SOCIOLOGIA E ESPERANÇA
Capitalismo, humanismo e espiritismo
Em
outubro de 2011, foi realizado pelo Departamento de Sociologia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo um seminário
sobre o tema: Sociologia e Esperança, com pesquisadores da USP, Universidade de
Cambridge e da Universidade de Lisboa. Dentre os vários enfoques, coube ao
professor Alfredo Bosi[1] discutir o tema: “Economia
e humanismo”.[2]
Apesar do desencanto que possamos nutrir por essa relação, trata-se de uma
reflexão oportuna e necessária.
O
movimento Economia e Humanismo,
citado por Bosi, surgiu na França em meados dos anos 40. Fundado por
Louis-Joseph Lebret, um ex-marinheiro que se tornou oficial da Marinha,
servindo na Primeira Guerra Mundial. Aos 26 anos, ainda muito jovem, Lebret
decidiu abandonar sua sólida carreira na Marinha e entrar para a ordem dos
padres dominicanos. Após sua ordenação, em 1928, esse jovem da Bretanha, fundou
na região de Saint-Malo a Associação dos Jovens Marítimos, passando a
dedicar-se aos estudos da estrutura familiar e social dos pescadores. Logo,
percebeu as dificuldades dos pescadores locais em concorrer com grandes
pesqueiros japoneses.
Era a indústria de capitais e dimensões
internacionais que causava um duplo dano à pesca artesanal: suplantava a ponto
de eliminar os seus meios de trabalho e, ao mesmo tempo, dizimava os cardumes
do mar do Norte, desrespeitando os períodos de reprodução e desova. Assim, até
mesmo a economia de subsistência acabava subtraída ao pescador pobre da região.[3]
Lebret
tratou de aproximar os pescadores num sistema de cooperativa, formando uma
comunidade de produção e distribuição, organizada por pequenas redes locais e
familiares. Criou-se, assim, uma relação de rede solidária que, em momentos de
crise, desemprego, fome ou doença, se ajudava mutuamente. Ali, para Alfredo
Bosi, estavam plantadas as primeiras sementes do pensamento de “Economia e
Humanismo”. A partir de 1943, quase no final da Segunda Guerra, o padre Lebret
se voltou para a criação formal do movimento economia e humanismo, construindo
sua teoria sobre essa relação. A exploração da pesca por indústrias
estrangeiras em prejuízo dos trabalhadores locais deu-lhe o conhecimento da
injustiça de um sistema que não se limitava aos problemas de uma determinada
região. Era, portanto, necessário pensar de modo mais profundo sobre essas
estruturas exploratórias.
As
teorias sociais que examinavam a opressão do sistema econômico sobre o
trabalhador foram por ele exaustivamente estudadas. Entretanto, o seu caminho
não foi o de se filiar a nenhuma corrente ideológica ou partidária existente.
Assim, os fundamentos da Economia Humana defendiam uma economia voltada para
atender às exigências fundamentais do ser humano em sociedade, avessa tanto ao
jogo corrosivo do liberalismo econômico, como também ao controle rígido do
Estado. Uma economia humana deveria se voltar para aspectos reais, já que o
capitalismo cria necessidades e bens fictícios para estimular o consumismo.
Em
sua perspectiva, existiam demandas pessoais e coletivas que precisavam ser
atendidas pela economia, como por exemplo: a produção necessária de alimentos,
bens e serviços fundamentais, como farmácias e médicos de bairro; vida
cultural, educação. Para ele, a capacidade de se compreender uma obra literária
também integraria a necessidade por dignidade. É preciso que o indivíduo tenha
tempo o suficiente para pensar, estudar, meditar, contemplar e/ou produzir
arte. O trabalho excessivo afasta o humano da arte, da literatura, do
pensamento.
Uma
questão bastante atual, considerando-se o ritmo acelerado dos compromissos
impostos pela sociedade capitalista contemporânea. Curiosamente, no entanto, os
discursos de Lebret e seu movimento, ocorriam num contexto de crescente
industrialização do pós-guerra, de êxodo rural e de aumento da urbanização. O
seu ideário de uma economia humanizada não logrou competir com o fascínio do
progresso material. O padre Louis-Joseph Lebret faleceu em 26 de julho de 1966,
deixando suas contribuições e reflexões para um desenvolvimento não
economicista.
Nunca
existiu um sistema econômico intrinsecamente justo, humanizado, livre da
exploração do homem pelo homem. Seja no feudalismo, no mercantilismo ou no
capitalismo, cada um com sua especificidade histórica, o ser humano se
defrontou com injustiças das mais diversas. No capitalismo, seria um erro ou
muita ingenuidade, crer que produzir riqueza seja o suficiente para tornar uma
sociedade humanamente mais digna. Por isso, temos uma certa consciência de que,
sendo a economia amoral, necessitamos também da justiça e da política. E como
justiça e política também não bastam, é necessário ética, amor e solidariedade.
O
capitalismo é um sistema econômico para gerar riqueza. Produzir, com riqueza,
mais riqueza. Mas, não para todos. Nem mesmo para uma grande parcela da
sociedade. Somente, para alguns. Os mais pobres, por definição, estão excluídos
dos benefícios gerados pelo próprio sistema. Qualquer observador mais atento,
independentemente de sua “linha ideológica”, perceberá – desde que tenha um
mínimo de honestidade intelectual e bom senso – que o capitalismo é um sistema
excludente.
Segundo
dados do Banco Mundial[4], quase metade da população
no mundo vive abaixo da linha da pobreza. Isso representa algo em torno de 3,4
bilhões de pessoas. Trata-se de um dado alarmante e torna evidente que a
prosperidade capitalista não é compartilhada. Mais de 1,9 bilhão de pessoas, ou
26,2% da população mundial, viviam com menos de 3,20 dólares por dia, em 2015.
Cerca de 46% da população mundial vivia com menos de 5,50 dólares por dia. O
relatório do Banco Mundial constata ainda, que mulheres e crianças são mais
afetados pela pobreza, pois são mais vulneráveis socialmente.
Na
verdade, não se trata apenas de implantar políticas de desenvolvimento
econômico, que potencializem o crescimento da riqueza nacional e global. O
problema está representado numa famosa frase: “é preciso deixar o bolo crescer,
para depois dividi-lo”. Em algum
momento, se coloca muito fermento na economia e o “bolo cresce”, mas os gananciosos
não desejam dividi-lo, comem sozinhos, enquanto os mais famintos apenas
observam. É desumano o velho e esdrúxulo argumento no qual os pobres são
acomodados, inaptos ou despreparados para saírem da pobreza. O sistema que os
gera, também os culpa e os condena. Mas, como alertou o filósofo André
Comte-Sponville, não devemos cair no erro de pensarmos que um sistema econômico
seja “moral”.
A
filosofia social espírita não busca argumentos reencarnatórios para justificar
os históricos problemas da fome, miséria e exploração, de um lado, e da
concentração de riquezas, do outro. A teoria espírita do conhecimento insiste,
entre outros aspectos, numa dinâmica humanista. O ser humano deve exercer seu
protagonismo na edificação de um mundo melhor, inclusive, questionando os
sistemas econômicos, ideologias e políticas de Estado que aumentam o fosso das
desigualdades sociais.
Em
seu importante ensaio sobre o humanismo espírita, Eugenio Lara aponta para uma
interessante estatística: a palavra “homem”, no sentido de ser humano, aparece
679 vezes na segunda e definitiva edição de O
Livro dos Espíritos. Da mesma forma,
a palavra “humanidade” tem 81 ocorrências e a palavra “humano” surge 50 vezes
na referida obra. Para Lara: “Esses números são suficientes para demonstrar, ao
menos em termos quantitativos, que a filosofia espírita tem no homem, no ser
humano, o objeto primordial de suas reflexões, conceituações e ensinamentos”.[5]
No
mesmo sentido que o problema das desigualdades das condições sociais é obra do
homem, por meio de suas ações no tempo e no espaço, a questão da exploração
seja ela antiga ou moderna, não poderá encontrar justificativas plausíveis no
espiritismo. Estar numa condição de miserabilidade, por exemplo, não é uma
experiência “programada” no mundo dos espíritos. Se assim fosse, estaríamos
todos conformados com as injustiças sociais ou com os seis milhões de judeus
mortos pelos nazistas. A lógica é a mesma.
Haveria um completo imobilismo histórico e jurídico, contrariando a lei
do progresso.
O
escritor e pensador argentino, Manuel S. Porteiro, rejeitou o “falso argumento
da causalidade reencarnatória”.[6] O espiritismo, por sua
natureza racionalista, progressista, pluralista e humanista, não poderia
naturalizar a exploração do homem sobre o homem. A reencarnação, à luz da
filosofia espírita, faz parte, intrinsicamente, da lei natural, oportunizando
etapas biológicas de aprimoramento no cenário da vida física. Todavia, o ser humano
é o agente principal que, a partir de sua autonomia, vai construindo o enredo
de sua existência. O indivíduo e a sociedade são, portanto, os elementos
responsáveis pelo grande projeto de um mundo melhor e mais humanizado.
Herculano Pires[7],
situou o espiritismo também como uma cosmosociologia,
com toda a sua complexidade na interpretação do fato social, a partir de uma
perspectiva mais abrangente das realidades sócio-político-espiritual.
Poderemos,
então, situar o pensamento social espírita dentro de uma “sociologia da
esperança”, permeada de desafios. E, talvez, o maior deles seja o de colocar
definitivamente o ser humano no centro de todas essas discussões. Pensar uma
sociologia da esperança implica em questionarmos uma estrutura não apenas
política e econômica, mas também uma cultura centralizada na ideia capitalista
de progresso. O progresso com base na destruição da natureza, na exploração dos
recursos naturais, finitos, no esgotamento da vitalidade dos ecossistemas, na
concentração de riquezas, na cultura do descartável e da obsolescência
imediata.
A
realidade histórica, econômica e cultural predominante na sociedade global,
ainda que transitória, define um contexto marcadamente distante do pensamento
humanista inserido em O Livro dos
Espíritos. O curso da história é formado por permanências e mudanças. A
doutrina espírita ao argumentar sobre a Lei do Progresso, abre um horizonte
confortador, na medida em que os processos sociológicos não estão estagnados.
Em todos os períodos da história houveram reações às injustiças sociais visando
a construção de uma nova ordem social.
Esse
é um processo lento, pautado no amadurecimento da consciência humana de
indivíduos e de grupos. São forças e vozes de resistências que reencarnam na
Terra contribuindo para fomentar novos ciclos históricos. A transformação
estrutural da sociedade do mercado, na sociedade do amor e do humanismo, é uma
meta evolutiva. Reformas sociais são, portanto, processos históricos inseridos
numa perspectiva de longa duração. Mas, os espíritas não deveriam depositar
seus discursos somente nessa “meta evolutiva”, eximindo-se das responsabilidades
de influir, como cidadãos e agentes políticos, nos rumos dessas transformações.
Os
dilemas sociais devem ser pautas de reflexão permanente, de fomento para novos questionamentos
que contribuam com o humano, numa sociedade ainda tão desumana. A filosofia
espírita é esperançosa, mas não ingênua. Precisamos pensar sobre nossa
identidade humana, sobre nossa natureza espiritual e, também, sobre o amargor
da indiferença. Uma sociologia da esperança à luz do espiritismo implica,
inexoravelmente, numa atitude dinâmica e crítica do mundo em que vivemos, e dos
nossos posicionamentos como seres na existência. É um tema de reflexão e ação
que ainda está por ser descortinado nos movimentos espíritas.
NOTAS
[1] Alfredo Bosi é
titular de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo e pertence à
Academia Brasileira de Letras.
[2] Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/39496
[3] BOSI, Alfredo. Economia e Humanismo. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/39496
[4] Disponível em:
https://www.worldbank.org/pt/news/press-release/2018/10/17/nearly-half-the-world-lives-on-less-than-550-a-day-brazilian-portuguese
[5] LARA, Eugenio. Breve Ensaio sobre o Humanismo Espírita.
Santos, SP: CPDoc, 2012. p.91.
[6] MOREIRA, Milton Rubens Medran. Direito Natural, Lei Natural e Justiça Social. In. Perspectivas Contemporâneas da Reencarnação. REIS, Ademar Arthur Chioro dos. NUNES, Ricardo de Morais. (Org). Santos-SP: CPDoc & CEPA Brasil, 2016. p.142.
[7] Ver o livro: Introdução à Filosofia Espírita, de J. Herculano Pires.
Maravilhoso artigo! 👏👏
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