quarta-feira, 23 de março de 2022

Os ventos revolucionários que sopravam da França, em 1789, invocavam três palavras que se tornaram paradigmáticas no vocabulário dos direitos humanos: Liberdade, igualdade e fraternidade. Esta última, não era vista propriamente como um “direito”, mas como uma condição esperada nas relações sociais. Numa época de nobres, burgueses, servos e escravos, cuja tradição naturalizava a terrível desigualdade social, o pensamento iluminista e os ideais de 1789, deixariam significativas contribuições aos séculos seguintes.

Robespierre, advogado e político radical, em seu “Discurso sobre a organização das guardas nacionais”[2], publicado em dezembro de 1790, enfatizava o lema: “Liberdade, igualdade e fraternidade”, como palavras que deveriam ser escritas na bandeira da França. Mais do que estampar essas palavras em bandeiras nacionais, é imprescindível construir uma sociedade mais fraterna, com justiça social e com leis que resguardem, de fato, a dignidade humana e o bem comum.

Allan Kardec, cujo nome verdadeiro era Hippolyte Léon Denizard Rivail nasceu em 1804, ano em que Napoleão Bonaparte se autoproclamou imperador dos franceses. Sua formação intelectual se deu com base na cultura filosófica, científica e humanista de sua época.[3]  Kardec, como sabemos, foi o fundador de uma filosofia singular, espiritualista, racionalista, humanista, progressista, que descortinou e naturalizou a dimensão espiritual do ser humano.

Engana-se, no entanto, quem vê no espiritismo uma via de fuga diante dos desafios sociais, cujo foco é, tão somente, os problemas metafísicos. A discussão sobre os direitos naturais, os direitos humanos e justiça social, estão presentes no conjunto da obra kardequiana. Em O Livro dos Espíritos, considera-se que o primeiro de todos os “direitos naturais” do ser humano é o direito à vida, uma verdade autoevidente, um princípio inalienável.[4] Reconhecendo, ainda, que para sobreviver é necessário ao ser humano, possuir condições materiais de existência e de dignidade.[5]

Na terceira parte de O Livro dos Espíritos, intitulada: “As Leis Morais”, encontram-se o que podemos chamar de “teses sociais espíritas” que refletem sobre as funções do trabalho, da dinâmica social, da igualdade, da liberdade, do progresso, da justiça, amor e caridade. Os direitos humanos estão, inexoravelmente, no centro dessas discussões. Ao tratar, por exemplo, da “Lei de Liberdade”, o espiritismo se posiciona na defesa da liberdade de pensamento, de consciência e de crença, contra qualquer forma de intolerância e de escravidão:

 

Em sua acepção mais vasta, o livre-pensamento significa: livre-exame, liberdade de consciência, fé raciocinada; simboliza a emancipação intelectual, a independência moral, complemento da independência física; não quer mais escravos do pensamento, pois o que caracteriza o livre-pensador é que este pensa por si mesmo, e não pelos outros; em outros termos, sua opinião lhe é própria. Assim, pode haver livres-pensadores em todas as opiniões e em todas as crenças. Neste sentido, o livre-pensamento eleva a dignidade do homem, dele fazendo um ser ativo, inteligente, em vez de uma máquina de crer.[6]

 

Não era nada fácil, ainda no século XIX, defender a liberdade de expressão e de crença.[7] Nota-se no pensamento de Kardec, uma clara influência dos valores que permeavam a cultura progressista de sua época. No entanto, o espiritismo nascente oferecia novos elementos para essa cultura. O progresso da humanidade, na perspectiva da nova filosofia, estaria vinculado ao melhoramento intelectual e moral dos indivíduos, daí decorrendo o aperfeiçoamento da legislação humana e das relações sociais.[8] Na medida em que melhor conhece as “leis naturais”, que regem o Universo, o mundo físico e espiritual, o ser humano, pensava Kardec, tende a desenvolver um nível mais elevado de humanização. Essa ideia jamais deveria implicar, como veremos, num processo de alienação política dos indivíduos.

Na Revista Espírita, em março de 1871, é publicado um texto póstumo de Allan Kardec, que havia falecido em 31 de março de 1869. O título: “Liberdade, igualdade e fraternidade”[9], retomava ao ideário de uma nova ordem social. No texto, ele pondera que: “A fraternidade, na rigorosa acepção da palavra, resume todos os deveres do homem para com os semelhantes. Significa: devotamento, abnegação, tolerância, benevolência, indulgência”. Uma espécie de “programa”, segundo ele, capaz de se contrapor ao “egoísmo social”, um dos grandes males da humanidade.

Essa, de fato, parece ser uma das grandes questões que permeia o que Kardec chamou de “felicidade social”. Como é possível uma sociedade funcional, solidária e humanizada onde cada um só pensa em si mesmo e/ou em seu grupo? Obviamente, o sentido de “igualdade” numa sociedade disfuncional e desumanizada sobrevive com base nas legislações, mas permanece distante, na prática, da ideia de justiça social. A desigualdade das condições sociais, os preconceitos de classes, raciais e de gênero, são alguns exemplos vigorosos dessa lamentável e histórica realidade. Kardec, aponta um dos principais “inimigos” da igualdade: “O orgulho, que trabalha por ser o primeiro e por dominar; que vive de privilégios e de exceções e que aproveitará a primeira ocasião para destruir a igualdade social (...). Ora, sendo o orgulho uma das chagas sociais, é evidente que nenhuma sociedade terá a igualdade sem arrasar primeiro essa barreira”.[10]

Essa problemática é mais complexa, não se limitando apenas a uma perspectiva pessoal de melhoramento. Recordemos que a ideia de igualdade foi um dos pilares da declaração universal dos direitos do homem e do cidadão, uma “utopia possível”. Aliás, um mundo cujos alicerces seriam igualdade e fraternidade já havia sido pensado pelo humanista inglês Thomas Morus, em seu livro “Utopia”, escrito em 1516. Em contraponto à sociedade fortemente excludente de sua época, Morus imaginou uma ilha onde seus habitantes viviam pelo bem comum, sem classes, sem propriedade privada, sem exploração de uns sobre outros. Possivelmente, Morus tenha sido um dos pais daquilo que seria chamado de socialismo utópico.

Em O Livro dos Espíritos, Kardec indagou seus interlocutores espirituais sobre o problema da “desigualdade das condições sociais” e obteve como resposta: “É obra dos homens e não de Deus”.[11] Então, são os próprios seres humanos que necessitam resolver ou atenuar esse problema por eles criado, historicamente.

Perceba que o princípio da igualdade não contradiz o da diversidade. A filosofia espírita considera que a diversidade faz parte das múltiplas experiências do Espírito em sua trajetória evolutiva. Vivências sociais, étnicas, de gênero, de crenças, de ideologias, entre tantas outras, fazem parte do amplo contexto experiencial do ser. Por isso mesmo, a diversidade deve ser respeitada. Qual a beleza do arco-íris, sem o seu multicolorido? Qual o encanto do jardim, sem a diversidade das flores, com suas espécies e características próprias?

A diversidade de pensamentos, de culturas, de expressões estéticas, de tipos físicos, de cores, de etnias, de partidos, faz parte da riqueza da espécie humana. A igualdade defendida como um direito humano não é a uniformização da humanidade. Longe disso! Refletir sobre o tipo de civilização e de sociedade que construímos, marcada, entre outros, pela exploração e pela miséria, pelo preconceito, pela discriminação da mulher, pela homofobia e misoginia, é que necessita ser questionada. A igualdade é, justamente, o dever de se assegurar e respeitar os direitos humanos.

A teoria espírita aceita dois movimentos básicos pelos quais o progresso se desenvolve. O movimento interno, individual e pessoal, onde cada sujeito vai, dentro de seu ritmo próprio, enfrentando e superando seus condicionamentos, atavismos, vícios e preconceitos, ou seja, o seu egoísmo e seu orgulho, na construção de um humano mais humanizado. E o movimento externo, social, político, educacional, comunitário, jurídico, que visa aperfeiçoar os mecanismos coletivos de convivência. Os dois movimentos funcionam dialeticamente um sobre o outro.

Allan Kardec enfatiza, nesse sentido, que: “os preconceitos sociais, a rotina, o fanatismo, a intolerância e a ignorância” são inimigos do progresso.[12] Léon Denis, considerado um dos mais eminentes filósofos espíritas do século XIX, em suas conferências realizadas nas cidades de Tours Orléans, em 29 de fevereiro, e 4 de abril de 1880,  referindo-se ao progresso político e à situação social da França,  enfatizava o papel da cidadania:

 

A República democrática é a mais racional e a mais lógica forma de liberdade e só ela pode levantar, valorizar as almas que o despotismo humilhou. Só ela pode fazer a verdadeira igualdade entre os homens, sem rebaixar os grandes ao nível dos pequenos, porém, dando aos pequenos os meios de se elevarem gradualmente ao nível dos grandes, pela instrução, pela liberdade de trabalho e de associação, pela uniformidade dos direitos. O governo da República é a expressão da vontade nacional. O povo, reunido em seus comícios, nomeia seus representantes e estes elegem o chefe do poder. É, portanto, o povo que se governa a si próprio por meio do sufrágio universal. Cada cidadão participa da soberania. Uma nação republicana é um vasto organismo, um grande corpo, do qual cada eleitor é um membro.[13]

 

Governos despóticos, tiranos, absolutistas, autocráticos e ditatoriais são, por natureza, nocivos aos direitos humanos. Impõe censura, estruturas de repressão, intolerância e controle social, implementando a tortura e a morte como políticas de Estado. Nosso filósofo depositava grande esperança nos governos democráticos e no papel dos cidadãos. Estar no mundo é assumir, como lembrou Deolindo Amorim, reconhecido pensador espírita, compromissos diante das contingências sociais.[14] Léon Denis enfatiza ainda:

                                                                                        

Vede, cidadãos, quanto, com a República, nossa responsabilidade aumenta, pois a sorte de nosso País está em nossas mãos. Somos nós que, por nossas escolhas e nossos sufrágios, fazemos nossos destinos. Compreendei, agora, quanto é necessário que cada um de nós se esclareça e se aperfeiçoe, quanto é necessário que o julgamento de todos se fortifique, porque, eu vos pergunto, que faríamos dos direitos e das liberdades, se não soubéssemos emprega-los com sabedoria, com discernimento.[15]

 

A sociedade contemporânea, assim como na época de Kardec e de Denis, nos apresenta diariamente seus desafios humanos e sociais.  Vez por outra, ressurgem focos de intolerância, verdadeiros “tumores” degenerativos da tessitura social, conspirando contra os ideais progressistas, humanísticos e democráticos. O recrudescimento, nos últimos tempos, de ideologias (de Estado) que pregam um conservadorismo ufanista e retrógrado, sobre temas que envolvem sexualidade e família, por exemplo, com viés explicitamente patriarcal, machista e homofóbico, atualizam os debates sobre igualdade e direitos humanos.    Nesse sentido, segundo afirmou o filósofo francês Gilles Lipovetsky: “Quanto mais frustrante é a sociedade, mais ela promove as condições necessárias para uma re-oxigenação da vida”.[16] 

Para Lipovetsky, vivemos numa sociedade, apesar de todos os seus desafios, mais aberta do que no passado. Os modos de vida são cada vez mais mutáveis, baseados em um amplo leque de alternativas, escolhas e padrões. A época atual, oferece mais recursos para o enfrentamento das mazelas sociais. As sociedades no século 21 mudam com muito mais rapidez do que na época de Kardec. Existe uma frequente revisão e crítica dos descaminhos humanitários, realizada por organismos sociais, coletivos e instituições que, de alguma forma, pensam e lutam por uma sociedade melhor para todos.

 



[1] Pesquisador espírita, livre-pensador, autor de vários livros dentre os quais: “Morte, luto e imortalidade. Olhares e perspectivas, 2021.”

[2]ROBESPIERRE, Maximilien de. Discours Sur L’Organisation Des Gardes Nationales. Publié mi-décembre 1790 / Utilisé devant l’Assemblée Nationale les 27 & 28 avril 1791. XVI. Disponível em: https://books.google.com.br

[3] Allan Kardec conhecia os clássicos e traduziu obras da literatura francesa para o alemão, como Telêmaco, de Fénelon. Dominava fluentemente o latim, grego, italiano, holandês, inglês, gaulês e o castelhano. Foi um estudioso da filosofia grega, como pode ser observado em sua análise do pensamento filosófico de Sócrates e Platão, os quais considerou, ao lado de Jesus de Nazaré, como precursores do Espiritismo, na magistral introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Educado no humanismo pestalozziano, de nítida influência do pensamento ético e pedagógico de Rousseau, o fundador do Espiritismo possuía uma formação clássica, enciclopédica, típica dos humanistas de seu tempo.

LARA, Eugenio. Breve Ensaio sobre o Humanismo Espírita. Santos, SP: CPDoc, 2012. p.54-55.

[4] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 880. Princípio também defendido na Declaração de Independência Americana em 1776.

[5] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Questões 881 e 882.

[6] KARDEC, Allan. Livre pensamento e livre consciência. Revista Espírita. Fevereiro de 1867.

[7] Mesmo com a expansão das ideias liberais a França, na época em que Kardec escreveu esse texto, era governada por Napoleão III e seu governo ditatorial e repressor. Além disso, havia forte reação da Igreja às ideias de separação entre Estado e Religião.

[8] MOREIRA, Milton Medran. Direito e Justiça. Um olhar espírita. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2004. p.77.

[9] O mesmo texto será publicado, também, no livro: Obras Póstumas, lançado em 1890. Para alguns estudiosos, é necessária cautela em atribuir autoria de Allan Kardec aos tais textos, uma vez que somente foram publicados após sua morte. De qualquer forma, estou considerando, para efeito de análise, o conteúdo do próprio texto, mais do que o critério de autoridade atribuído ao seu autor.

[10] KARDEC, Allan. Liberdade, igualdade e fraternidade. In. Obras Póstumas. 14º edição. Revisão e notas. Herculano Pires. LAKE. p. 195.

[11] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 806.

[12] KARDEC, Allan. Revista Espírita. Junho de 1868,

[13] DENIS, Léon. O Progresso. Tradução: José Jorge. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições Léon Denis, 2005. p.44-45.

[14] AMORIM, Deolindo. Definição e opção. In. O Espiritismo e os problemas humanos. São Paulo: USE, 1985.

[15] DENIS, Léon. O Progresso. Conferência feita em Tours, na sala do Cirque, em 29 de fevereiro de 1880, e em Orléans, na sala do Instituto em 4 de abril de 1880. 2ª ed. Trad. José Jorge. Edições Léon Denis – RJ, 2005. p.45.

[16] LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade da Decepção. Trad. Armando Braio. Barueri-SP: Manole, 2007. p.74.

Decolonizar – Descolonizar – Contracolonizar – Ecologia decolonial

  Muito tem-se discutido sobre os temas acima, e gostaria de trazer o pensamento de alguns autores sobre eles. Nós que moramos no hemisfério...