sábado, 26 de outubro de 2024

Não há colônias espirituais, segundo a codificação







Muito se trata do que se passa nas chamadas “colônias” espirituais, no Movimento Espírita Brasileiro hegemônico, ou de como se vai para lá, sempre buscando justificar os relatos espirituais sobre elas.

Com efeito, a ideia de “cidades” ou “regiões” espirituais, etéreas, remonta à tradição religiosa antiga (Jerusalém celestial, Campos Elíseos, Ilha dos Bem-aventurados, andares do Inferno e do Paraíso dantescos, etc.), sendo retomadas por alguns médiuns em tempos mais próximos do surgimento do Espiritismo, como Swedenborg.

No entanto, como isso foi tratado por Kardec? Observando as obras fundamentais, vemos ali não a ausência do assunto, como se costuma pensar; ao contrário, constatamos a presença de relatos sobre essas “cidades” do além, por Espíritos e por médiuns extáticos, acompanhados da argumentação de Kardec pela recusa da realidade das mesmas.

         Neste artigo, veremos as tentativas feitas pelos espíritas para respaldar em conceitos kardecianos a realidade das “colônias”, decerto infrutíferas. Depois, identificaremos a qual matriz de pensamento espírita cabe a admissão dessas “cidades” e a sua razão de ser, bem como a razão da sua inexistência na matriz kardeciana. Por fim, conheceremos textos seletos de Kardec tratando do assunto e seus comentários a respeito. Importa conhecermos a visão trazida por Kardec sobre esse tema, de vez que – havendo o mau hábito da aceitação muitas vezes cega de relatos espirituais nos meios espíritas atuais –, o crivo racional, para todo espírita, é mais que bem-vindo: faz-se sempre necessário.

 

1. Tentativas infrutíferas de respaldar as “colônias” nas obras de Kardec

Costuma-se forçar um respaldo para as “colônias espirituais” em três conteúdos da doutrina espírita:

 

1) Mundos transitórios. As “colônias”, segundo seus defensores, teriam relação com os “mundos transitórios” (Livro dos Espíritos, questões 234 a 236). Assim, na edição comemorativa de 150 anos de O Livro dos Espíritos, pela editora FEB, o verbete “Colônias espirituais” remete aos “mundos transitórios”.

         Isso é simplesmente falso. Basta ler e se verificará que os mundos transitórios se referem a planetas não habitados por vida biológica, em que os Espíritos errantes aguardam enquanto planam pelo espaço. Interpretar que esses Espíritos construam “colônias espirituais” ao redor desses mundos implica em extrapolação das informações do texto doutrinário. Nada sobre isso é dito ou sugerido aí. Ademais, contradiz o que ele diz em outras passagens, como veremos.

        

2) Sociedades ou famílias de espíritos. As “colônias” seriam, ainda, para seus defensores, as chamadas “sociedades” ou “famílias” de Espíritos que se juntam por afinidade (indicadas no Livro dos Espíritos, questões 278 e 279).

Na verdade, essas sociedades, grupos ou famílias, que os Espíritos formam por afinidade de gostos, nada mais são do que isto mesmo: reuniões de Espíritos. Nada implica ou sugere a construção de casas, campos, cidades ou coisas que o valham, para essas reuniões acontecerem. A palavra “sociedade”, na doutrina, não é tomada no sentido de sociedade urbanizada ou cidade, mas no sentido análogo ao de uma “sociedade científica”, um grupo de amantes de certos assuntos que se associam, sem qualquer estrutura física ou fluídica exigida. Mais uma vez, aí nada se trata das tais “colônias”.

 

3) Laboratório do mundo invisível. Costuma-se também justificar a possibilidade das “colônias” pela explicação dada no “Laboratório do mundo invisível” (Livro dos Médiuns, parte II, cap. VIII), para construção das “cidades”.

Mas é patente que esse capítulo visa apenas explicar fenômenos mediúnicos de materialização e aparição. Explica-se que as vestimentas apresentadas pelos Espíritos quando aparecem, ou os objetos que carregam, são extensões dos seus perispíritos, que eles podem modelar para fins unicamente de reconhecimento. Não formam “cidades” com os fluidos. O capítulo nada diz, nem aventa a possibilidade, de cidades fluídicas permanecerem pairando no mundo espírita, para satisfação das “necessidades” físicas dos Espíritos. Muito menos “regiões” como “umbral”, para sofrimento. Não é isso o que a doutrina ensina. Se os Espíritos materializados mantêm certas “necessidades”, isso se deve a uma ilusão, que eles devem se esforçar por vencer, não alimentá-las ainda mais. (Voltaremos a esse tópico adiante.)

 

2. A matriz espírita americana, que não aceita a reencarnação, é que exige, por isso, a evolução dos Espíritos em “cidades” espirituais

As “esferas ou cidades espirituais” servem à matriz americana, que nega a reencarnação. Portanto, fica-se obrigado a crer que a evolução se faz na erraticidade. Por essa razão, transferem-se as experiências evolutivas para “esferas” ou “cidades” espirituais, que sirvam de ponte de aperfeiçoamento (e isso, não sem incorrer em contradições ou problemas).

Lemos em Kardec:

 

A reencarnação é, para eles [espíritas americanos], uma necessidade na qual não pensam senão quando ela chega; eles sabem que o Espírito progride, mas de que maneira? É para eles um problema. Então, se lhes perguntardes, eles vos falarão de sete céus superpostos como andares; há mesmo os que vos falarão da esfera do fogo, da esfera das estrelas, depois, da cidade das flores, da dos eleitos. (Allan Kardec, Livro dos Médiuns, abr. 1869, “Profissão de fé espírita americana”. Grifo nosso, assim nas passagens seguintes.)

 

         A doutrina codificada por Kardec não necessita dessa solução problemática, porque resolve a questão admitindo a reencarnação nos mundos como escola do progresso:

 

A única diferença [para o espiritismo americano] consiste em que o Espiritismo europeu [de Kardec] admite essa pluralidade de existências sobre a Terra, até que o Espírito nela tenha adquirido o grau de adiantamento intelectual e moral que comporta este globo, após o que o deixa por outros mundos, onde adquire novas qualidades e novos conhecimentos. (Allan Kardec, Revista Espírita, abr. 1869, “Profissão de fé espírita americana”.)

 

3. A recusa da ideia de cidades espirituais na obra de Kardec

Às vezes, tenta-se levianamente defender a ideia de que Kardec passou ao largo das ditas “cidades” ou “colônias” espirituais; que esses assuntos deveriam ser expostos depois da codificação, porque, na época, não se estava “preparado” para tais revelações... Ora, nada disso! Essas revelações, como lembramos acima, não constituem nenhuma novidade, pois são o paradigma antigo[1], superado pelo Espiritismo. Quanto a Kardec, seu material de estudo foi vastíssimo; seus métodos, suas observações e comparações, para estabelecer a concordância dos Espíritos, permanecem ainda inigualadas:

 

Interrogamos milhares deles, tendo pertencido a todos os postos da sociedade, a todas as posições sociais; estudamo-los em todos os períodos de sua vida espírita, desde o instante em que deixaram seu corpo; seguimo-los passo a passo nessa vida de além-túmulo para observar as mudanças que se operavam neles, em suas ideias, em suas sensações (...). (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 257.)

 

Em nossa posição, recebendo as comunicações de perto de mil centros espíritas sérios, disseminados sobre os diversos pontos do globo, estamos em condições de ver os princípios sobre os quais essa concordância se estabelece: é essa observação que nos tem guiado até este dia, e é igualmente a que nos guiará nos novos campos que o Espiritismo é chamado a explorar. (Allan Kardec, Evangelho segundo o Espiritismo, Introdução, nº II.)

 

Aqui, vimos que Kardec, sim, conheceu bem esse tema. Sabia que essa era a matriz de pensamento americana. Mais que isso, sabia que era a maneira pagã e cristã de pensar a “materialidade” das penas, aliás, comentada e refutada por ele em O Céu e o Inferno, primeira parte.

Kardec recebeu diversas comunicações sobre o assunto, mas, com base na razão e no controle universal, recusou esse “ensinamento”, mostrando, para tanto, os problemas que o envolvem. Vejamos como o codificador trata do assunto, em algumas de suas passagens brilhantes.

Kardec comenta as impressões do Espírito Voltaire acerca de construções espirituais, recusando-as como um caso de “influência das ideias terrestres” sobre as ideias espirituais:

 

Voltaire: “(...) Era, tenho dito, como zombeteiro e lançando o desafio que abordei o mundo espírita. Primeiro, fui conduzido longe das habitações dos Espíritos, e percorri o espaço imenso. Em seguida, foi-me permitido lançar o olho sobre as construções maravilhosas das moradas espíritas e, com efeito, elas me pareceram surpreendentes; fui impelido, cá e lá, por uma força irresistível; devi ver, e ver até que a minha alma fosse transbordada pelos esplendores, e esmagada diante do poder que controlava tais maravilhas. Enfim, fui querer me esconder e me encolher nas cavidades dos rochedos, mas não o pude. (...) Eu estava, enfim, de tal modo caído de cansaço e de humilhação, que me foi permitido me juntar a alguns dos habitantes. Foi daqui que pude contemplar a posição que me fizera sobre a Terra, e a que disso resultava para mim no mundo espírita. Deixo-vos crer se essa apreciação devia me sorrir. Uma revolução completa, uma convulsão de cima a baixo teve lugar em meu organismo espírita, e, de mestre que eu fora, tornei-me o aluno mais ardente. (...)”

Nota [de Kardec]: (...) Jamais, talvez, um quadro mais grandioso e mais impressionante foi dado do mundo espírita, e da influência das ideias terrestres sobre as ideias de além-túmulo. (Allan Kardec, Revista Espírita, set. 1859, “Confissão de Voltaire”.)

 

Observando as condições materiais do paraíso islâmico, Kardec comenta:

 

Tal é o famoso paraíso de Maomé sobre o qual tanto se divertiu, e que nós seguramente não procuraremos justificar. Diremos somente que estava em harmonia com os costumes desses povos, e que devia afagá-los bem mais que a perspectiva de um estado puramente espiritual, por esplêndido que fosse, porque eles eram demasiado materiais para compreendê-lo e lhe apreciarem o valor; era-lhes preciso alguma coisa de mais substancial, e pode-se dizer que eles foram servidos a contento. Notar-se-á, sem dúvida, que os rios, as fontes, os frutos abundantes e as sombras nele desempenham um grande papel, pois está aí o que falta sobretudo aos habitantes do deserto. Leitos macios e roupas de seda, para pessoas habituadas a deitar sobre a terra e vestidas de grossas coberturas em pele de camelo, deviam também ter um grande atrativo. Por ridículo que tudo isso nos pareça, pensemos no meio onde vivia Maomé e não o repreendamos demais, uma vez que, com a ajuda desse atrativo [fr.: appât, “isca, chamariz”], ele soube tirar um povo da barbárie e dele fazer uma grande nação. (Allan Kardec, Revista Espírita, nov. 1866, “Maomé e o islamismo, 2º artigo”.)

 

As partes destacadas mostram que, para Kardec, coisas como roupas, fontes, frutos, camas, etc. na erraticidade são, hoje, algo “ridículo”, sendo próprio da crença materializada de outrora. Ele diz que “seguramente não pretende justificar” a existência dessas coisas no além – também nós não deveríamos fazê-lo. Além disso, que tudo não passava de um “atrativo” ou para levar um povo materializado ao progresso. Nada aí é aceito ou justificado como real; antes, tudo passa apenas por crenças baseadas em costumes próprios ao meio material em que o povo vivia então.

Seguindo o tema, a doutrina trazida nas obras de Kardec ensina que não há lugares circunscritos (como deveriam ser as tais “colônias”, ou “regiões” como “umbral” etc.), nem para alegrias, nem para sofrimentos dos Espíritos. Como se sabe, eles estão por toda parte e portam consigo seu estado feliz ou infeliz, onde estiverem:

 

As penas e os gozos são inerentes ao grau de perfeição dos Espíritos; cada um tira de si mesmo o princípio de sua própria felicidade ou infelicidade; e, como eles estão por toda parte, nenhum lugar circunscrito nem fechado é afeito a um antes que ao outro. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, questão 1.012.)

 

O sofrimento estando ligado à imperfeição, como o gozo o está à perfeição, a alma leva em si mesma seu próprio castigo por toda parte onde se encontra: não há necessidade para isso de um lugar circunscrito. (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, 1ª parte, cap. VII, “Código Penal da vida futura”, 5º.)

 

Onde ficam, portanto, os Espíritos? Ora: no espaço, havendo apenas a limitação de sua vontade, condicionada ao seu adiantamento:

 

Oh! decerto, não sou mais de vosso mundo. (...) Sou Espírito; minha pátria é o espaço. (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, 2ª parte, cap. II, “Sr. Sanson”, nº 2.)

 

Nada mais de corpo material, nada mais de vida terrestre: a vida imortal! Nada mais de homens carnais, mas formas leves, Espíritos que deslizam de todos os lados, giram em torno de vós e que não podeis abarcar todos com o olhar, pois é no infinito que eles flutuam! Ter diante de si o espaço e poder transpô-lo só pela vontade; comunicar-se pelo pensamento com tudo o que vos rodeia! Amigo, que vida nova! (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, 2ª parte, cap. II, “Sr. Van Durst”.)

 

Léon Denis responde, mais tarde, de modo bem direto:

 

16. Onde estava a alma antes de se encarnar em um corpo?

R. – No espaço; o espaço é o lugar dos Espíritos, como o mundo terrestre é o lugar dos corpos.

18. O que é o espaço?

R. – É a imensidade, quer dizer, o infinito onde se movem os mundos, a esfera sem limites que nosso pensamento limitado não pode nem conceber nem definir. (Léon Denis, Síntese espiritualista doutrinal e prática, cap. I, nºs 16 e 18.)

 

Eles ficam no espaço; mas também ficam por aqui, entre nós, sem obstrução.

 

[Os Espíritos são] as almas mesmas daqueles que viveram sobre a Terra, onde deixaram seu envoltório corporal, que povoam os espaços, nos rodeiam e nos acotovelam sem cessar. (Allan Kardec, O que é o Espiritismo, cap. I, Primeiro diálogo, “Origem das ideias espíritas modernas”.)

 

Pelo conhecimento que o Espiritismo nos dá da natureza dos Espíritos, sabe-se que um Espírito pode estar entre nós, não somente pelo pensamento, mas de sua pessoa, com a ajuda de seu corpo etéreo, que dele faz uma individualidade distinta. Um Espírito pode, portanto, habitar entre nós após a morte, tão bem quanto quando vivo em seu corpo; e melhor ainda, uma vez que pode vir e se ir quando quer. Nós temos, assim, uma multidão de comensais invisíveis, uns indiferentes, outros que nos são apegados pela afeição. (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, 2ª parte, cap. II, “Jobard”, nº 4.)

 

As referências que as obras mediúnicas atuais, pretensamente alinhadas com Kardec, trazem sobre as tais colônias ou “cidades” espirituais nos dizem que lá persistem ainda necessidades “físicas” para os Espíritos, que as sentem no perispírito; que essas “cidades” constituem lugares circunscritos; que, uma vez nessas “colônias”, há para muitos Espíritos vários impedimentos para irem a outros lugares ou mesmo para visitarem seus afins; que os Espíritos sofrem de fadiga e de enfermidades diversas no perispírito, que se submetem a “trabalhos”, além de materializados, constrangedores e desagradáveis; que há “espíritos” de animais lá, etc. (Ver Nosso Lar e assemelhados). Pois bem, tudo isso vem expressamente negado na obra de Allan Kardec.

É preciso dizer logo que não há necessidades “físicas” na erraticidade. Sequer há uma “fisiologia” do perispírito. É o que se constata pela concordância universal e pela lógica. Os Espíritos, quando falam de “fome, sede, frio, calor, fadiga etc.”, falam por repercussão moral ou lembrança (reminiscência); essas sensações não são uma realidade como em nós, encarnados. São, sim, “ilusões”, que importa desfazer pelo esclarecimento, ainda que sem fruto imediato, e não alimentar ou administrar:

 

“... Mas tive também sob os olhos o espetáculo atroz da fome entre os Espíritos. Encontrei lá em cima numerosos desses infelizes, que morreram nas torturas da fome, procurando ainda satisfazer em vão uma necessidade imaginária, lutando uns contra os outros para se arrancar um retalho de comida que se furta sob suas mãos ... Numerosos desses infelizes me reconheceram, e seu primeiro grito foi: Pão! É em vão que eu tentava lhes fazer compreender sua situação; eles estavam surdos às minhas consolações.”

(...) A quem quer que não conheça a verdadeira constituição do mundo invisível, parecerá estranho que Espíritos que, segundo eles, são seres abstratos, imateriais, indefinidos, sem corpo, sejam vítimas dos horrores da fome; mas o espanto cessa quando se sabe (...) que, deixando o seu envoltório carnal, certos Espíritos continuam a vida terrena com as mesmas vicissitudes, durante um tempo mais ou menos longo. Isto parece singular, mas assim é, e a observação nos ensina que essa é a situação dos Espíritos que viveram mais a vida material do que a vida espiritual, situação por vezes terrível, porque a ilusão das necessidades da carne se faz sentir, e eles têm todas as angústias de uma necessidade impossível de saciar. O suplício mitológico de Tântalo, entre os antigos, acusa um conhecimento mais exato do que se supõe do estado do mundo de além-túmulo, sobretudo mais exato do que entre os modernos. (Allan Kardec, Revista Espírita, jun. 1868, “Morte do Sr. Bizet, cura de Sétif – A fome entre os Espíritos”.)

 

Para melhor me expressar, compararei a morte a uma viagem (como Kardec fazia muitas vezes). Se não temos o mapa nem estudamos sobre o lugar para onde vamos, a confusão ao chegar será grande. Tal é o estado do materialista, que sequer pensa no mundo espírita. Por outro lado, ter um mapa errado e estudar informações equivocadas sobre o destino produzirá confusão e sofrimento não menos penosos! É o caso dos que “procuram informações”, sem controle, sobre o mundo espírita. A orientação espírita é: estudar, com lógica e exame constantes, a partir das informações mais garantidas, passadas pelo controle.

Sendo assim, importa que se busque desiludir os Espíritos que ainda se acham em confusão (por exemplo, sentindo necessidades e sensações corporais). O ideal, porém, é que eles busquem se esclarecer: largar as ilusões é passo sofrível, mas possível e desejável, pelo estudo, mesmo na erraticidade, como se lê nesses exemplos:

 

“Meus amigos, já sofri muito repassando as ilusões com as quais alimentei meu espírito: não vos enganeis. Eu aprendera muito, e, posso dizê-lo, minha inteligência, pronta a se apropriar desses vastos e diversos estudos [espíritas], guardara de minha última encarnação o amor do maravilhoso e do composto, haurido nas imaginações populares. Ocupei-me ainda pouco das questões puramente intelectuais no sentido em que o tomais.” (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, parte II, cap. II, “Jobard”.)

 

“Eu vos espero [membros da Sociedade Espírita de Paris], e durante o tempo em que estiverdes sobre a Terra, virei frequentemente me instruir perto de vós, pois não sei ainda tanto quanto muitos dentre vós; mas o aprenderei depressa aqui onde não tenho mais entraves que me retenham e onde não tenho mais idade que enfraqueça minhas forças. Aqui se vive em linhas gerais [fr.: à grands traits, lit.: em grandes traços, sem pormenores] e se avança.” (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, parte II, cap. II, “Sr. Van Durst”.)

 

Sobre a questão do perispírito, é preciso reconhecer que nele não há “órgãos”, nem sensoriais (porque, na erraticidade, ele todo sente, a sensação sendo “geral”), nem fisiológicos; não se deve confundir as “sensações” do Espírito com as do corpo. Isso é bastante frisado, repetidamente, na codificação:

 

[O perispírito] é, além disso, o agente das sensações exteriores. No corpo, os órgãos, servindo-lhe de condutos, localizam essas sensações. Destruído o corpo, elas se tornam gerais. Daí o Espírito não dizer que sofre mais da cabeça do que dos pés, ou vice-versa. Não se confundam, porém, as sensações do perispírito, que se tornou independente, com as do corpo. Estas últimas só por termo de comparação as podemos tomar e não por identidade. Libertos do corpo, os Espíritos podem sofrer, mas esse sofrimento não é corporal. (...) A dor que sentem não é, pois, uma dor física propriamente dita: é um vago sentimento íntimo, que o próprio espírito nem sempre compreende bem, precisamente porque a dor não se acha localizada e porque não a produzem agentes exteriores; é mais uma reminiscência do que uma realidade, reminiscência, porém, igualmente penosa. ... Todos [os Espíritos], porém, assim os inferiores como os superiores, não ouvem, nem sentem, senão o que queiram ouvir ou sentir. Não possuindo órgãos sensitivos, eles podem, livremente, tornar ativas ou nulas suas percepções. Uma só coisa são obrigados a ouvir: os conselhos dos Espíritos bons. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 257, §2,6).

 

[Os Espíritos] não podem sentir a fadiga, como a entendeis; conseguintemente, não precisam de descanso corporal, como vós, pois que não possuem órgãos cujas forças devam ser reparadas. O Espírito, entretanto, repousa, no sentido de não estar em constante atividade. Ele não atua materialmente. Sua ação é toda intelectual e inteiramente moral o seu repouso. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 254.)

 

O Espírito, apanhado no imprevisto, está como que atordoado; mas, sentindo que pensa, acredita que ainda está vivo, e essa ilusão dura até que se tenha dado conta de sua posição. Esse estado intermediário entre a vida corporal e a vida espiritual é um dos mais interessantes de estudar, porque apresenta o singular espetáculo de um Espírito que toma seu corpo fluídico pelo seu corpo material, e que experimenta todas as sensações da vida orgânica. Ele oferece uma variedade infinita de nuanças segundo o caráter, os conhecimentos e o grau de adiantamento moral do Espírito. (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, parte II, cap. I, nº 12.)

 

O envoltório semimaterial [perispírito] do Espírito constitui uma espécie de corpo, de forma definida, limitada e análoga à do corpo físico. Mas esse corpo não tem os nossos órgãos e não pode sentir todas as nossas impressões. ... Há sensações que têm por fonte o próprio estado dos nossos órgãos. Ora, as necessidades inerentes ao corpo não podem se verificar desde que não existe mais o corpo. Assim, pois, o Espírito não experimenta fadiga, nem necessidade de repouso ou de alimentação, porque não tem nenhuma perda a reparar. Ele não é acometido por nenhuma de nossas enfermidades. As necessidades do corpo determinam necessidades sociais, que para eles não existem. (Allan Kardec, Revista Espírita, abr. 1859, “Quadro da vida espírita”, §6 e 10).

 

Assim, todos os motivos que servem de pretexto e/ou que compõem o quadro da vida espiritual em “cidades” ou “colônias” vêm diretamente desconstruídos nas obras fundamentais, como nesta passagem bem completa:

 

Que se ganha, então, em estar no outro mundo, dirão certas pessoas, se aí não se goza do repouso? A isso lhes perguntaremos primeiro se não é nada não ter mais nem cuidados, nem as necessidades, nem as enfermidades da vida, ser livre, e poder, sem fadiga, percorrer o espaço com a rapidez do pensamento, ir ver seus amigos a toda hora, a qualquer distância em que se encontrem? Depois acrescentaremos: Quando estiverdes no outro mundo, nada vos forçará a fazer o que quer que seja; sereis perfeitamente livres para permanecer numa beata ociosidade tão longo tempo quanto isso vos aprouver; mas cansareis logo desse repouso egoísta. (...) É assim que a atividade espiritual não é um constrangimento; ela é uma necessidade, uma satisfação para os Espíritos que buscam as ocupações em relação com seus gostos e aptidões, e escolhem de preferência as que podem ajudar em seu adiantamento. (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, 2ª parte, cap. II, “O Doutor Demeure”, nota.)

 

Note-se que essas atividades espirituais não são as quiméricas atividades “institucionais” ou “sociais”, de uma “cidade” ou “região” do além, mas aquelas bem descritas nas obras de Allan Kardec: Livro dos Espíritos, parte II, cap. X, “Ocupações e missões dos Espíritos”, nºs 558 a 569; também, sinteticamente: O Céu e o Inferno, parte I, cap. III, nº 13.

Prosseguindo no assunto, Kardec explica que a materialidade das descrições do mundo espírita, feitas pelos Espíritos na erraticidade, se deve à sua inferioridade ou ignorância. Não podem ser aceitas sob palavra, pois os Espíritos falam a partir das ideias materiais que tinham quando encarnados:

 

Quando são inferiores, e não completamente desmaterializados, eles [os Espíritos] conservam uma parte de suas ideias terrestres, e rendem suas impressões pelos termos que lhes são familiares. Encontram-se num meio que lhes permite sondar apenas medianamente o porvir, é o que causa que frequentemente Espíritos errantes, ou recentemente desprendidos, falem como o teriam feito em sua vida. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, questão 1.014.)

 

“(...) Quando se pergunta a um Espírito se ele está no inferno; se é infeliz, dirá sim, porque, para ele, inferno é sinônimo de sofrimento; mas ele sabe muito bem que não é uma fornalha. Um pagão teria dito que estava no Tártaro.” Dá-se o mesmo com outras expressões análogas, tais como as de cidade das flores, cidade dos eleitos, primeira, segunda ou terceira esfera, etc., que não são senão alegorias empregadas por certos Espíritos, seja como figuras, seja, algumas vezes, por ignorância da realidade das coisas e mesmo das mais simples noções científicas. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, questão 1.017.)

 

Quanto a “espíritos” de animais passeando por esses supostos ambientes da erraticidade, ou perambulando entre nós ou em qualquer parte no mundo dos Espíritos, não podem existir, conforme se lê expressamente no Livro dos Médiuns:

 

“Após a morte do animal, o princípio inteligente que estava nele está num estado latente; ele é imediatamente utilizado por certos Espíritos encarregados desse cuidado para animar novos seres nos quais continua a obra de sua elaboração. Assim, no mundo dos Espíritos, não há Espíritos de animais errantes, mas somente Espíritos humanos.” (Allan Kardec, Livro dos Médiuns, pt. II, cap. XXV, nº 283, q. 36ª.)

 

Por fim, mesmo as percepções dos médiuns extáticos, dando conta de “cidades espirituais”, tampouco podem ser aceitas, visto que essas “cidades” não existem, que tais revelações são muito inseguras e que estão imbuídas de ideias terrestres e crenças hauridas ao longo da vida desses médiuns:

 

Pareceria, segundo o relato da santa, que há cidades no inferno; ela viu ali, ao menos, uma espécie de ruela longa e estreita, como há tantas nas velhas cidades; ela entrou lá, andando com horror sobre um terreno lamacento, fétido, onde pululavam monstruosos répteis; mas foi detida em sua marcha, por uma muralha que barrava a ruela; nessa muralha havia um nicho onde Teresa se enfiou, sem nem saber como isso aconteceu. (...) Outros viajantes espirituais foram mais favorecidos. Viram no inferno grandes cidades em fogo, Babilônia e Nínive, mesmo Roma, seus palácios e seus templos abrasados, e todos os habitantes acorrentados; o traficante, ao seu balcão, sacerdotes reunidos com cortesãos em salas de festins, e urrando em seus assentos dos quais não se podiam mais arrancar, e levando aos lábios, para matar a sede, taças de onde saíam chamas. (...) Dispersavam-se em bandos até o horizonte, indo buscar ao longe, mas em vão, terras mais venturosas, e logo eram substituídos, nos campos que abandonavam, por outras colônias errantes de danados. Houve quem visse no inferno montanhas cheias de precipícios, florestas gementes, poços sem água, fontes alimentadas pelas lágrimas, ribeiros de sangue, turbilhões de neve em desertos de gelo, barcas de desesperados vogando sobre mares sem praias. Reviu-se aí, numa palavra, tudo o que os pagãos ali viam, um reflexo lúgubre da terra, uma sombra desmedidamente aumentada de suas misérias, seus sofrimentos naturais eternizados, e até os calabouços e patíbulos, e instrumentos de tortura que nossas próprias mãos forjaram.”

(...) Pergunta-se como homens puderam ver essas coisas no êxtase, se elas não existem. Não é aqui o lugar de explicar a fonte das imagens fantásticas que se produzem às vezes com as aparências da realidade. Diremos somente que é preciso ver nisso uma prova do princípio de que o êxtase é a menos segura de todas as revelações, porque esse estado de superexcitação não é sempre o feito de um desprendimento da alma tão completo quanto se poderia crer, e que aí se encontra bem frequentemente o reflexo das preocupações da véspera. (...) Os extáticos de todos os cultos sempre viram coisas em relação com a fé de que estavam penetrados; não é então surpreendente que aqueles que, como Santa Teresa, estão fortemente imbuídos das ideias do inferno, tais como as apresentam as descrições verbais ou escritas e os quadros, tenham visões que não são, propriamente falando, senão a reprodução daquelas, e produzam o efeito de um pesadelo. Um pagão cheio de fé teria visto o Tártaro e as Fúrias, como teria visto, no Olimpo, Júpiter tendo o raio em mão. (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, 1ª parte, cap. IV, “Quadro do inferno cristão”, nºs 12, 15.)

 

Pelo que já vimos, temos resolvida a questão da inexistência de organizações “sociais” – tais como colônias ou cidades – no mundo espiritual. Com seu raciocínio sintético, Allan Kardec deixa patente:

 

(...) É preciso se reportar a este princípio fundamental, de que, entre os Espíritos, há deles de todos os graus em bem e em mal, em ciência e em ignorância; que os Espíritos pululam em torno de nós, e que, quando cremos estar sós, estamos, sem cessar, rodeados de seres que nos acotovelam, uns com indiferença como estranhos, outros que nos observam com intenções mais ou menos benevolentes segundo sua natureza. O provérbio: “Quem se assemelha se assembleia” tem sua aplicação entre os Espíritos como entre nós, e mais ainda entre eles, se é possível, porque eles não estão, como nós, sob a influência de considerações sociais. (Allan Kardec, Revista Espírita, fev. 1859, “Escolho dos médiuns”.)

 

As necessidades do corpo acarretam necessidades sociais, que não existem mais para os Espíritos; assim, para eles, os cuidados (...) que se dão para se proporcionar as necessidades ou as superfluidades da vida não existem mais. (Allan Kardec, Revista Espírita, abr. 1859, “Quadro da vida espírita”.)

 

Luiz Gustavo Oliveira dos Santos

Brasília-DF, 03 ago. 2022.

 

P. S. – Agradecimentos especiais ao irmão e amigo Sérgio F. Aleixo, que há muito busca abrir os olhos dos confrades (entre os quais felizmente me incluo) para essa e outras questões, disseminando valorosamente o conhecimento espírita embasado em Kardec, de que procuramos, ainda imperfeitamente, aproveitar, e estimulando a pesquisa constante.



[1] O mesmo se dá com as chamadas “regiões” de purgação ou sofrimento, tais como o famigerado “umbral” (descrito em Nosso Lar e sequências), onde, diz-se, os Espíritos tomam formas animalescas e onde se chega a beber lama!... Isso nada tem de novo, encontra-se coisa semelhante nas crenças primitivas dos povos mesopotâmicos sobre a vida depois da morte: “Segundo as crenças mesopotâmicas, os mortos precisavam atravessar um deserto, montanhas e um rio e depois descer, passando pelas sete portas do mundo inferior. Embora descrito na literatura mesopotâmica como um lugar de escuridão onde os habitantes se vestiam de penas de aves e comiam terra, relatos mais amenos também eram comuns.” (Walton, J; Mathews, V.; Chavalas, M. Comentário Bíblico Atos: Antigo Testamento. Belo Horizonte: Atos, 2003, p. 625.) 

segunda-feira, 1 de abril de 2024

I Congresso Ágora Espírita



Estamos muito felizes em te convidar para o I Congresso Ágora Espírita! Este é um evento que visa contribuir para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária, fraterna e sustentável.


O congresso ocorrerá nos dias 19 e 20 de outubro de 2024, no Auditório do Sindicato dos Bancários de Pernambuco, localizado na Av. Manoel Borba, 564 — Boa Vista, Recife–PE.


O tema do congresso é “O Espiritismo, a produção de Saberes e as Relações com a Contemporaneidade”. Teremos a presença de debatedoras e debatedores de todo o Brasil, incluindo Andréia Luz, Alexandre Júnior, Beatriz Severo, Elias Moraes, Flávio Calazans (A Calazans), Isabel Guimarães, Lidia Valesca Pimentel, Mª Alice Borges, Rodrigo Sales, Saulo Monteiro e Yan Lucca.


Os ingressos estão disponíveis nos seguintes valores:


De 2 de abril de 2024 até 2 de Maio de 2024: R$ 50,00

De 3 de Maio até 2 de Junho: R$ 60,00

De 3 de junho até 12 de outubro: R$ 70,00


Além das discussões enriquecedoras, haverá venda de livros no local. Para mais informações, visite nosso site www.agoraespirita.com.br ou siga-nos no Instagram @agoraespirita.


Para se inscrever, acesse o formulário de inscrição: https://forms.gle/B4t96wfCAsdy5ZQZ8


Lembre-se, as inscrições são individuais. Se desejar inscrever mais de uma pessoa, por favor, preencha um novo formulário para cada uma.


O pagamento pode ser feito via PIX para o endereço: grupoagoraespirita@gmail.com (PicPay). Através desta chave PIX podem ser feitas doações para a realização do nosso congresso. O comprovante de pagamento deve ser anexado ao final do formulário de inscrição.


Para qualquer dúvida, entre em contato conosco pelo WhatsApp:


Alexandre: (81) 98468 0215

Yan: (81) 99612 5296


Esperamos te encontrar por lá!

 

terça-feira, 26 de março de 2024

Decolonizar – Descolonizar – Contracolonizar – Ecologia decolonial





 Muito tem-se discutido sobre os temas acima, e gostaria de trazer o pensamento de alguns autores sobre eles. Nós que moramos no hemisfério sul do planeta, estamos refletindo sobre a colonização de nossos países, e seus desdobramentos.  A metrópole pode ser Portugal, Espanha, França, Inglaterra etc tanto faz, pois, a devastação que aconteceu e acontece em nossos territórios são iguais, modificando apenas a intensidade.

Decolonial – É o desligamento das metrópoles, por processo histórico-administrativos das ex-colônias. A “independência de muitos países” conseguindo deixar de ser submisso a sua metrópole, realizando sua própria administração e crescimento.

DESCOLONIAL – Apesar da diferença ser apenas por um “S”, é um movimento contínuo, de romper as amarradas com a colônia,  de tornar pensamentos e práticas cada vez mais livres da colonialidade, assumindo sua história, sua cultura, suas crenças etc.

Antonio Bispo, autor quilombola nos faz a seguinte reflexão: Adestrar e colonizar são a mesma coisa. Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-o de seus sagrados, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro nome. O processo de denominação é uma tentativa de apagamento de uma memória para que outra possa ser composta.

Todo adestramento tem a mesma finalidade: fazer trabalhar ou produzir objetos de estimação e satisfação. Contudo, não são todos os animais que conseguimos adestrar. Alguns ficam atrofiados fisicamente quando se exige do animal um esforço físico para além do que é capaz. Outros ficam atrofiados mentalmente – quando o animal recebe um choque mental violento.

Fanon relata: todo povo colonizado, isto é, todo povo em cujo seio se originou um complexo de inferioridade em decorrência do sepultamento da originalidade cultural local – se vê confrontado com a linguagem da nação civilizadora, quer dizer, da cultura metropolitana.

Aimé: “A colonização desumaniza até o homem mais civilizado; a ação colonial, o empreendimento colonial, a conquista colonial fundada no desprezo pelo homem nativo e justificada por esse desprezo, inevitavelmente, tende a modificar a pessoa que o empreende; o colonizador, ao acostumar-se a ver o outro como animal, ao treinar-se para tratá-lo como um animal, tende objetivamente, para tirar o peso da consciência, a se transformar, ele próprio, em animal.

Sociedades esvaziadas de si mesmas, culturas pisoteadas, instituições solapadas, terras confiscadas, religiões assassinadas, magnificências artísticas destruídas, possibilidades extraordinárias suprimidas. Milhões de homens em quem foram inteligentemente inculcados o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, o ajoelhar-se, o desespero, o servilismo”.

Apesar dos autores falarem de homem como ser humano, trago uma reflexão de Vergè sobre as mulheres que diz: “Todos os dias, em todo lugar, milhares de mulheres negras, racializadas, “abrem” a cidade. Elas limpam os espaços de que o patriarcado e o capitalismo neoliberal precisam para funcionar. Elas desempenham um trabalho perigoso, mal pago e considerado não qualificado, inalam e utilizam produtos químicos tóxicos e empurram ou transportam cargas pesadas, tudo muito prejudicial à saúde delas. Geralmente viajam por longas horas de manhã cedo ou tarde da noite. Um segundo grupo de mulheres racializadas, que compartilha com o primeiro uma interseção entre classe, raça e gênero, vai às casas da classe média para cozinhar, limpar, cuidar das crianças e das pessoas idosas para que aquelas que as empregam possam trabalhar, praticar esporte e fazer compra nos lugares que foram limpos pelo primeiro grupo de mulheres racializadas.

Essa economia do esgotamento dos corpos está historicamente ancorada na escravatura. O medo é uma de suas armas preferidas para produzir conformismo e consentimento. A colonialidade que institui uma política de vidas descartáveis.

Os objetivos das políticas desses patriarcas são os mesmos: servir ao capitalismo racial, explorar, extrair, dividir, despojar, decidir quais vidas importam e quais não importam”.

“Economias naturais, harmoniosas e viáveis, na medida do homem indígena que foram desorganizadas, culturas alimentares destruídas, subnutrição instalada, desenvolvimento agrícola orientado para o benefício único das metrópoles, roubo de produtos, roubo de matérias-primas. Cada dia que passa, cada negação de justiça, cada blitz policial, cada manifestação operária afogada em sangue, cada escândalo abafado, cada expedição punitiva, cada viatura, cada policial e cada milícia nos fazem sentir o preço de nossas antigas sociedades. Eram sociedades comunitárias, nunca de todos para alguns. Eram sociedades anticapitalistas, democráticas, cooperativas, sociedades fraternas”. (Aimé)

Galeano, no seu livro esplêndido, relata como todos os países da América Latina foram colonizados, suas populações originais e as racializadas sofreram e sofrem grandes destruições, por vezes, povos inteiros exterminados. “ En América Latina es lo normal: siempre se entregan los recursos en nombre de la falta de recursos. El siempre soplo de las glorias y el peso siempre perdurable de las catástrofes. La ley de la ganancia puede más que todas las leyes”.

Antonio Bispo: “A cidade é um território arquitetado exclusivamente para os humanos. Qualquer outra vida que tenta existir na cidade é destruída. Para andar descalço, é preciso desinfetar o chão. A humanidade se desconectou da natureza.

Os humanos não se sentem como entes do ser animal. Essa desconexão é um efeito da cosmofobia. Na cidade, as pessoas têm medo de gente. A cidade é um território colonialista. Os povos da cidade precisam acumular. A cultura é uma coisa padronizada, mercantilizada, colonial. Só precisa armazenar quem não confia, quem tem medo da natureza não fornecer, medo da natureza castigar.

A cosmofobia é responsável por esse sistema cruel de armazenamento, de desconexão, de expropriação e de extração desnecessária. Porque existe tanto lixo? O desperdício é um resultado da cosmofobia”.

 Ferdinand:  começa desfazendo um equívoco recorrente em análises contemporâneas provenientes tanto do movimento ambiental como do movimento antirracista e decolonial: a separação entre a questão ecológica e a questão colonial. Essa “dupla fratura”, como ele define, impede perceber em que medida a destruição do meio ambiente e o legado colonial estão inextricavelmente ligados, tanto em sua origem como em suas nefastas consequências.

“Habitar a Terra começa nas relações com os outros. Assim, o habitar colonial designa uma concepção singular da existência de certos humanos sobre a Terra – os colonizadores-, de suas relações com outros humanos – os não colonizadores-, assim como de suas maneiras de se reportar à natureza a aos não humanos.

Além dessas vidas, o ecossistema como um todo foi sendo destruído no processo de exploração colonial da Terra e de escravização Negra, processos que serviram de base para a modernidade, pois embora todo mundo seja exposto a ecossistemas contaminados, permanecem grupos de senhores proprietários, cujos interesses financeiros coincidem com as contaminações perenes da Terra, nessa configuração do habitar colonial em que a condição tóxica, é a um só tempo, a consequência da exploração capitalista desses ecossistemas por seus senhores e a causa que reforça a dominação de tais territórios por esses mesmos senhores”.

Malcom vai nos mostrando esta dupla fratura (ambiental e colonial) como um problema central da crise ecológica, que abala as maneiras como esta é pensada e as suas traduções políticas.

“A fratura ambiental decorre desta “grande partilha” da modernidade, a oposição dualista que separa natureza e cultura, meio ambiente e sociedade, estabelecendo uma escala vertical de valores que coloca “o Homem” acima da natureza. Tal fratura abrange também uma homogeneização horizontal e esconde as hierarquizações internas de ambas as partes. Os termos “planeta”, “natureza” ou “meio ambiente” escondem a diversidade de ecossistemas, dos lugares geográficos e dos não humanos que os constituem. Florestas, montanhas, e reservas naturais mascaram as imagens das naturezas urbanas, das favelas e das plantações.

A fratura animal como as hierarquizações entre animais selvagens “nobres”, e os animais domésticos são colocados acima dos animais de criação.

“ Racismo ambiental” A descriminação racial na elaboração de políticas ambientais, a aplicação de regulamentos e leis, o direcionamento deliberado de comunidades racializadas para instalações de resíduos tóxicos, a sanção oficial da presença de venenos e poluentes que representam uma ameaça à vida em nossas comunidades e a história da exclusão de pessoas racializadas dos espaços de liderança nos movimentos ecológicos.  Dr. Benjamin Chavis.

O racismo não adentra o cenário simplesmente como fator determinante da maneira como os perigos ambientais são vividos de forma desigual pelos seres humanos, ele cria as próprias condições de possibilidades de ataques contínuos ao meio ambiente, inclusive aos animais humanos e não humanos, cujas vidas são sempre desvalorizadas pelo racismo, pelo patriarcado e pelo especismo.

Ecologia decolonial articula a confrontação das questões ecológicas contemporâneas com a emancipação da fratura colonial, com a “saída do porão do navio negreiro”. Trata-se de questionar as maneiras coloniais de habitar a Terra e de viver junto. O confronto das destruições ecossistêmicas está intimamente ligado a uma exigência de igualdade e de emancipação. Ela compreende também relações específicas com não humanos, paisagens e terras.

Da Fratura ambiental à Fratura colonial e vice-versa, tem como questão central a crise ecológica, decorrente da constatação de que a poluição, as perdas de biodiversidade e o aquecimento global são os vestígios materiais desse habitar colonial da Terra, compreendendo desigualdades sociais globais, discriminações de gênero e de raça.

As exclusões sociais e políticas dos ex-escravizados, dos pobres, dos racializados e das mulheres manifestam-se também por meio da contaminação de seus corpos biológicos pelos produtos tóxicos das plantações e das fábricas, pelas desigualdades de exposição, de tratamento e de pesquisas médicas sobre as consequências dessas exposições.

Longe de uma oposição entre causa animal, causa Negra e causa feminista, essas diversas alianças interespécies contra o habitar colonial continuam sendo hoje as chaves de um “navio-mundo”. Um “navio-mundo” guiado pelos ventos da justiça, onde humanos e não humanos possam viver juntos.

Compor um mundo plural, diverso e transgeracional a partir das pluralidades humanas e não humanas na Terra. Essa tarefa desdobra-se, no mínimo, nos planos ontológicos, estético e político.

O fato de tudo estar conectado ao todo não permite, necessariamente, pensar como esse todo se torna o mundo nem pensar os desafios de igualdade e de justiça. O mundo é fruto de um agir conjunto. A ecologia do mundo requer uma cosmopolítica da relação”.

Antonio Bispo nos sugere:

“Modos e falas, para contrariar o colonialismo: Se o inimigo adora dizer desenvolvimento isso é ruim, a palavra boa é “envolvimento”. Para enfraquecer o desenvolvimento sustentável, nós trouxemos a biointeração; para a coincidência, trouxemos a confluência; para o saber sintético, o saber orgânico; para o transporte, a transfluência; para o dinheiro (ou a troca), o compartilhamento; para a colonização a contracolonização.... e assim por diante.

Antonio Bispo - O grande debate hoje é o debate decolonial, que só consigo compreender como a depressão do colonialismo, como a sua deteriorização, decomposição. É importante se defender, mas não é necessário atacar agora. Não precisamos destruir os colonialistas. Deixemos que vivam, desde que vivam com o sol deles e não venham roubar o nosso sol ou o nosso vento.  

O mundo é grande e tem lugar para todo mundo. O mundo é redondo exatamente para as pessoas não se atropelarem.

As pessoas falam de racismo, mas discutem o racismo apenas dentro da espécie humana. Mas a questão é mais ampla. Basta pensar nas variedades de peixes que tínhamos naquele tempo e em quantas temos hoje. Peixes que não são criados em cativeiros. Não são mais considerados peixes em alguns lugares. O racismo acontece contra todas as vidas. Não temos mais peixes nos rios porque jogam veneno nas plantações no período da piracema, durante a reprodução dos peixes. Desmataram as matas e não desce mais matéria orgânica para os rios. As águas que iam para o rio levando matéria orgânica agora vão levando veneno.

Nós pensamos sempre na circularidade, quebrando o monismo, a dualidade e o binarismo.

Quando eles falam em “globalizar”, estão dizendo “unificar”. Quando dizemos “globo”, estamos englobando e, ao mesmo tempo, reconhecendo as individualidades que existem dentro do globo. Essa é uma questão germinante, que precisa ser tratada e cultivada.

Dentro do reino animal, só existe política na espécie humana. Nas outras espécies, existe a autogestão.

A política é eurocristão monoteísta e a cosmopolítica também é uma invenção eurocristã. O nosso movimento é o movimento da transfluência. Transfluindo somos começo, meio e começo. Porque a gente transflui, conflui e transflui. Conflui, transflui e conflui. A ordem pode ser qualquer uma.

Os colonialistas, povos sintéticos, são lineares e não transfluem, eles apenas refluem, porque são o povo do transporte.  Os eurocristãos colonialistas só podem ir e refluir, porque não circulam, como nós o transporte vai e volta, em linha reta. Já no sistema cosmológico, não há refluência. A água não reflui, ela transflui, e por transfluir, chega ao lugar de onde partiu, na circularidade”.

Kardec já nos mostrava este caminho através das Leis morais, no livro 3 do livro dos Espíritos, principalmente com a Lei de Justiça, amor e caridade.

 “A lei de amor e de justiça proíbe que se faça a outrem o que não queremos que nos seja feito, e condena, por esse mesmo princípio, todo meio de adquirir que o contrarie”.

 

 

 

Bibliografia

 

Césaire Aimé: Discurso sobre o colonialismo. Ed. Veneta.

Fanon, Frantz: Pele negra, Máscaras Brancas. Ed. Ubu.

Ferdiand, Malcom – Uma ecologia decolonial – Pensar a partir do mundo caribenho. Ed. Ubu.

Galeano, Eduardo – Las venas abiertas de América Latina. Siglo Veintiuno editores.

Kardec, Allan – Livro dos Espíritos. Ed. Lake.

Santos, Antônio Bispo dos – A terra dá, a terra quer. Ed. Ubu.

Vergès, Francoise – Um feminismo decolonial. Ed. Ubu

 

 







Não há colônias espirituais, segundo a codificação

Muito se trata do que se passa nas chamadas “colônias” espirituais, no Movimento Espírita Brasileiro hegemônico, ou de como se vai para lá, ...