terça-feira, 26 de março de 2024

Decolonizar – Descolonizar – Contracolonizar – Ecologia decolonial





 Muito tem-se discutido sobre os temas acima, e gostaria de trazer o pensamento de alguns autores sobre eles. Nós que moramos no hemisfério sul do planeta, estamos refletindo sobre a colonização de nossos países, e seus desdobramentos.  A metrópole pode ser Portugal, Espanha, França, Inglaterra etc tanto faz, pois, a devastação que aconteceu e acontece em nossos territórios são iguais, modificando apenas a intensidade.

Decolonial – É o desligamento das metrópoles, por processo histórico-administrativos das ex-colônias. A “independência de muitos países” conseguindo deixar de ser submisso a sua metrópole, realizando sua própria administração e crescimento.

DESCOLONIAL – Apesar da diferença ser apenas por um “S”, é um movimento contínuo, de romper as amarradas com a colônia,  de tornar pensamentos e práticas cada vez mais livres da colonialidade, assumindo sua história, sua cultura, suas crenças etc.

Antonio Bispo, autor quilombola nos faz a seguinte reflexão: Adestrar e colonizar são a mesma coisa. Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-o de seus sagrados, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro nome. O processo de denominação é uma tentativa de apagamento de uma memória para que outra possa ser composta.

Todo adestramento tem a mesma finalidade: fazer trabalhar ou produzir objetos de estimação e satisfação. Contudo, não são todos os animais que conseguimos adestrar. Alguns ficam atrofiados fisicamente quando se exige do animal um esforço físico para além do que é capaz. Outros ficam atrofiados mentalmente – quando o animal recebe um choque mental violento.

Fanon relata: todo povo colonizado, isto é, todo povo em cujo seio se originou um complexo de inferioridade em decorrência do sepultamento da originalidade cultural local – se vê confrontado com a linguagem da nação civilizadora, quer dizer, da cultura metropolitana.

Aimé: “A colonização desumaniza até o homem mais civilizado; a ação colonial, o empreendimento colonial, a conquista colonial fundada no desprezo pelo homem nativo e justificada por esse desprezo, inevitavelmente, tende a modificar a pessoa que o empreende; o colonizador, ao acostumar-se a ver o outro como animal, ao treinar-se para tratá-lo como um animal, tende objetivamente, para tirar o peso da consciência, a se transformar, ele próprio, em animal.

Sociedades esvaziadas de si mesmas, culturas pisoteadas, instituições solapadas, terras confiscadas, religiões assassinadas, magnificências artísticas destruídas, possibilidades extraordinárias suprimidas. Milhões de homens em quem foram inteligentemente inculcados o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, o ajoelhar-se, o desespero, o servilismo”.

Apesar dos autores falarem de homem como ser humano, trago uma reflexão de Vergè sobre as mulheres que diz: “Todos os dias, em todo lugar, milhares de mulheres negras, racializadas, “abrem” a cidade. Elas limpam os espaços de que o patriarcado e o capitalismo neoliberal precisam para funcionar. Elas desempenham um trabalho perigoso, mal pago e considerado não qualificado, inalam e utilizam produtos químicos tóxicos e empurram ou transportam cargas pesadas, tudo muito prejudicial à saúde delas. Geralmente viajam por longas horas de manhã cedo ou tarde da noite. Um segundo grupo de mulheres racializadas, que compartilha com o primeiro uma interseção entre classe, raça e gênero, vai às casas da classe média para cozinhar, limpar, cuidar das crianças e das pessoas idosas para que aquelas que as empregam possam trabalhar, praticar esporte e fazer compra nos lugares que foram limpos pelo primeiro grupo de mulheres racializadas.

Essa economia do esgotamento dos corpos está historicamente ancorada na escravatura. O medo é uma de suas armas preferidas para produzir conformismo e consentimento. A colonialidade que institui uma política de vidas descartáveis.

Os objetivos das políticas desses patriarcas são os mesmos: servir ao capitalismo racial, explorar, extrair, dividir, despojar, decidir quais vidas importam e quais não importam”.

“Economias naturais, harmoniosas e viáveis, na medida do homem indígena que foram desorganizadas, culturas alimentares destruídas, subnutrição instalada, desenvolvimento agrícola orientado para o benefício único das metrópoles, roubo de produtos, roubo de matérias-primas. Cada dia que passa, cada negação de justiça, cada blitz policial, cada manifestação operária afogada em sangue, cada escândalo abafado, cada expedição punitiva, cada viatura, cada policial e cada milícia nos fazem sentir o preço de nossas antigas sociedades. Eram sociedades comunitárias, nunca de todos para alguns. Eram sociedades anticapitalistas, democráticas, cooperativas, sociedades fraternas”. (Aimé)

Galeano, no seu livro esplêndido, relata como todos os países da América Latina foram colonizados, suas populações originais e as racializadas sofreram e sofrem grandes destruições, por vezes, povos inteiros exterminados. “ En América Latina es lo normal: siempre se entregan los recursos en nombre de la falta de recursos. El siempre soplo de las glorias y el peso siempre perdurable de las catástrofes. La ley de la ganancia puede más que todas las leyes”.

Antonio Bispo: “A cidade é um território arquitetado exclusivamente para os humanos. Qualquer outra vida que tenta existir na cidade é destruída. Para andar descalço, é preciso desinfetar o chão. A humanidade se desconectou da natureza.

Os humanos não se sentem como entes do ser animal. Essa desconexão é um efeito da cosmofobia. Na cidade, as pessoas têm medo de gente. A cidade é um território colonialista. Os povos da cidade precisam acumular. A cultura é uma coisa padronizada, mercantilizada, colonial. Só precisa armazenar quem não confia, quem tem medo da natureza não fornecer, medo da natureza castigar.

A cosmofobia é responsável por esse sistema cruel de armazenamento, de desconexão, de expropriação e de extração desnecessária. Porque existe tanto lixo? O desperdício é um resultado da cosmofobia”.

 Ferdinand:  começa desfazendo um equívoco recorrente em análises contemporâneas provenientes tanto do movimento ambiental como do movimento antirracista e decolonial: a separação entre a questão ecológica e a questão colonial. Essa “dupla fratura”, como ele define, impede perceber em que medida a destruição do meio ambiente e o legado colonial estão inextricavelmente ligados, tanto em sua origem como em suas nefastas consequências.

“Habitar a Terra começa nas relações com os outros. Assim, o habitar colonial designa uma concepção singular da existência de certos humanos sobre a Terra – os colonizadores-, de suas relações com outros humanos – os não colonizadores-, assim como de suas maneiras de se reportar à natureza a aos não humanos.

Além dessas vidas, o ecossistema como um todo foi sendo destruído no processo de exploração colonial da Terra e de escravização Negra, processos que serviram de base para a modernidade, pois embora todo mundo seja exposto a ecossistemas contaminados, permanecem grupos de senhores proprietários, cujos interesses financeiros coincidem com as contaminações perenes da Terra, nessa configuração do habitar colonial em que a condição tóxica, é a um só tempo, a consequência da exploração capitalista desses ecossistemas por seus senhores e a causa que reforça a dominação de tais territórios por esses mesmos senhores”.

Malcom vai nos mostrando esta dupla fratura (ambiental e colonial) como um problema central da crise ecológica, que abala as maneiras como esta é pensada e as suas traduções políticas.

“A fratura ambiental decorre desta “grande partilha” da modernidade, a oposição dualista que separa natureza e cultura, meio ambiente e sociedade, estabelecendo uma escala vertical de valores que coloca “o Homem” acima da natureza. Tal fratura abrange também uma homogeneização horizontal e esconde as hierarquizações internas de ambas as partes. Os termos “planeta”, “natureza” ou “meio ambiente” escondem a diversidade de ecossistemas, dos lugares geográficos e dos não humanos que os constituem. Florestas, montanhas, e reservas naturais mascaram as imagens das naturezas urbanas, das favelas e das plantações.

A fratura animal como as hierarquizações entre animais selvagens “nobres”, e os animais domésticos são colocados acima dos animais de criação.

“ Racismo ambiental” A descriminação racial na elaboração de políticas ambientais, a aplicação de regulamentos e leis, o direcionamento deliberado de comunidades racializadas para instalações de resíduos tóxicos, a sanção oficial da presença de venenos e poluentes que representam uma ameaça à vida em nossas comunidades e a história da exclusão de pessoas racializadas dos espaços de liderança nos movimentos ecológicos.  Dr. Benjamin Chavis.

O racismo não adentra o cenário simplesmente como fator determinante da maneira como os perigos ambientais são vividos de forma desigual pelos seres humanos, ele cria as próprias condições de possibilidades de ataques contínuos ao meio ambiente, inclusive aos animais humanos e não humanos, cujas vidas são sempre desvalorizadas pelo racismo, pelo patriarcado e pelo especismo.

Ecologia decolonial articula a confrontação das questões ecológicas contemporâneas com a emancipação da fratura colonial, com a “saída do porão do navio negreiro”. Trata-se de questionar as maneiras coloniais de habitar a Terra e de viver junto. O confronto das destruições ecossistêmicas está intimamente ligado a uma exigência de igualdade e de emancipação. Ela compreende também relações específicas com não humanos, paisagens e terras.

Da Fratura ambiental à Fratura colonial e vice-versa, tem como questão central a crise ecológica, decorrente da constatação de que a poluição, as perdas de biodiversidade e o aquecimento global são os vestígios materiais desse habitar colonial da Terra, compreendendo desigualdades sociais globais, discriminações de gênero e de raça.

As exclusões sociais e políticas dos ex-escravizados, dos pobres, dos racializados e das mulheres manifestam-se também por meio da contaminação de seus corpos biológicos pelos produtos tóxicos das plantações e das fábricas, pelas desigualdades de exposição, de tratamento e de pesquisas médicas sobre as consequências dessas exposições.

Longe de uma oposição entre causa animal, causa Negra e causa feminista, essas diversas alianças interespécies contra o habitar colonial continuam sendo hoje as chaves de um “navio-mundo”. Um “navio-mundo” guiado pelos ventos da justiça, onde humanos e não humanos possam viver juntos.

Compor um mundo plural, diverso e transgeracional a partir das pluralidades humanas e não humanas na Terra. Essa tarefa desdobra-se, no mínimo, nos planos ontológicos, estético e político.

O fato de tudo estar conectado ao todo não permite, necessariamente, pensar como esse todo se torna o mundo nem pensar os desafios de igualdade e de justiça. O mundo é fruto de um agir conjunto. A ecologia do mundo requer uma cosmopolítica da relação”.

Antonio Bispo nos sugere:

“Modos e falas, para contrariar o colonialismo: Se o inimigo adora dizer desenvolvimento isso é ruim, a palavra boa é “envolvimento”. Para enfraquecer o desenvolvimento sustentável, nós trouxemos a biointeração; para a coincidência, trouxemos a confluência; para o saber sintético, o saber orgânico; para o transporte, a transfluência; para o dinheiro (ou a troca), o compartilhamento; para a colonização a contracolonização.... e assim por diante.

Antonio Bispo - O grande debate hoje é o debate decolonial, que só consigo compreender como a depressão do colonialismo, como a sua deteriorização, decomposição. É importante se defender, mas não é necessário atacar agora. Não precisamos destruir os colonialistas. Deixemos que vivam, desde que vivam com o sol deles e não venham roubar o nosso sol ou o nosso vento.  

O mundo é grande e tem lugar para todo mundo. O mundo é redondo exatamente para as pessoas não se atropelarem.

As pessoas falam de racismo, mas discutem o racismo apenas dentro da espécie humana. Mas a questão é mais ampla. Basta pensar nas variedades de peixes que tínhamos naquele tempo e em quantas temos hoje. Peixes que não são criados em cativeiros. Não são mais considerados peixes em alguns lugares. O racismo acontece contra todas as vidas. Não temos mais peixes nos rios porque jogam veneno nas plantações no período da piracema, durante a reprodução dos peixes. Desmataram as matas e não desce mais matéria orgânica para os rios. As águas que iam para o rio levando matéria orgânica agora vão levando veneno.

Nós pensamos sempre na circularidade, quebrando o monismo, a dualidade e o binarismo.

Quando eles falam em “globalizar”, estão dizendo “unificar”. Quando dizemos “globo”, estamos englobando e, ao mesmo tempo, reconhecendo as individualidades que existem dentro do globo. Essa é uma questão germinante, que precisa ser tratada e cultivada.

Dentro do reino animal, só existe política na espécie humana. Nas outras espécies, existe a autogestão.

A política é eurocristão monoteísta e a cosmopolítica também é uma invenção eurocristã. O nosso movimento é o movimento da transfluência. Transfluindo somos começo, meio e começo. Porque a gente transflui, conflui e transflui. Conflui, transflui e conflui. A ordem pode ser qualquer uma.

Os colonialistas, povos sintéticos, são lineares e não transfluem, eles apenas refluem, porque são o povo do transporte.  Os eurocristãos colonialistas só podem ir e refluir, porque não circulam, como nós o transporte vai e volta, em linha reta. Já no sistema cosmológico, não há refluência. A água não reflui, ela transflui, e por transfluir, chega ao lugar de onde partiu, na circularidade”.

Kardec já nos mostrava este caminho através das Leis morais, no livro 3 do livro dos Espíritos, principalmente com a Lei de Justiça, amor e caridade.

 “A lei de amor e de justiça proíbe que se faça a outrem o que não queremos que nos seja feito, e condena, por esse mesmo princípio, todo meio de adquirir que o contrarie”.

 

 

 

Bibliografia

 

Césaire Aimé: Discurso sobre o colonialismo. Ed. Veneta.

Fanon, Frantz: Pele negra, Máscaras Brancas. Ed. Ubu.

Ferdiand, Malcom – Uma ecologia decolonial – Pensar a partir do mundo caribenho. Ed. Ubu.

Galeano, Eduardo – Las venas abiertas de América Latina. Siglo Veintiuno editores.

Kardec, Allan – Livro dos Espíritos. Ed. Lake.

Santos, Antônio Bispo dos – A terra dá, a terra quer. Ed. Ubu.

Vergès, Francoise – Um feminismo decolonial. Ed. Ubu

 

 







domingo, 24 de março de 2024

Vivemos numa época pós-moralista?

 



Podemos pensar numa moral-humanista-espírita, diante dos desafios e complexidades do século 21? Herculano Pires afirmou que: “O homem é um projeto, um ser que se lança na existência e a atravessa como uma flecha em direção à transcendência que é o objetivo da existência” [1], realizando na vivência do mundo, no plano individual e social, uma síntese dialética de seu desenvolvimento interexistencial[2]. Ora, isto significa que o humano-espírito-complexo é um ser inacabado, incompleto, faltante e, portanto, desejante, autônomo e perfectível, isto é, passível de melhoramento. A filosofia espírita é humanista na medida em que resgata a dignidade dos sujeitos como protagonistas de um mundo melhor, mais sensível, humanitário, empático e amoroso. Eugenio Lara, reconhecido pensador espírita, escreveu que:

“O humanismo espírita (...) se concretiza na evolução intelecto-moral dos seres (..) no incessante desenvolvimento do ser humano. É por isso que o pensamento espírita não se coaduna com sistemas que visem a desvalorização do elemento humano, sejam eles religiosos, políticos ou econômicos. O ser humano deve sempre emergir e ser o protagonista de qualquer projeto que objetive a transformação social.”[3]

Sabidamente, Kardec considerava a moral de Jesus de Nazaré e a moral espírita uma mesma coisa. Na condição de um europeu do século 19, o fundador da filosofia espírita, assim como seus interlocutores espirituais, reconhecia em Jesus o modelo ou padrão de comportamento e de amor que a humanidade deveria aspirar, mesmo que, do ponto de vista epistemológico, o espiritismo se afaste da configuração mítico-religiosa e dogmática do cristianismo. O que significa dizer que: a moral-humanista-espírita não é, pelo menos no plano teórico, a “moral ressentida” da tradição judaico-cristã apresentada na genealogia da moral de Nietzsche.

O inacabamento humano define que não há nenhuma pessoa absolutamente exemplar, no sentido de perfeição, neste planeta e, portanto, ninguém deve desejar ser literalmente como Buda, Sócrates, Jesus ou qualquer outro personagem histórico. Se passássemos a viver, em termos de conduta, exatamente como Jesus, por exemplo, seríamos banidos deste planeta. A reivindicação moral é, isto sim, uma busca incessante por justiça, respeito, paz e dignidade, diante da injustiça, desrespeito, violência e exploração.

Os espíritas tradicionais veem no espiritismo, no entanto, uma continuação do cristianismo católico, adaptado, mas permeado por uma moralidade ingênua, que fundamenta os sofrimentos humanos e injustiças sociais com base, exclusiva, nas provas e expiações e cuja compensação se dará no mundo espiritual. Essa moralidade é justificada pelo imaginário teológico de gratificação e compensação futura, produzindo um certo desprezo pela existência material, já que tudo está conforme uma “ordem divina” e o foco é o melhoramento pessoal para escapar do “umbral” e dos sofrimentos no além.

Essa moral fechada, dogmática, maniqueísta, olhando o mundo a partir da dicotomia: bem/mal, certo/errado, moral/imoral, desnaturaliza e desumaniza o humano-espírito-complexo. Trata-se de uma moral dos costumes, conservadora, reducionista e, de certa forma, ingênua. O risco de uma moral universal é o seu totalitarismo. Por outro lado, a incompletude é o fundamento para a abertura, em oposição ao fechamento. A condição inacabada do ser humano faz deste um ser angustiado, capaz de pensar e repensar o seu estar-no-mundo e o regramento que lhe é imposto pela cultura de seu tempo.

Os interlocutores espirituais de Allan Kardec afirmaram que: “A moral é a regra de bem proceder. O homem procede bem quando tudo faz pelo bem de todos” [4]. Kardec desenvolve a terceira parte de O Livro dos Espíritos para aprofundar reflexões sobre diversos aspectos da vida privada e da vida pública, pois o sentido de moralidade está fortemente relacionado aos valores éticos que nutrem nossa vida em comum. Ele, inclusive como já mencionamos, afirma que: a mais rigorosa justiça é o principio básico de todas as relações sociais[5]. Logo, a “moral espírita” é, epistemologicamente, o que chamamos de uma “moral aberta”, uma proposta não dogmática, não religiosa, para ressignificarmos, inclusive, o que se define por “regra de bem proceder” no contexto da moral e da cultura ocidental. É preciso refletir sobre a “sujeição do espírito encarnado a imperativos que são estabelecidos como regras, onde este Ser precisa ser obediente, mesmo que as bases que componham estas regras sejam diametralmente opostas ao que verdadeiramente é este Ser” [6].

O movimento Hippie, nas décadas de 60/70, foi transgressor à obediência aos valores conservadores de uma sociedade hipócrita. Defendia a liberdade sexual, o amor livre de preconceitos, os direitos das mulheres, homossexuais e lésbicas, ao mesmo tempo em que criticavam a sociedade consumista. Os hippies não mudaram o mundo, mas influenciaram na mudança dos costumes e do regramento moral. Hoje, há muitos homens realizando atividades domésticas, há muitas mulheres independentes, que trabalham fora e ocupam funções hierarquicamente superiores no mundo do trabalho. Embora, ainda exista grandes lutas para a conquista da igualdade e de direitos numa sociedade estruturalmente discriminatória como a nossa.

O filósofo francês Gilles Lipovetsky considera que vivemos numa época pós-moralista, de revitalização dos valores. Para ele, estamos na emergência de uma nova cultura onde os valores não desaparecem, transformam-se! Não se trata de um recuo ao estado de selvageria, mas da transição de uma ditadura moralista implacável, onde o prazer era algo quase obsceno, pois imperava uma “moral do sacrifício”: sacrificar-se por Deus, pela família, pelo trabalho, pela pátria..., para uma “ética indolor dos tempos democráticos” [7]. Para ele, estamos diante de uma “ética da responsabilidade”, do dever desonerado da noção de sacrifício, o que expressa o esgotamento da moral do “é proibido proibir”.

Contudo, embora o ideal da “autonomia moral” tenha atingido discussões importantes na hipermodernidade, envolvendo reflexões sobre democracia, liberdade e as redes sociais, surge a necessidade de um contrapeso à tendência individualista de eximir-se das responsabilidades éticas individuais e sociais. Então, um mundo pós-moralista implica, não num mundo desordenado e caótico, mas na irrupção de uma consciência de comprometimento pessoal com uma sociedade mais humanizada. Significa dizer, portanto, que nem a moral cristã, nem o espiritismo estão aptos para, isoladamente, redefinirem o mundo.

Existem, certamente, possíveis contribuições da moral de Jesus e da ética espírita para fomentar essa “consciência de comprometimento”, que não é apenas individual, mas também, social. A perspectiva da reencarnação, quando bem compreendida, poderá favorecer uma consciência antissegregacionista, antifascista, antirracista, e demais formas agressivas e umbilicais de exclusão e opressão dos outros. Não precisamos mais de um moralismo reacionário. Necessitamos, urgentemente, de humanos humanizados, empáticos, comprometidos com uma sociedade mais amorosa e afetiva. O espiritismo, dialogando com os dilemas do século 21, poderá contribuir para uma moral sem moralismo.

O movimento espírita, hegemônico, conservador, tradicionalmente se reveste de ilusões sobre uma suposta “regeneração moral da humanidade”. Os espíritas tradicionais vivem numa espécie de “mundo paralelo” que não dialoga, ou raras vezes o faz, com o mundo real. Lipovetsky resume bem, em sua reflexão filosófica, algo no qual os espíritas deveriam meditar: “Não estamos precisando de exortações à prática da virtude integral, mas de uma inteligência responsável e de um humanismo aplicado, únicos meios capazes de enfrentar os desafios de nossa época”[8].

A discussão sobre o direito da mulher que sofreu estupro, em praticar o aborto assistido pelo Estado, é moralmente condenado nos meios religiosos e espíritas tradicionais. Estamos falando do direito ao aborto num contexto específico de violência sexual, já que não se trata de uma gravidez normal, fruto de uma relação amorosa consensual. O direito ao corpo é um direito moral, não moralista. Não pretendemos aprofundar este assunto, o trazemos aqui apenas para simbolizar a relação assimétrica existente entre moralismo e humanismo. Mais uma vez, reiteramos que não estamos exortando a prática do aborto. Entretanto, entendemos que se trata de um tema que transcende, em muito, o “velho paradigma da moral ocidental”. Normalmente, tal discussão remete para a culpabilidade da mulher que de vítima, passa a ser algoz. O debate sobre questões complexas é interditado nas instituições espíritas, geralmente, com tons de censura.

Presumivelmente, a “posse da verdade”, nos meios conservadores, determina o paradigma da versão de comportamento produzida e aceita, refletindo interesses hegemônicos que pretendem calar ideias e vozes dissonantes. A revitalização dos valores, no mundo atual, permanece um enorme desafio. A moral humanista espírita, em vários sentidos, subsiste marginal, mas o pensamento é – felizmente, transgressor.

 

NOTAS

[1] PIRES, J. Herculano. Curso Dinâmico de Espiritismo. XII. Colaboração interexistencial. p. 74.

[2] Termo desenvolvido por Herculano Pires para significar o processo de vivências do humano-espírito, ora na existência biológica, ora no mundo invisível.

[3] LARA, Eugenio. Breve Ensaio sobre o Humanismo Espírita. p. 59.

[4] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Questão 629.

[5] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Introdução. O objetivo desta obra.

[6] JUNIOR, Alexandre. Espiritismo, Educação, Gênero e Sexualidades. Um Diálogo com as Questões Sociais. p.103.

[7] LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade Pós-Moralista. O crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. p.185-187.

[8] Idem. p. 190.


quarta-feira, 6 de março de 2024

Um comentário espírita sobre o massacre israelense na Palestina

 


De forma genérica, sabemos que, para a Filosofia espírita, a guerra é fruto de uma predominância da natureza animal sobre a natureza espiritual. Para nós, fica claro que a guerra é sempre considerada um mal. Não há conflito armado bom ou justo, ele, afinal, é fruto do insucesso do diálogo, da diplomacia. Quando duas pessoas, grupos, partidos ou países se lançam à luta armada, já foi perdida a possibilidade de resolução de questões de modo humano, educado, respeitoso. Isso será sempre lamentável.

Os imortais propõem ainda que, à medida que o ser humano progride, menos frequente se torna a guerra, porque ele lhe evita as causas. A guerra é uma coisa que vai acabar, que está relacionada à baixa capacidade humana de exercer empatia, de se colocar no lugar do outro, de tentar ver os diversos ângulos de um problema e as perspectivas dos outros.

No entanto, reconhecemos que, para o nível de opressão sistemática em que a Terra ainda se encontra, pode haver casos em que a guerra se torna a única escolha possível, como nos casos do colonialismo, por exemplo, em que guerra é feita por impulso de liberdade e o progresso. Há casos em que uma violência territorial tira a soberania de alguém, muitas vezes do forte contra o mais fraco. E são em condições análogas a essas que a Filosofia espírita ensina o que deve ser sempre defendido. Há momentos em que os direitos básicos à sua própria humanidade são negados a certo povo ou grupo étnico; há relatos de pessoas que ficam prisioneiras a céu aberto, com seu direito de ir e vir suspenso; conhecemos histórias de acordos internacionais que são desrespeitados em nome de interesses mesquinhos materiais ou em nome de uma pretensa superioridade religiosa.

E, infelizmente, essa triste lista faz parte da ação histórica do estado de Israel sobre a Palestina, que vê, assustada, a própria convenção da ONU desrespeitada. Em 1948, o estado de Israel foi criado por essa entidade e a Palestina dividida. Desde então, a área destinada ao povo árabe já era bem menor, apesar de ser uma população numerosa. De lá para cá, o mais forte sempre se impôs e foi, progressivamente, diminuindo as terras que eram por direito das famílias palestinas, que passaram a viver em assentamentos, quase sempre sob tensão constante de guerra.

Enquanto a pergunta for quem começou primeiro, realmente a guerra árabe israelense não vai acabar. Mas também não dá para esperarmos que um povo se veja contra a parede, sem direitos humanos e não reaja, em nome da liberdade e do progresso, como disseram os espíritos a Kardec.

Ao tomarmos um lado e defendermos os direitos do povo palestino que vê suas crianças mortas ou jogadas na orfandade, não estamos justificando as ações terroristas do Hamas, inaceitáveis também, mas não é mais possível chamar o que vem acontecendo em Gaza nos últimos dias de guerra. É um massacre. Alguém ainda pode perguntar: mas são respostas de Israel aos terroristas, que devem se render. Mas e os civis mortos na Cisjordânia, onde nem tem Hamas? Em nome do seu direito, Israel se lança à suspensão do direito mais básico do cidadão palestino, que é o de viver.

Apoiado pelos EUA – que mais uma vez votou contra o cessar fogo no conselho de segurança da ONU  –, o estado de Israel comete crimes de guerra e pratica um genocídio, legitimado por Washington, que defende claramente seus interesses armamentistas. Mais uma vez, o capital supera o ser humano, e a morte se estabelece com via possível. Não era para ser assim!

Como espírita, sinto-me no dever de me somar à defesa palestina. Quem no nosso meio, pelo rumo que as coisas tomaram, se coloca ainda ao lado dos empreendimentos israelenses, ficou cego por sua ideologia de extrema direita e pelos meios de comunicação enviesados que consultam. Contudo, pode ser coisa pior: eles sejam mesmo etnocidas.

Palestina livre!

 

 

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Espiritismo na Matta

 




Espiritismo na Matta


Por Leonardo Rodrigues


Do que me chamaram, mudou quem fui?

Do que me chamarem, mudará quem sou?

Espiritismo? Espírita? Chamem do que quiser!

Mas por favor, olhem pra essência!

Ana Lúcia

 

Era uma quinta-feira, de 5 de janeiro de 2023, véspera em que a igreja católica comemora o Dia de Reis, ou Festa de Santos Reis, em referência aos magos que visitaram o menino Yeshua, para reverenciar sua vinda, sua aparição neste mundo, no entanto, a palavra rei, ou reis, não consta em nenhum dos evangelhos. O termo usado é simplesmente magos, que vieram, diz o evangelista Mateus, do oriente, trazendo para o menino e seus pais, entre outras coisas, ervas para incenso.

Pouco sabemos sobre esses magos e que magias praticavam. Sabemos que as magias, e entre elas o uso de incensos, utilizados por certas pessoas, especialmente por um tipo de mulher, seria proibida com pena de morte, por homens, que séculos depois daqueles dias, diziam-se seguidores do mesmo menino, nascido, nas cercanias de Belém.

Naquela festa, no distrito de Mata Velha, pertencente a Dom Pedro, no Maranhão, na antiga região da Matta, encontrei um padre, ou melhor, um bispo concluindo o seu ritual celebrativo. O público era variado, uma cena linda de se ver, algumas senhoras e meninas usavam turbantes e homens com faixas de panos na cabeça, muitos de pés descalços e outras com crianças para serem batizadas, tornadas cristãs na tradição dos que ali estavam e do homem vestido em panos longos, e com a mesa cheia de aparatos, como óleos, água benta. O rito que era realizado no meio da rua, com pouca iluminação e na frente de uma casa que continha a inscrição:  Tenda Santa Bárbara. Laise, uma amiga, integrante do Centro Espírita Jesus de Nazaré, que foi conhecer aquela experiência, tira a foto e manda por watsapp para a companheira Zelina, que tinha ficado na cidade e me mostra sorrindo a sua resposta, que questiona: “Mas vocês não tinham ido pra uma festa de terreiro? E esse padre?”.  

O padre, a mais de uma década celebra a missa naquele festejo, é amigo e compadre de Mãe Rita, uma senhora de 74 anos, que acompanhava a missa de pés descalços, usando uma linda saia verde de seda e uma blusa branca, com um lenço na cabeça, rezando e seguindo todo o rito do sacerdote presente. É ela (ou Tereza Légua), que ao fim da celebração, entra na tenda, enfeitada com fitas e  santos católicos, pouquíssimas cadeiras para sentar, chão de cimento queimado, uma janela para mirar uma lua, que naquela noite era cheia, e alumiava o tambor feito de oco de Pau D´arco e couro de boi, sendo esquentado na fogueira. Essa senhora de voz firme, pega o microfone e brada: Vai começar o Espiritismo! Os amigos do Centro Espírita Jesus de Nazaré, de Dom Pedro, se entreolham, eu provoco, claro! Onde estamos? Que Espiritismo é esse? Sorrimos todos!

Quem interromperia aquela força, vinda das matas, herdeira dos africanos escravizados, que ali fora em quantidade maior que todo o país, para lhe desmentir a qualificação de espiritismo o que ia acontecer?

Ali, na Tenda Santa Barbara, estavam presentes outras representações de terreiros, em sua maioria mulheres, mães de santo e seus filhos iniciados e em processo de iniciação. Funcionava o encontro como um seminário, onde cada uma levava a sua comunidade, espécie de conferência aberta dentro da mata onde tudo era relacional, e os encantados, incorporados, também conversam entre si e com os dançantes, tanto quanto com os visitantes, que podem pedir um dedinho de prosa com a entidade: “ Quando meu guia incorporar, você pode conversar melhor com ele, e ele vai te explicar tudo o que está acontecendo aqui”, me disse uma das mães de santo, conversando comigo na calçada, antes de entrar no salão. É uma acessibilidade de dois tipos, ao portador da mediunidade, e ao guia espiritual. Penso na acessibilidade no outro contexto, quando fui para um congresso espírita e vi o medianeiro e conferencista cercado de proteção, leio a atitude, posso estar equivocado, como um esquema de colocá-lo distante e de preservar uma aura de ser extraordinário.

Observando as danças circulares, um amigo questiona: Pra que dançar? Não entendo o sentido disso!

Rumi poderia responder: O amor eleva aos céus nossos corpos terrenos, e faz até os montes dançarem de alegria!”. Acostumados a mesas postas em destaque para que um tipo de autoridade, cadeiras enfileiradas, privando a relação, estranha-se quando desaparece o palco e a mesa, e acrescenta-se tambor, danças, gente pobre e negra como protagonistas do processo. E se isso for chamado de espiritismo, talvez fique ainda mais estranho. Por ser diferente as formas de fazer, também de acolher, será menos espiritismo? 

Allan Kardec, confesso a vocês que naquela noite, em estado de oração, o convidei para ir na Mata Velha, ver tudo o que acontecia ali, traz um conceito de espiritismo muito interessante:

“Tanto a história sagrada quanto a profana provam a antiguidade e a universalidade dessa crença, que se perpetuou através de todas as vicissitudes por que tem passado o mundo, e se mostra, entre os mais selvagens povos, no estado de ideias inatas e intuitivas, e tão gravadas no pensamento como a do Ente supremo e a da existência futura. O Espiritismo, pois, não é uma criação moderna; tudo prova que os antigos o conheciam tão bem, ou talvez melhor que nós”.   ( KARDEC, 2013 P.66)

 

Três palavras me chamam a atenção, quatro na verdade, mas vamos começar por essas três: antiguidade, universalidade e moderna. De que antiguidade estava ele falando. Qual o alcance dessa antiguidade, a idade antiga, que pode ser entendida entre uns 4.000 anos antes de Cristo? Esse tempo pode estar ligado às práticas de comunicabilidade com os espíritos, como vai nos informar Leon Denis na sua obra Depois da Morte, ocorridas na Índia, Egito, Grécia, Gália, como podemos verificar em suas palavras: Os druidas comunicavam-se com o mundo Invisível; mil testemunhas o atestam. Nos recintos de pedra evocavam os mortos. As druidesas e os bardos proferiam oráculos (...) A ciência do mundo invisível constituía um dos ramos mais importantes - do ensino reservado. Por ela se havia sabido deduzir, do conjunto dos fenômenos, a lei das relações que unem o mundo terrestre ao mundo dos Espíritos;

Antiguidade pode também referir-se as  comunidades cristãs, como escreve Artur Conan Doyle: A primitiva igreja cristã viveu saturada de Espiritismo e não parece que tenha atendido às proibições do Velho Testamento, as quais objetivavam reservar esses poderes para uso e proveito do clero.

O outro termo, o moderno, foi usado por boa parte de investigadores do século XIX, para designar o conjunto das manifestações, e comunicabilidade com os Espíritos. “Moderno Espiritualismo” é a terminologia que vamos encontrar em vários livros daquele tempo. Mas, na publicação de O Livro dos Espíritos em 1857, Kardec argumenta que o termo espiritualismo seria muito genérico e propôs chamar de Espiritismo, ciente de que para coisas novas, como ele dizia, precisávamos de termos novos. Dois anos depois, na obra O Que é o Espiritismo, Kardec reconhece que não se tratava de coisa nova, moderna, mas de coisa antiga e universal. Ou seja, não pertencia ao domínio de uma cultura e de um tempo, e cada povo o vivenciou conforme seu entendimento. E que caracteriza o moderno, é o método usado para investigar os fenômenos e uma prática, conforme a cultural racional científica do seu tempo, fortemente influenciada pelas ideias iluministas, um movimento importante para uma ruptura de um domínio de um tipo religioso, que emperrava o livre pensamento e o desenvolvimento das ciências, mas que não deixou de lançar preconceitos sobre outros fazeres e formas de pensar o mundo, fora de um eixo de uma criticidade eminentemente europeia, qualificando como atrasado o pensamento de outras culturas, principalmente as culturas.

O mundo antigo nem é sinônimo de atraso, nem o moderno de evoluído, temos que refletir melhor o que temos chamado de evolução e se ela acontece numa linearidade de tipo cronológica. Uma prática antiga não é necessariamente um erro, nem uma pratica moderna é necessariamente um acerto. Não devemos pautar uma prática como verdadeira ou falsa, baseada na sua antiguidade e nem tão pouco na sua localidade, seja ela a cidade, ou a selva, a quarta palavra que eu queria trazer, para irmos concluindo essas provocações. A cidade por apresentar um aparato de construções diferenciadas, e intervenções que pudessem “melhorar” as condições de vida dos seus habitantes, com facilidades no deslocamento, na comunicabilidade entre as pessoas, foi chamada de evoluída, e a selva ficou como sinônimo de atraso. Apenas hoje, vamos percebendo as tecnologias selvagens, como as das árvores, que podem sinalizar o seu estado de saúde e adoecimento, para uma outra árvore que se encontra a mais de 5 mil quilômetros do seu território.

Chamamos de colonialismo, não só o processo de invasão da Europa sobre outros continentes, não para desenvolver, mas para explorar e se apropriar de riquezas naturais dos continentes africanos e pindorâmicos , mas também a sua imposição de crença e cultura, sufocando e exterminando os saberes dos povos colonizados. Uma das estratégias do posseiro colonizador era dar nome às coisas já nomeada, apagar a língua local e implementar a sua, e apenas a sua. Como já nascemos sobre o império colonial, não percebemos que estamos colonizados de diferentes modos, achamos natural chamar essa terra de Brasil, quando em alguns lugares em tupi se chamava Pindorama, a terra das palmeiras (nome de um clube recreativo em Dom Pedro, que nunca soube o sentido e de onde vinha), chamamos genericamente de índios, povos que possuem seus nomes próprios, como Anacé, Kanindé, Tapeba, Gujajara, Yanomame. Se diz que a língua oficial do Brasil é o português, e é porque foi imposto, embora se fale mais de trezentos idiomas em Pindorama.

 Esse processo foi tão danoso às nossas vidas, com um tipo de pensar unilateral, de uma verdade única, e de um poder que se impõe sobre outros saberes e culturas, que vamos encontrar uma grande dificuldade na comunidade dita Espírita Kardecista em aceitar que os termos Espiritismo e Espírita, sejam adotados fora de um tipo de prática convencional e pertencente a determinadas instituições formais denominadas centros espíritas. E dizendo isso, não quero carimbar as prática de outras tradições, e com esse carimbo impor um tipo de entendimento, é saber a relevância de um conceito de tipo sintético, que pode expressar a essência de uma coisa, embora possa ela manifestar-se diferente. É quando a coisa tem natureza própria, e sem dono e daí podemos chamar com nomes diferentes, ou com nomes iguais, sem que isso tire a natureza da coisa em si mesma.

A quem pertence o poder de nomear?  Será possível um tipo de autoridade legitimada para dar nomes às coisas materiais e imateriais? Que poder autoriza Hypolite Léon Denizard a chamar as tradições de Mãe Rita de Espiritismo, herdeira da ancestralidade afro-pindorâmica e, ao mesmo tempo, a desautoriza a reconhecer a sua prática como Espírita?

A senhora da mata, a guardiã da prática medianímica, herdeira daquela luta de que o próprio Kardec falou, resistiu bravamente às perseguições e apagamentos, está investida de autoridade de aceitar ou não o nome que se lhe dá, o termo novo, para sua prática antiga e o seu reconhecimento revela que a sua compreensão é sintética e remete a essência espírita. Se a adoção do nome, é um processo de tipo sintético, e não colonizado, se parte do olhar do estranhado e perseguido e não da imposição do colonizador, deveríamos antes nos alegrar com tal nominação, que pode igualmente ser um convite para um dialogo intermundos.

Mas para tanto, precisamos superar o espanto. Se a música de Sebastian Bach, que tocou em missas nas igrejas da Alemanha, no século XVIII  é reproduzida nos centros espíritas, parece tudo bem, todos fecham os olhos e se recolhem. Os corpos, se aconchegam nas cadeiras, em movimentos suaves, mas em movimentos. Mas se for Maria dos Anjos, uma negra, que também canta com voz melodiosa e abre os trabalhos na tenda, acompanhada de tambores, que remete às tradições da África e dos povos de Pindorama, e os corpos também se movimentam, em movimentos outros, que estranho!

O que chamamos de estranhamento também podemos chamar de preconceito e em alguns momentos mais graves, qualifica-lo de racismo. Formamos o nosso olhar baseado em heranças diferentes e entre elas está aquele de tipo colonial de que falamos, em que o saber é a verdade de tipo única e que deve se sobrepor à outras verdades, e o movimento espírita brasileiro não está isento dessa herança, por ser feito de gente, também de gente colonizada. Essa estranheza bem pode ser colonial, de verniz religioso, étnico, filosófico, científico, expressa em termos como místico, esotérico, atrasado, primitivo, selvagem. Temos que reconsiderar o lugar em que nos posicionamos, e admitir que o espiritismo não tem o nome para tudo, a última palavra para conceituar os saberes imanentes ou transcendentes, do contrário estaremos numa posição muito perigosa para dialogar com outros mundos, tanto os imanentes e oriundos da experiência da imersão do espírito na condição histórica desta terra, como os transcendentes que transem a diversidade de experiências dos espíritos em condições transistórica. Nesse sentido, é bom refletir com Boaventura, que também faz uma revisão de um lugar que foi ocupado pela nação onde encarnou: “O drama do universo cultural que se considera historicamente vencedor é não querer aprender nada dos universos culturais que se acostumou a derrotar e a ensinar”

Que nos reserva ainda os saberes da selva? Há mundos diferentes, universos culturais construídos também por desencarnados, como o da Encantaria e não apenas das Colônias Espirituais? (olha o termo colônia aparecendo de novo!).  É possível uma ciência das macumbas? Um que o passe, adoção de terapia pelos fluidos, seja dado em forma de giro ou soprado com fumaça como nos terreiros?

Uma coisa, pode se ter diversas formas de fazeres, também de entendimentos, sem deixar de ser ela mesma? A luz do sol não uma, e no entanto não se apresenta em multicores conforme seja a capacidade de retenção e reflexão de seus raios?

Toda palavra é de certo modo uma limitadora da realidade e insuficiente para expressar a sua totalidade. O que foi nomeado de Espiritismo, bem pode conter amplas verdades, ou melhor, uma diversidade de métodos, de fazeres, para entender e expressar uma realidade essencial, de centralidade na sobrevivência e comunicabilidade da individualidade que continua a existir após a morte, a desagregação de um tipo de corpo.

A realidade é complexa, e para alguns mestres sufis, pode ter dezoito mil universos, e para enxerga-los todos, diz-se:  

 

Este homem veria os dezoito mil universos através de dezoito mil olhos. Vê cada universo com o olho apropriado. O universo dos sentidos, com o olho dos sentidos; as questões da inteligência, como olho da inteligência; as intenções, como o olho do coração (Ibn ARABI, 2012, páginas 26 e 27)

 

Será possível enxergarmos o Espiritismo sob diversas formas e admitir que pode ser ele mais complexo do que o que temos visto até agora? Aprendemos no Brasil que o Espiritismo foi codificado por Allan Kardec, apesar da investigação e a produção de saber espírita, estar acontecendo na Europa, como Itália, Russia, Inglaterra e na França, e nas Américas. Dizer isso, não é negar a grande influência de Kardec, mas reconhecer que o fenômeno não era centralizado, e segundo o lugar das manifestações, a cultura,  e um tipo de pesquisador e pesquisa, a produção de saber poderia se dar de maneira diferente, não conferindo unicidade, sem anular os conhecimentos elaborados. Em vista disso, é possível admitirmos que assim como as ciências e as filosofias, podemos ter espiritismos? Ou não temos olhos para tanto?

Olhando da condição de desencarnado, ou de encantamento (enchanté no francês, tem esse sentido de encantamento, talvez bem muito próximo da encantaria), Kardec refletiu: Supondo-se que os seus adeptos humanos desapareçam, que as obras que o erigiram em corpo de doutrina sejam destruídas, ele ainda sobreviveria por tão longo tempo quanto a existência dos mundos e das leis que os regem. ( Allan Kardec, 1868, página 431)

Se entendo esse pensamento, o espiritismo seria uma força da natureza, um fenômeno natural, como o vento que sopra onde quer. Aqueles que sentem o vento, podem estudar sua influência nos fenômenos meteorológicos, produzir energia elétrica, ou brincar, dançando e empinando arraia, papagaio, para continuar falando a partir da cultura naquele Maranhão.

 Estou desembaçando do meu olhar de tudo que li e vi para vê a coisa em si mesma, o que ela pode me contar de si. Queria estar no Dom Pedro e ter visto que no aniversário de 33 anos do Centro Espírita Jesus de Nazaré, enquanto o atual presidente da Federação Espírita do Estado do Maranhão, Fabio Carvalho, falava, Mãe Rita, a guardiã da Tenda Santa Bárbara, entrou em cortejo com os seus filhos enfeitados em roupas brancas e turbantes e por alguns instantes, algumas estranhezas abateram-se sobre o público presente. O expositor interrompeu sua fala, desceu do púlpito e abraçou a convidada! Dias atrás, o sacerdote saíra da ilha para encontrá-la na mata para  comungar em sua tenda. Agora, outro homem, do novo espiritismo, silencia e acolhe o ancestral, que saiu da mata e abraçou o novo. São símbolos de encontros, quiçá de um novo tempo, de novos espiritismos.


CItações 

01 Vivência em estado de transe em Ubajara-CE, em que minha irmã, já desencarnada, se apresentava para mim, indicando que me acompanhava na escrita desse texto. Ela, que foi chamada muitos nomes: doidinha, caridosa, desatenta, alegre, valente...

02 Desde muito, o distrito é nomeado Pedro II, mas todos conhecem por Mata Velha, acho importante essa resistência, acho mais interessante elogiar a mata que ao imperador.

03 Tereza Légua é uma encantada, guia de Mãe Rita, em outra ocasião, ao entramos na Tenda Santa Bárbara, fomos recebidos e envolvidos por cerca de meia hora entre boas vindas e brincadeiras com a construção de pontos, terminado o momento, Mãe Rita veio falar com cada uma pessoa visitante, como se não as tivesse cumprimentado no inicio, e não tinha, a recepcionista havia sito Tereza Légua.

04 Me chama a atenção de não encontrar nesse espaço nenhuma imagem referente à cultura afro-brasileiro, como Iemanjá, Pretos velhos, ou imagens referentes a orixás... Estou escrevendo outra reflexão naquele contesto, com o título: “Onde estão os Pretos Velhos?”

05 “No Maranhão, o termo encantado , é usado nos terreiros de Mina, tanto nos fundados por africanos quanto nos mais novos e sincréticos, e nos salões de curadores ou pajés. Refere-se a uma categoria de seres espirituais, recebidos em transe mediúnico”. Encantados e Encantarias no folclore brasileiro – Mundicarmo Ferretti

06 Maulana Jalaladim Maomé, conhecido como Al Rumi. Mestre sufi do século XIII, que criou o sama, um processo de oração, meditação e transe, através da dança circular.

07 DENIS. Leon. Depois da Morte. São Paulo, 1994

08  Referencia

09  O Que é o Espiritismo é lançado em junho de 1859. Destaco que é importante seguir a flexibilidade do pensamento de Kardec ao longo de suas obras.

10  Pindorama, é a terra das palmeiras, nome que alguns povos destas terra adotavam antes que os invasores a chamassem de Brasil. Nêgo Bispo, chama a atenção do termo como uma atitude contracolonial, de resistência ao colonialismo.

11  SANTOS, Boaventura de Sousa. Decolonizar: Abrindo a história do presente. São Paulo: Boitempo, 2022

12 É significativo como naturalizamos a narrativa do espírito André Luiz sobre Nosso Lar, um tipo de cidade com perfil europeu construída por portugueses desencarnados, a partir de um lugar onde habitava povos originários do Brasil, também desencarnados. Uma narrativa em muito similar ao processo de colonização, com forte noção de eurocentrismo. “Onde se congregam hoje vibrações delicadas e nobres, edifícios de fino lavor, misturavam-se as notas primitivas dos silvícolas do país e as construções infantis de suas mentes rudimentares. ANDRÉ LUIZ (Espírito). Nosso Lar. Psicografado por  Francisco Cândido Xavier. Página 52 

13 El Núcleo del Núcleo 5ª edición: noviembre 2002. EDITORIAL SIRIO, S.A.


 

Referências:

AHLERT,Martina «Carregado em saia de encantado: transformação e pessoa no terecô de Codó (Maranhão, Brasil)», Etnográfica [Online], vol. 20 (2) | 2016, posto online no dia 29 junho 2016, consultado o 09 fevereiro 2022. URL: http://journals.openedition.org/etnografica/4276; DOI: https:// doi

ANDRÉ LUIZ (Espírito). Nosso Lar. Psicografado por Francisco Cândido Xavier. Rio de Janeiro. Federação Espírita Brasileira 45ª 1996

IBN ARABI. El Núcleo del Núcleo 5ª edición: noviembre 2002. EDITORIAL SIRIO, S.A

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Federação Espírita Brasileira.  93a edição 2013

KARDEC, Allan. O Que é o Espiritismo. Federação Espírita Brasileira, Brasília, FEB, 2013. 56 ed.

Kardec, Allan. Revista Espírita 1869. Federação Espírita Brasileira, Brasília (DF)  4ª edição 2019

RUMI, Jalaluddin, Masnavi

SANTOS, Boaventura de Sousa. Decolonizar: Abrindo a história do presente. São Paulo: Boitempo, 2022

Decolonizar – Descolonizar – Contracolonizar – Ecologia decolonial

  Muito tem-se discutido sobre os temas acima, e gostaria de trazer o pensamento de alguns autores sobre eles. Nós que moramos no hemisfério...