudal criou a mentalidade monástica, praticamente ascética. No século XV, o capitalismo nascente encontrou grande respaldo à dominação no protestantismo, quando as igrejas reformadas transformaram a mensagem cristã em ideologia conservadora, conformadora do trabalhador às novas formas de exploração, tendo em vista a liberdade no “outro mundo”, como diz Hegel.

A “ideologia escrava” assume diversas formas e sempre apresenta caráter fortemente individualista e conservador, pois ela é precisamente a maneira como o dominado se exime da luta por sua liberdade. Luta que, levada a cabo, promoveria o progresso[1]. Assim, as “ideologias escravas”, conservadoras e individualistas que são, sempre se opõem às ideias sociais progressistas.

E entre os espíritas, houve exceção a isso? De maneira alguma. A doutrina espírita em si, como a de Jesus e dos profetas antigos, como ainda a filosofia platônica, é eminentemente progressista, propondo grandes melhorias sociais e claros posicionamentos políticos. Mas a dominação social cria uma mentalidade apassivadora, uma “ideologia escrava” também afeita aos espíritas. E encontrou-se para isso um respaldo no chamado roustainguismo (ou “rustenismo”, como escreve Sérgio Aleixo), de J. B. Roustaing, primeiro cismático espírita, cuja doutrina, diversa daquela trazida por Kardec, fazia aceitar cegamente os ditados mediúnicos e rechaçava a realidade material como imundície. Esse viés ganhou vulto no movimento espírita e serviu para que inúmeros livros mediúnicos, sem controle nem coerência doutrinária, formassem, ao longo de décadas, a mentalidade apassivadora do movimento espírita hegemônico atual: aceitação das verdades reveladas sem exame e rejeição do pensamento social. Isso fez com que se recortassem, das obras espíritas fundantes ou clássicas – de Kardec a Denis, passando por Lachâtre e Mariño –, o que se referisse ao pensamento político ou social espírita[2]. A regra é: nada de política nos meios espíritas. Só iluminação da alma, pelo sentimento e pensamento, no oásis de indiferentismo da chamada “reforma íntima”. A divulgação e o estudo dos assuntos sociais pelos espíritas – consequentemente, sua participação política – foram substituídos por pregações emocionais, enlevadas e motivacionais, características da mentalidade escrava que permeia toda a história e desnatura as doutrinas progressistas. Mensagens de conformação ao sofrimento, de culpabilização, de medo e de consolação fora deste mundo dão o tom para a “moral” do espírita, bem recheadas de estorietas e “casos” romanceados, que supostamente mostram a lei divina chancelando tal comportamento... Os espíritas, portanto, não ficaram imunes à “ideologia escrava” apontada por Hegel.

Porém, Kardec e muitos espíritas pioneiros perspicazes identificavam esse problema já em seu tempo. Vemos uma excelente denúncia desse modo de pensar inócuo, dessa ideologia escrava – que tomava muitos meios religiosos e filosóficos do século XVIII, mas que os espíritas não encampavam ainda –, neste trecho da fala consciente do dirigente do grupo de operários espíritas, Sr. Desqueyroux, publicado por Kardec:


É preciso confessá-lo, há momentos na vida em que a razão poderia talvez nos sustentar, mas há outros em que se tem necessidade de toda a fé que dá o Espiritismo para não sucumbir. Em vão os filósofos nos vêm pregar uma firmeza estoica; enunciar-nos suas pomposas máximas; dizer-nos que o sábio não é abalado por nada, que o homem é feito para se possuir a si mesmo e dominar os acontecimentos da vida; enfadonhas consolações! Longe de abrandar minha dor, vós a acidificais; em todas as vossas palavras, não encontramos senão vazio e secura. (...) Sim, nosso mestre [Allan Kardec]; continua tua augusta missão; continua a nos mostrar essa ciência que vos é ditada pela bondade divina; que faz nossa consolação durante esta vida, e que será o sólido pensamento que nos firmará no momento da morte. Recebe, caro mestre, essas poucas palavras saídas do coração de teus filhos, pois és nosso pai de todos; o pai da classe laboriosa e dos aflitos. (Allan Kardec, Revista Espírita, nov. 1861, “Banquete – Discurso do Sr. Desqueyroux, mecânico, em nome do grupo dos operários”.)

Palestras e oradores espíritas “emocionantes” e preocupados apenas com o íntimo, hoje, cairiam sob a mesma crítica. Em vista do quanto se disse, e criticando os rumos ideológicos conservadores, intimistas e fugitivos da política que têm tomado o movimento espírita hegemônico, o filósofo espírita brasileiro J. Herculano Pires afirma, categórico:


Criaríamos uma ilusão anti-espírita se acreditássemos na possibilidade dessa abstenção política, alvitrada por alguns confrades, em diversas ocasiões. (O sentido da vida, cap. “Sociologia espírita”, p. 78.)

Diante de tal cenário, cabe ao espírita não mais adotar essa atitude frontalmente anti-espírita, não mais acolher essa ilusão, essa ideologia escrava conservadora apartada dos fundamentos doutrinários.

Por exemplo. A preservação ambiental e a suficiência de recursos naturais para suprir a necessidade de todos é tema tratado na doutrina:


Por que a terra não produz sempre bastante para fornecer o necessário ao homem? “É que o homem a negligencia, o ingrato! É, no entanto, uma excelente mãe. Frequentemente também, ele acusa a natureza do que só é o feito de sua imperícia ou de sua imprevidência. A terra produziria sempre o necessário se o homem soubesse se contentar. Se ela não basta a todas as necessidades, é que o homem emprega no supérfluo o que poderia ser dado ao necessário. (...) Em verdade vos digo, não é a natureza que é imprevidente, é o homem que não sabe se regrar.” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 705.)

Eis a resposta à falácia da escassez econômica, que só pode existir em função do desregramento humano.

Também vemos a produção de bens e sua distribuição, numa crítica da organização social, ser tratada nos textos doutrinários:


Os meios de existência fazem frequentemente falta a certos indivíduos, mesmo no meio da abundância que os cerca; a que devem atribuir isso? “Ao egoísmo dos homens, que não fazem sempre o que devem; em seguida, e o mais frequentemente, a eles mesmos.” (...) Para todo mundo há lugar ao sol, mas é com a condição de aí tomar o seu, e não o dos outros. A natureza não poderia ser responsável pelos vícios da organização social e pelas consequências da ambição e do amor-próprio. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 707.)

Sem dúvida, atribuir a Deus, ao “carma” ou à natureza o que é problema da má organização social é próprio da ideologia escrava, que teima em não enxergar na injustiça, na opressão econômica e nos desvios morais tornados sistêmicos a causa imediata, direta e atual da desigualdade, da pobreza e da maior parte das dores do mundo[3]. Como falamos no início, a doutrina expõe abertamente o problema político, econômico, social e moral, permitindo que nos movamos em direção à sua solução coletivamente, como manda a lei do progresso[4]. O mundo há de se regenerar, o reino de Deus há de vir sobre a Terra, mas com a condição de que deixemos a indiferença[5] individualista conservadora e passemos a caminhar como o ser coletivo que somos[6].

Para isso, é imprescindível resgatar a essência progressista da doutrina, a mobilização que ela solicita a todos, de modo a estudar outros tantos problemas de ordem social, econômica e política à sua luz e nos colocarmos em movimento transformador. Passemos adiantes dessas ideologias escravas, imobilizadoras, enfadonhas, apassivadoras, baseadas no rustenismo e contidas nas obras mediúnicas sem exame, e tornemos às fontes sustentadoras da consciência social do Espírito encarnado na Terra, isto é, às obras espíritas fundamentais (Kardec) e filosóficas clássicas (Denis, Mariño, Lachâtre, Herculano Pires, Mariotti, etc.). A fim de que, com resultado de nossas práticas, o mundo seja não apenas regenerado pela nossa ação, mas verdadeiramente regenerador dos Espíritos que nele se encarnem[7].

 

Referências bibliográficas

ALEIXO, Sérgio F. O primado de Kardec: metodologia espírita e cisma rustenista. Rio de Janeiro: ADE-RJ, 2011.

DENIS, Léon. Síntese espiritualista doutrinal e prática (1920). Trad. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos. Limeira, SP: Editora do Conhecimento, 2021.

DENIS, Léon. Socialismo e espiritismo (1924). Trad. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos. Limeira, SP: Editora do Conhecimento, 2018.

KARDEC, Allan. Le Livre des Esprits: philosophie spiritualiste [O Livro dos Espíritos: filosofia espiritualista]. 17.ed. Paris: Didier et Cie., 1869.

KARDEC, Allan. Revue Spirite: journal d’études psychologiques [Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos]. 12 vol. Paris: Bureau Rue Sainte-Anne, 1858 – Société Anonyme, 1869.

KARDEC, Allan. Voyage Spirite en 1862 [Viagem espírita em 1862]. Paris: Ledoyen; Bureu de La Revue Spirite, 1862.

KELLY, Paul [et al]. O livro da política. Trad. Rafael Longo. São Paulo: Globo, 2013.

LACHÂTRE, Maurice. O espiritismo, uma nova filosofia (1880). Trad. Irene Goodjes. Bragança Paulista, SP: Lachâtre, 2014.

MARIÑO, Cosme. Conceito espírita do socialismo (1913). Trad. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos. Limeira, SP: Editora do Conhecimento, 2022.

MARIOTTI, Humberto. O homem e a sociedade numa nova civilização: do materialismo histórico a uma dialética do espírito. Trad. J. L. Ovando. Prefácio de J. Herculano Pires. São Paulo: Edicel, 1967.

PIRES, J. Herculano. O reino. 5.ed. São Paulo: Paideia, 2002.

PIRES, J. Herculano. O sentido da vida. São Paulo: Paideia, 2005.

SANTOS, Luiz Gustavo O dos. O suposto “alerta de Kardec sobre política” e a repulsa à política no movimento espírita. Disponível em: <http://tiny.cc/6ggqu>. Publicado em: 18 mar. 2022. Acesso em: 07 abr. 2022.

 



[1] Entretanto, encontrareis ainda entraves em vossas tentativas para chegar à melhoria social. É que não se chega jamais ao resultado sem que a luta venha afirmar os esforços. (Allan Kardec, Revista Espírita, mar. 1868, Instruções dos Espíritos, “A regeneração”.)

[2] Para maiores desenvolvimentos sobre a repulsa do movimento espírita hegemônico à política e o suposto “alerta” de Kardec sobre política, há um texto meu disponível no link: <http://tiny.cc/6ggquz>.

[3] A desigualdade das condições sociais é uma lei natural? “Não, ela é obra do homem e não de Deus. ... Essa desigualdade desaparecerá juntamente com a predominância do orgulho e do egoísmo.” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 806.)

[4] Em que consiste a missão dos Espíritos encarnados? “Instruir os homens, ajudar em seu avanço; melhorar suas instituições por meios diretos e materiais.” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 573.)

[5] Ó homens! Refleti que depende de vós apressar o reino de Deus sobre a Terra ou afastá-lo; que sois responsáveis uns pelos outros; que, melhorando-vos, trabalhais para a regeneração da humanidade; a tarefa é grande; a responsabilidade pesa sobre cada um, e ninguém pode se recusar. (Allan Kardec, Revista Espírita, dez. 1859, “Comunicações externas”.)

[6] O homem não é um ser isolado, é um ser coletivo. O homem é solidário do homem. É em vão que ele procura o complemento do seu ser, quer dizer, a felicidade em si mesmo ou no que o rodeia isoladamente: ele não pode encontrá-la senão no homem ou na humanidade. Não fazeis, portanto, nada para ser pessoalmente felizes, enquanto a infelicidade de um membro da humanidade, de uma parte de vós mesmos, puder vos afligir. (Allan Kardec, Revista Espírita, nov. 1866, “A solidariedade”.)

[7] Que o princípio da caridade e da fraternidade seja a base das instituições sociais, das relações legais de povo a povo e de homem a homem, e o homem pensará menos em sua pessoa quando vir que outros nele pensaram; ele sofrerá a influência moralizadora do exemplo e do contato. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 917.)

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