quarta-feira, 6 de março de 2024

Um comentário espírita sobre o massacre israelense na Palestina

 


De forma genérica, sabemos que, para a Filosofia espírita, a guerra é fruto de uma predominância da natureza animal sobre a natureza espiritual. Para nós, fica claro que a guerra é sempre considerada um mal. Não há conflito armado bom ou justo, ele, afinal, é fruto do insucesso do diálogo, da diplomacia. Quando duas pessoas, grupos, partidos ou países se lançam à luta armada, já foi perdida a possibilidade de resolução de questões de modo humano, educado, respeitoso. Isso será sempre lamentável.

Os imortais propõem ainda que, à medida que o ser humano progride, menos frequente se torna a guerra, porque ele lhe evita as causas. A guerra é uma coisa que vai acabar, que está relacionada à baixa capacidade humana de exercer empatia, de se colocar no lugar do outro, de tentar ver os diversos ângulos de um problema e as perspectivas dos outros.

No entanto, reconhecemos que, para o nível de opressão sistemática em que a Terra ainda se encontra, pode haver casos em que a guerra se torna a única escolha possível, como nos casos do colonialismo, por exemplo, em que guerra é feita por impulso de liberdade e o progresso. Há casos em que uma violência territorial tira a soberania de alguém, muitas vezes do forte contra o mais fraco. E são em condições análogas a essas que a Filosofia espírita ensina o que deve ser sempre defendido. Há momentos em que os direitos básicos à sua própria humanidade são negados a certo povo ou grupo étnico; há relatos de pessoas que ficam prisioneiras a céu aberto, com seu direito de ir e vir suspenso; conhecemos histórias de acordos internacionais que são desrespeitados em nome de interesses mesquinhos materiais ou em nome de uma pretensa superioridade religiosa.

E, infelizmente, essa triste lista faz parte da ação histórica do estado de Israel sobre a Palestina, que vê, assustada, a própria convenção da ONU desrespeitada. Em 1948, o estado de Israel foi criado por essa entidade e a Palestina dividida. Desde então, a área destinada ao povo árabe já era bem menor, apesar de ser uma população numerosa. De lá para cá, o mais forte sempre se impôs e foi, progressivamente, diminuindo as terras que eram por direito das famílias palestinas, que passaram a viver em assentamentos, quase sempre sob tensão constante de guerra.

Enquanto a pergunta for quem começou primeiro, realmente a guerra árabe israelense não vai acabar. Mas também não dá para esperarmos que um povo se veja contra a parede, sem direitos humanos e não reaja, em nome da liberdade e do progresso, como disseram os espíritos a Kardec.

Ao tomarmos um lado e defendermos os direitos do povo palestino que vê suas crianças mortas ou jogadas na orfandade, não estamos justificando as ações terroristas do Hamas, inaceitáveis também, mas não é mais possível chamar o que vem acontecendo em Gaza nos últimos dias de guerra. É um massacre. Alguém ainda pode perguntar: mas são respostas de Israel aos terroristas, que devem se render. Mas e os civis mortos na Cisjordânia, onde nem tem Hamas? Em nome do seu direito, Israel se lança à suspensão do direito mais básico do cidadão palestino, que é o de viver.

Apoiado pelos EUA – que mais uma vez votou contra o cessar fogo no conselho de segurança da ONU  –, o estado de Israel comete crimes de guerra e pratica um genocídio, legitimado por Washington, que defende claramente seus interesses armamentistas. Mais uma vez, o capital supera o ser humano, e a morte se estabelece com via possível. Não era para ser assim!

Como espírita, sinto-me no dever de me somar à defesa palestina. Quem no nosso meio, pelo rumo que as coisas tomaram, se coloca ainda ao lado dos empreendimentos israelenses, ficou cego por sua ideologia de extrema direita e pelos meios de comunicação enviesados que consultam. Contudo, pode ser coisa pior: eles sejam mesmo etnocidas.

Palestina livre!

 

 

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Espiritismo na Matta

 




Espiritismo na Matta


Por Leonardo Rodrigues


Do que me chamaram, mudou quem fui?

Do que me chamarem, mudará quem sou?

Espiritismo? Espírita? Chamem do que quiser!

Mas por favor, olhem pra essência!

Ana Lúcia

 

Era uma quinta-feira, de 5 de janeiro de 2023, véspera em que a igreja católica comemora o Dia de Reis, ou Festa de Santos Reis, em referência aos magos que visitaram o menino Yeshua, para reverenciar sua vinda, sua aparição neste mundo, no entanto, a palavra rei, ou reis, não consta em nenhum dos evangelhos. O termo usado é simplesmente magos, que vieram, diz o evangelista Mateus, do oriente, trazendo para o menino e seus pais, entre outras coisas, ervas para incenso.

Pouco sabemos sobre esses magos e que magias praticavam. Sabemos que as magias, e entre elas o uso de incensos, utilizados por certas pessoas, especialmente por um tipo de mulher, seria proibida com pena de morte, por homens, que séculos depois daqueles dias, diziam-se seguidores do mesmo menino, nascido, nas cercanias de Belém.

Naquela festa, no distrito de Mata Velha, pertencente a Dom Pedro, no Maranhão, na antiga região da Matta, encontrei um padre, ou melhor, um bispo concluindo o seu ritual celebrativo. O público era variado, uma cena linda de se ver, algumas senhoras e meninas usavam turbantes e homens com faixas de panos na cabeça, muitos de pés descalços e outras com crianças para serem batizadas, tornadas cristãs na tradição dos que ali estavam e do homem vestido em panos longos, e com a mesa cheia de aparatos, como óleos, água benta. O rito que era realizado no meio da rua, com pouca iluminação e na frente de uma casa que continha a inscrição:  Tenda Santa Bárbara. Laise, uma amiga, integrante do Centro Espírita Jesus de Nazaré, que foi conhecer aquela experiência, tira a foto e manda por watsapp para a companheira Zelina, que tinha ficado na cidade e me mostra sorrindo a sua resposta, que questiona: “Mas vocês não tinham ido pra uma festa de terreiro? E esse padre?”.  

O padre, a mais de uma década celebra a missa naquele festejo, é amigo e compadre de Mãe Rita, uma senhora de 74 anos, que acompanhava a missa de pés descalços, usando uma linda saia verde de seda e uma blusa branca, com um lenço na cabeça, rezando e seguindo todo o rito do sacerdote presente. É ela (ou Tereza Légua), que ao fim da celebração, entra na tenda, enfeitada com fitas e  santos católicos, pouquíssimas cadeiras para sentar, chão de cimento queimado, uma janela para mirar uma lua, que naquela noite era cheia, e alumiava o tambor feito de oco de Pau D´arco e couro de boi, sendo esquentado na fogueira. Essa senhora de voz firme, pega o microfone e brada: Vai começar o Espiritismo! Os amigos do Centro Espírita Jesus de Nazaré, de Dom Pedro, se entreolham, eu provoco, claro! Onde estamos? Que Espiritismo é esse? Sorrimos todos!

Quem interromperia aquela força, vinda das matas, herdeira dos africanos escravizados, que ali fora em quantidade maior que todo o país, para lhe desmentir a qualificação de espiritismo o que ia acontecer?

Ali, na Tenda Santa Barbara, estavam presentes outras representações de terreiros, em sua maioria mulheres, mães de santo e seus filhos iniciados e em processo de iniciação. Funcionava o encontro como um seminário, onde cada uma levava a sua comunidade, espécie de conferência aberta dentro da mata onde tudo era relacional, e os encantados, incorporados, também conversam entre si e com os dançantes, tanto quanto com os visitantes, que podem pedir um dedinho de prosa com a entidade: “ Quando meu guia incorporar, você pode conversar melhor com ele, e ele vai te explicar tudo o que está acontecendo aqui”, me disse uma das mães de santo, conversando comigo na calçada, antes de entrar no salão. É uma acessibilidade de dois tipos, ao portador da mediunidade, e ao guia espiritual. Penso na acessibilidade no outro contexto, quando fui para um congresso espírita e vi o medianeiro e conferencista cercado de proteção, leio a atitude, posso estar equivocado, como um esquema de colocá-lo distante e de preservar uma aura de ser extraordinário.

Observando as danças circulares, um amigo questiona: Pra que dançar? Não entendo o sentido disso!

Rumi poderia responder: O amor eleva aos céus nossos corpos terrenos, e faz até os montes dançarem de alegria!”. Acostumados a mesas postas em destaque para que um tipo de autoridade, cadeiras enfileiradas, privando a relação, estranha-se quando desaparece o palco e a mesa, e acrescenta-se tambor, danças, gente pobre e negra como protagonistas do processo. E se isso for chamado de espiritismo, talvez fique ainda mais estranho. Por ser diferente as formas de fazer, também de acolher, será menos espiritismo? 

Allan Kardec, confesso a vocês que naquela noite, em estado de oração, o convidei para ir na Mata Velha, ver tudo o que acontecia ali, traz um conceito de espiritismo muito interessante:

“Tanto a história sagrada quanto a profana provam a antiguidade e a universalidade dessa crença, que se perpetuou através de todas as vicissitudes por que tem passado o mundo, e se mostra, entre os mais selvagens povos, no estado de ideias inatas e intuitivas, e tão gravadas no pensamento como a do Ente supremo e a da existência futura. O Espiritismo, pois, não é uma criação moderna; tudo prova que os antigos o conheciam tão bem, ou talvez melhor que nós”.   ( KARDEC, 2013 P.66)

 

Três palavras me chamam a atenção, quatro na verdade, mas vamos começar por essas três: antiguidade, universalidade e moderna. De que antiguidade estava ele falando. Qual o alcance dessa antiguidade, a idade antiga, que pode ser entendida entre uns 4.000 anos antes de Cristo? Esse tempo pode estar ligado às práticas de comunicabilidade com os espíritos, como vai nos informar Leon Denis na sua obra Depois da Morte, ocorridas na Índia, Egito, Grécia, Gália, como podemos verificar em suas palavras: Os druidas comunicavam-se com o mundo Invisível; mil testemunhas o atestam. Nos recintos de pedra evocavam os mortos. As druidesas e os bardos proferiam oráculos (...) A ciência do mundo invisível constituía um dos ramos mais importantes - do ensino reservado. Por ela se havia sabido deduzir, do conjunto dos fenômenos, a lei das relações que unem o mundo terrestre ao mundo dos Espíritos;

Antiguidade pode também referir-se as  comunidades cristãs, como escreve Artur Conan Doyle: A primitiva igreja cristã viveu saturada de Espiritismo e não parece que tenha atendido às proibições do Velho Testamento, as quais objetivavam reservar esses poderes para uso e proveito do clero.

O outro termo, o moderno, foi usado por boa parte de investigadores do século XIX, para designar o conjunto das manifestações, e comunicabilidade com os Espíritos. “Moderno Espiritualismo” é a terminologia que vamos encontrar em vários livros daquele tempo. Mas, na publicação de O Livro dos Espíritos em 1857, Kardec argumenta que o termo espiritualismo seria muito genérico e propôs chamar de Espiritismo, ciente de que para coisas novas, como ele dizia, precisávamos de termos novos. Dois anos depois, na obra O Que é o Espiritismo, Kardec reconhece que não se tratava de coisa nova, moderna, mas de coisa antiga e universal. Ou seja, não pertencia ao domínio de uma cultura e de um tempo, e cada povo o vivenciou conforme seu entendimento. E que caracteriza o moderno, é o método usado para investigar os fenômenos e uma prática, conforme a cultural racional científica do seu tempo, fortemente influenciada pelas ideias iluministas, um movimento importante para uma ruptura de um domínio de um tipo religioso, que emperrava o livre pensamento e o desenvolvimento das ciências, mas que não deixou de lançar preconceitos sobre outros fazeres e formas de pensar o mundo, fora de um eixo de uma criticidade eminentemente europeia, qualificando como atrasado o pensamento de outras culturas, principalmente as culturas.

O mundo antigo nem é sinônimo de atraso, nem o moderno de evoluído, temos que refletir melhor o que temos chamado de evolução e se ela acontece numa linearidade de tipo cronológica. Uma prática antiga não é necessariamente um erro, nem uma pratica moderna é necessariamente um acerto. Não devemos pautar uma prática como verdadeira ou falsa, baseada na sua antiguidade e nem tão pouco na sua localidade, seja ela a cidade, ou a selva, a quarta palavra que eu queria trazer, para irmos concluindo essas provocações. A cidade por apresentar um aparato de construções diferenciadas, e intervenções que pudessem “melhorar” as condições de vida dos seus habitantes, com facilidades no deslocamento, na comunicabilidade entre as pessoas, foi chamada de evoluída, e a selva ficou como sinônimo de atraso. Apenas hoje, vamos percebendo as tecnologias selvagens, como as das árvores, que podem sinalizar o seu estado de saúde e adoecimento, para uma outra árvore que se encontra a mais de 5 mil quilômetros do seu território.

Chamamos de colonialismo, não só o processo de invasão da Europa sobre outros continentes, não para desenvolver, mas para explorar e se apropriar de riquezas naturais dos continentes africanos e pindorâmicos , mas também a sua imposição de crença e cultura, sufocando e exterminando os saberes dos povos colonizados. Uma das estratégias do posseiro colonizador era dar nome às coisas já nomeada, apagar a língua local e implementar a sua, e apenas a sua. Como já nascemos sobre o império colonial, não percebemos que estamos colonizados de diferentes modos, achamos natural chamar essa terra de Brasil, quando em alguns lugares em tupi se chamava Pindorama, a terra das palmeiras (nome de um clube recreativo em Dom Pedro, que nunca soube o sentido e de onde vinha), chamamos genericamente de índios, povos que possuem seus nomes próprios, como Anacé, Kanindé, Tapeba, Gujajara, Yanomame. Se diz que a língua oficial do Brasil é o português, e é porque foi imposto, embora se fale mais de trezentos idiomas em Pindorama.

 Esse processo foi tão danoso às nossas vidas, com um tipo de pensar unilateral, de uma verdade única, e de um poder que se impõe sobre outros saberes e culturas, que vamos encontrar uma grande dificuldade na comunidade dita Espírita Kardecista em aceitar que os termos Espiritismo e Espírita, sejam adotados fora de um tipo de prática convencional e pertencente a determinadas instituições formais denominadas centros espíritas. E dizendo isso, não quero carimbar as prática de outras tradições, e com esse carimbo impor um tipo de entendimento, é saber a relevância de um conceito de tipo sintético, que pode expressar a essência de uma coisa, embora possa ela manifestar-se diferente. É quando a coisa tem natureza própria, e sem dono e daí podemos chamar com nomes diferentes, ou com nomes iguais, sem que isso tire a natureza da coisa em si mesma.

A quem pertence o poder de nomear?  Será possível um tipo de autoridade legitimada para dar nomes às coisas materiais e imateriais? Que poder autoriza Hypolite Léon Denizard a chamar as tradições de Mãe Rita de Espiritismo, herdeira da ancestralidade afro-pindorâmica e, ao mesmo tempo, a desautoriza a reconhecer a sua prática como Espírita?

A senhora da mata, a guardiã da prática medianímica, herdeira daquela luta de que o próprio Kardec falou, resistiu bravamente às perseguições e apagamentos, está investida de autoridade de aceitar ou não o nome que se lhe dá, o termo novo, para sua prática antiga e o seu reconhecimento revela que a sua compreensão é sintética e remete a essência espírita. Se a adoção do nome, é um processo de tipo sintético, e não colonizado, se parte do olhar do estranhado e perseguido e não da imposição do colonizador, deveríamos antes nos alegrar com tal nominação, que pode igualmente ser um convite para um dialogo intermundos.

Mas para tanto, precisamos superar o espanto. Se a música de Sebastian Bach, que tocou em missas nas igrejas da Alemanha, no século XVIII  é reproduzida nos centros espíritas, parece tudo bem, todos fecham os olhos e se recolhem. Os corpos, se aconchegam nas cadeiras, em movimentos suaves, mas em movimentos. Mas se for Maria dos Anjos, uma negra, que também canta com voz melodiosa e abre os trabalhos na tenda, acompanhada de tambores, que remete às tradições da África e dos povos de Pindorama, e os corpos também se movimentam, em movimentos outros, que estranho!

O que chamamos de estranhamento também podemos chamar de preconceito e em alguns momentos mais graves, qualifica-lo de racismo. Formamos o nosso olhar baseado em heranças diferentes e entre elas está aquele de tipo colonial de que falamos, em que o saber é a verdade de tipo única e que deve se sobrepor à outras verdades, e o movimento espírita brasileiro não está isento dessa herança, por ser feito de gente, também de gente colonizada. Essa estranheza bem pode ser colonial, de verniz religioso, étnico, filosófico, científico, expressa em termos como místico, esotérico, atrasado, primitivo, selvagem. Temos que reconsiderar o lugar em que nos posicionamos, e admitir que o espiritismo não tem o nome para tudo, a última palavra para conceituar os saberes imanentes ou transcendentes, do contrário estaremos numa posição muito perigosa para dialogar com outros mundos, tanto os imanentes e oriundos da experiência da imersão do espírito na condição histórica desta terra, como os transcendentes que transem a diversidade de experiências dos espíritos em condições transistórica. Nesse sentido, é bom refletir com Boaventura, que também faz uma revisão de um lugar que foi ocupado pela nação onde encarnou: “O drama do universo cultural que se considera historicamente vencedor é não querer aprender nada dos universos culturais que se acostumou a derrotar e a ensinar”

Que nos reserva ainda os saberes da selva? Há mundos diferentes, universos culturais construídos também por desencarnados, como o da Encantaria e não apenas das Colônias Espirituais? (olha o termo colônia aparecendo de novo!).  É possível uma ciência das macumbas? Um que o passe, adoção de terapia pelos fluidos, seja dado em forma de giro ou soprado com fumaça como nos terreiros?

Uma coisa, pode se ter diversas formas de fazeres, também de entendimentos, sem deixar de ser ela mesma? A luz do sol não uma, e no entanto não se apresenta em multicores conforme seja a capacidade de retenção e reflexão de seus raios?

Toda palavra é de certo modo uma limitadora da realidade e insuficiente para expressar a sua totalidade. O que foi nomeado de Espiritismo, bem pode conter amplas verdades, ou melhor, uma diversidade de métodos, de fazeres, para entender e expressar uma realidade essencial, de centralidade na sobrevivência e comunicabilidade da individualidade que continua a existir após a morte, a desagregação de um tipo de corpo.

A realidade é complexa, e para alguns mestres sufis, pode ter dezoito mil universos, e para enxerga-los todos, diz-se:  

 

Este homem veria os dezoito mil universos através de dezoito mil olhos. Vê cada universo com o olho apropriado. O universo dos sentidos, com o olho dos sentidos; as questões da inteligência, como olho da inteligência; as intenções, como o olho do coração (Ibn ARABI, 2012, páginas 26 e 27)

 

Será possível enxergarmos o Espiritismo sob diversas formas e admitir que pode ser ele mais complexo do que o que temos visto até agora? Aprendemos no Brasil que o Espiritismo foi codificado por Allan Kardec, apesar da investigação e a produção de saber espírita, estar acontecendo na Europa, como Itália, Russia, Inglaterra e na França, e nas Américas. Dizer isso, não é negar a grande influência de Kardec, mas reconhecer que o fenômeno não era centralizado, e segundo o lugar das manifestações, a cultura,  e um tipo de pesquisador e pesquisa, a produção de saber poderia se dar de maneira diferente, não conferindo unicidade, sem anular os conhecimentos elaborados. Em vista disso, é possível admitirmos que assim como as ciências e as filosofias, podemos ter espiritismos? Ou não temos olhos para tanto?

Olhando da condição de desencarnado, ou de encantamento (enchanté no francês, tem esse sentido de encantamento, talvez bem muito próximo da encantaria), Kardec refletiu: Supondo-se que os seus adeptos humanos desapareçam, que as obras que o erigiram em corpo de doutrina sejam destruídas, ele ainda sobreviveria por tão longo tempo quanto a existência dos mundos e das leis que os regem. ( Allan Kardec, 1868, página 431)

Se entendo esse pensamento, o espiritismo seria uma força da natureza, um fenômeno natural, como o vento que sopra onde quer. Aqueles que sentem o vento, podem estudar sua influência nos fenômenos meteorológicos, produzir energia elétrica, ou brincar, dançando e empinando arraia, papagaio, para continuar falando a partir da cultura naquele Maranhão.

 Estou desembaçando do meu olhar de tudo que li e vi para vê a coisa em si mesma, o que ela pode me contar de si. Queria estar no Dom Pedro e ter visto que no aniversário de 33 anos do Centro Espírita Jesus de Nazaré, enquanto o atual presidente da Federação Espírita do Estado do Maranhão, Fabio Carvalho, falava, Mãe Rita, a guardiã da Tenda Santa Bárbara, entrou em cortejo com os seus filhos enfeitados em roupas brancas e turbantes e por alguns instantes, algumas estranhezas abateram-se sobre o público presente. O expositor interrompeu sua fala, desceu do púlpito e abraçou a convidada! Dias atrás, o sacerdote saíra da ilha para encontrá-la na mata para  comungar em sua tenda. Agora, outro homem, do novo espiritismo, silencia e acolhe o ancestral, que saiu da mata e abraçou o novo. São símbolos de encontros, quiçá de um novo tempo, de novos espiritismos.


CItações 

01 Vivência em estado de transe em Ubajara-CE, em que minha irmã, já desencarnada, se apresentava para mim, indicando que me acompanhava na escrita desse texto. Ela, que foi chamada muitos nomes: doidinha, caridosa, desatenta, alegre, valente...

02 Desde muito, o distrito é nomeado Pedro II, mas todos conhecem por Mata Velha, acho importante essa resistência, acho mais interessante elogiar a mata que ao imperador.

03 Tereza Légua é uma encantada, guia de Mãe Rita, em outra ocasião, ao entramos na Tenda Santa Bárbara, fomos recebidos e envolvidos por cerca de meia hora entre boas vindas e brincadeiras com a construção de pontos, terminado o momento, Mãe Rita veio falar com cada uma pessoa visitante, como se não as tivesse cumprimentado no inicio, e não tinha, a recepcionista havia sito Tereza Légua.

04 Me chama a atenção de não encontrar nesse espaço nenhuma imagem referente à cultura afro-brasileiro, como Iemanjá, Pretos velhos, ou imagens referentes a orixás... Estou escrevendo outra reflexão naquele contesto, com o título: “Onde estão os Pretos Velhos?”

05 “No Maranhão, o termo encantado , é usado nos terreiros de Mina, tanto nos fundados por africanos quanto nos mais novos e sincréticos, e nos salões de curadores ou pajés. Refere-se a uma categoria de seres espirituais, recebidos em transe mediúnico”. Encantados e Encantarias no folclore brasileiro – Mundicarmo Ferretti

06 Maulana Jalaladim Maomé, conhecido como Al Rumi. Mestre sufi do século XIII, que criou o sama, um processo de oração, meditação e transe, através da dança circular.

07 DENIS. Leon. Depois da Morte. São Paulo, 1994

08  Referencia

09  O Que é o Espiritismo é lançado em junho de 1859. Destaco que é importante seguir a flexibilidade do pensamento de Kardec ao longo de suas obras.

10  Pindorama, é a terra das palmeiras, nome que alguns povos destas terra adotavam antes que os invasores a chamassem de Brasil. Nêgo Bispo, chama a atenção do termo como uma atitude contracolonial, de resistência ao colonialismo.

11  SANTOS, Boaventura de Sousa. Decolonizar: Abrindo a história do presente. São Paulo: Boitempo, 2022

12 É significativo como naturalizamos a narrativa do espírito André Luiz sobre Nosso Lar, um tipo de cidade com perfil europeu construída por portugueses desencarnados, a partir de um lugar onde habitava povos originários do Brasil, também desencarnados. Uma narrativa em muito similar ao processo de colonização, com forte noção de eurocentrismo. “Onde se congregam hoje vibrações delicadas e nobres, edifícios de fino lavor, misturavam-se as notas primitivas dos silvícolas do país e as construções infantis de suas mentes rudimentares. ANDRÉ LUIZ (Espírito). Nosso Lar. Psicografado por  Francisco Cândido Xavier. Página 52 

13 El Núcleo del Núcleo 5ª edición: noviembre 2002. EDITORIAL SIRIO, S.A.


 

Referências:

AHLERT,Martina «Carregado em saia de encantado: transformação e pessoa no terecô de Codó (Maranhão, Brasil)», Etnográfica [Online], vol. 20 (2) | 2016, posto online no dia 29 junho 2016, consultado o 09 fevereiro 2022. URL: http://journals.openedition.org/etnografica/4276; DOI: https:// doi

ANDRÉ LUIZ (Espírito). Nosso Lar. Psicografado por Francisco Cândido Xavier. Rio de Janeiro. Federação Espírita Brasileira 45ª 1996

IBN ARABI. El Núcleo del Núcleo 5ª edición: noviembre 2002. EDITORIAL SIRIO, S.A

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Federação Espírita Brasileira.  93a edição 2013

KARDEC, Allan. O Que é o Espiritismo. Federação Espírita Brasileira, Brasília, FEB, 2013. 56 ed.

Kardec, Allan. Revista Espírita 1869. Federação Espírita Brasileira, Brasília (DF)  4ª edição 2019

RUMI, Jalaluddin, Masnavi

SANTOS, Boaventura de Sousa. Decolonizar: Abrindo a história do presente. São Paulo: Boitempo, 2022

sábado, 18 de março de 2023

Espiritismo, Laicidade, Livre Pensar e as Relações Com a Atualidade



ESPIRITISMO, LAICIDADE, LIVRE PENSAR E AS RELAÇÕES COM A ATUALIDADE

Milton Medran Moreira


A religião e o laicismo

No dia 23 de setembro de 2012, quando ainda ocupava o trono da Santa Sé o pontífice recentemente desencarnado Bento XVI, publiquei no mais importante jornal de Porto Alegre, Zero Hora, o artigo “O Papa e o Laicismo”.

Comecei o texto reconhecendo: “Andou muito bem o Papa Bento XVI, em sua recente visita ao Oriente Médio, pedindo se respeite, ali, a liberdade religiosa e defendendo o laicismo por ele adjetivado como saudável”.

Como todos sabemos, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, então no papado, sempre demonstrou posições bastante conservadoras, diferentemente daquele que o iria suceder, o Papa Francisco,  que ainda hoje está no cargo e a quem, com justiça, se atribuem posições muito progressistas e, em grande parte, coincidentes com os anseios modernos do pluralismo religioso e do secularismo.

Cerca de dois anos antes, numa visita à Espanha, para uma efeméride envolvendo as tradições religiosas de Santiago de Compostela, Bento XVI fizera um histórico da tradição cultural espanhola onde se incrementaram conceitos contemporâneos de laicidade. Lamentou que o laicismo então defendido se posicionava como anticlerical e contrário ao exercício de poderes tradicionalmente reconhecidos como exercitáveis pela Igreja. Naquela visita de 2010 à Espanha, Ratizinger sustentou que “para o futuro é necessário que não haja um enfrentamento, mas um encontro entre fé e laicismo”.

No artigo “O Papa e o Laicismo” externei otimismo e até uma certa admiração, ao constatar que a Igreja, que, na época do surgimento do espiritismo, tanto combatera ideias como pluralismo religioso, liberdade de pensamento, e, notadamente, a retirada do poder eclesiástico a influenciar sobre os poderes seculares, agora, por seu representante maior, admitisse todas essas ideias da pós-modernidade, falando, inclusive em laicismo. Este, para ele, seria “saudável”, na medida em que não negasse Deus e a espiritualidade.

Consignei, então, no referido artigo:

O autêntico laicismo sempre é saudável porque, sem combater crenças individuais, admite a existência de uma gama infinita de formas de interpretar o divino e o humano, a consciência e o universo, buscando, no conjunto de tudo, o sentido da vida”.

E que:

  Paradoxalmente, aqueles mesmos que, ainda ontem, rebelaram-se contra a vitória do laicismo sobre a ditadura da fé, reconhecem, agora, que só numa sociedade genuinamente laica há espaço para vicejarem e crescerem os verdadeiros valores do espírito. Sinal dos tempos! Bons sinais. Plenamente concordes com a sentença de Jesus de Nazaré, segundo quem “o espírito sopra onde quer”. O que se pode ver é que, cada vez mais, espiritualidade passa a ser sinônimo de humanismo. Migra do inescrutável reinado do mistério e do dogma para o terreno aberto e democrático das experiências humanas contra cuja corrente, quase sempre, se posicionaram as castas sacerdotais. É a força do espírito livre, centelha divina presente no homem. A ela tudo, um dia se há de conformar. Inclusive as religiões, quando compreenderem que o verdadeiramente sagrado é o natural. Não o sobrenatural”.

Da teocracia à laicidade – um longo caminho.

Fiz o introito acima para destacar que a laicidade, diferentemente do que ocorreu praticamente em toda a história do cristianismo, é hoje um valor reconhecido como fundamental ao progresso, ao desenvolvimento de qualquer sociedade, sob os aspectos culturais e como estruturador dos valores atinentes ao humanismo.

Quando vemos um papa reconhecidamente conservador, como foi Bento XVI, falar em pluralismo religioso, em liberdade de pensamento e, especialmente, em laicismo, impossível não evocar o quanto, em toda sua história, o cristianismo combateu essas ideias, se havendo tornado, com eventos como as Cruzadas e o longo período da Inquisição, uma das mais violentas teocracias jamais existentes na história da humanidade

Pois foi no Século XIX, período em que o espiritismo surgiu, na França, dali se espalhando a diversos outros países europeus, que esse conceito de laicidade ganhou força e consolidação no Ocidente cristão, embora suas bases teóricas tenham acontecido antes.

Na verdade, a visão teológica do mundo cristão sofreu profunda modificação com o advento da Modernidade. Durante todo o período que se convencionou chamar de Idade Média, uma poderosa teocracia dominara todo o Ocidente e parte do Oriente, onde o cristianismo também fizera prosélitos. Naquele contexto, Jesus de Nazaré, pouco a pouco, deixara de ser visto como o extraordinário codificador de uma doutrina moral libertadora para ser tido como próprio Deus, integrante da Santíssima Trindade, cujo sacrifício terreno teria o efeito de salvar o homem cristão (e somente este), libertando-o do pecado original que, segundo Agostinho (354/430), dera origem à “Civitas Terrena”, em oposição à “Civitas Dei”. Mesmo nas concepções mais racionais de Tomás de Aquino (1225/1274) e de sua Escolástica, que concedia valor ao Estado, o Direito Divino, do qual era guardiã a Igreja e seu Sumo Pontífice, estaria acima de qualquer poder estatal.

Esse foi o cenário que dominou o mundo cristão por toda a Antiguidade e Idade Média. Entre os séculos XV e XVI, entretanto, ocorre uma verdadeira revolução de ideias que viria a se denominar Renascimento.

Nada mais apropriado para caracterizar essa revolução do que a frase de Leonardo da Vinci:

 “o homem é o modelo do mundo”.

 

Fatores como a concepção copernicana  substituindo a visão ptolomaica de que era a Terra o centro do Universo; a descoberta de novos continentes; a invenção da imprensa e a Reforma Protestante dividindo o cristianismo em dois blocos, geraram uma nova postura do homem perante si mesmo e ante a grande instituição até então todo poderosa que era a Igreja.

É o humanismo valorizando o homem e guindando-o à condição de centro do universo conhecido, revivendo, dessa forma, a cultura helenística que o cristianismo houvera sepultado.

 

O processo de modernidade que então explode, como bem definem os pensadores católicos Francisco Catão e Magno Vilela (Monopólio do Sagrado” -Editora Best Seller)

 

“caracteriza-se pela ruptura e fragmentação, tanto da vida humana quando da sociedade. Nesse contexto, é quase obrigatório considerar-se a religião como uma estrutura sobrenatural imposta ao humano. Além de humilhado pela autoridade divina, o ser humano é colocado no papel de servo inútil, como condição de salvação. Por isso, na raiz da modernidade, a afirmação da autonomia humana vai se fazer antes de tudo contra a religião”.

 

Evidentemente que isso criaria conflito entre Estado e Igreja, habituada que estivera esta desde Constantino e de Teodósio, no Século 4º, a ocupar o papel de força reguladora e moralizadora do Estado e dos povos. A ética até então vigente era a ética religiosa. Agora, um novo paradigma apontava para a ética racional, com ou sem Deus.

Mas, o século do aparecimento do espiritismo, na Europa, foi quando, efetivamente, o Estado se libertou da Igreja. Isso não ocorreu, entretanto, sem uma reação vigorosa da Santa Sé. Praticamente todo o Século 19 e até as primeiras décadas do Século 20, o processo de laicização no Ocidente terminou por dar lugar a imensos conflitos entre Estado e Igreja, entre razão e religião.

São dessa época as mais duras manifestações eclesiásticas contra a liberdade, que, evidentemente, jamais seriam, hoje, subscritas pela Igreja. Provavelmente, a mais significativa delas seja a encíclica “Mirari Vos”, promulgada pelo Papa Gregório XVI (1832), versando sobre o que intitulava de “os erros modernos”, com um introito que justifica sua promulgação, porque, no dizer do Pontífice,

 

“Violaram as leis, alteraram o direito, romperam a aliança eterna. Referimo-nos, Veneráveis Irmãos, às coisas que vedes com vossos mesmos olhos e que todos choramos com as mesmas lágrimas. É o triunfo de uma malícia sem freio, de uma ciência sem pudor, de uma dissolução sem limite. Deprecia-se a santidade das coisas sagradas; e a majestade do divino culto, que é tão poderosa como necessária, e, no entanto, é censurada, profanada e escarnecida. A partir daí, corrompe-se a santa doutrina e se disseminam com audácia erros de todo o gênero. Nem as leis sagradas, nem os direitos, nem as instituições, nem os santos ensinamentos estão a salvo dos ataques e das línguas malvadas”.

 

Nesse documento, o Bispo de Roma condena veementemente a chamada “liberdade de consciência”, que atribui ao indiferentismo religioso, do qual emana

 

“aquela absurda e errônea sentença, ou melhor dito, loucura, que afirma e defende a todo o custo e para todos, a liberdade de consciência. Esse erro pestilento possibilita, escudado na imoderada liberdade de opinião que, para ruína da sociedade religiosa e da civil, estenda-se cada dia mais por todas as partes, chegando a imprudência de alguns a assegurar que a ela se segue grande proveito para a causa da religião”.

 

Nessa mesma linha de raciocínio, o documento papal condena o que chama “monstruosa doutrina” que prega a liberdade de imprensa, pois que essa possibilitaria “a difusão de livros e escritos maléficos para a humanidade”.

 

Repele também a proposta de separação entre Estado e Igreja, assim justificando a posição:

 

“As maiores desgraças viriam sobre a religião e sobre o Estado, caso se cumprissem os desejos daqueles que pretendem a separação da Igreja e do Estado, rompendo-se a concórdia entre o sacerdócio e o poder civil.”).

 

Ao tempo em que foi promulgada essa encíclica (1836), o espiritismo ainda não havia sido sistematizado por Allan Kardec, que só o faria em 1857, com a publicação de O Livro dos Espíritos. Mas, todos os antecedentes históricos antes referidos, notadamente a partir da Revolução Francesa, (1789), justificavam o movimento eclesiástico de repúdio às novas ideias, perdendo que estavam a Igreja e o clero o protagonismo por tantos séculos mantidos.

Esses mesmos temas, liberdade de expressão, de consciência e de imprensa, assim como a separação da Igreja e do Estado, continuariam sendo severamente atacados por outros Sumo Pontífices, como Leão XIII, Pio IX e Pio X, em recorrentes bulas e manifestações dos Chefes da Igreja no Século 19.

Vale recordar, outra famosa encíclica, promulgada em 1864, pelo Papa Pio XIX, com o título de “Quanta Cura”, que foi acompanhada de um famoso documento, o Syllabus, onde a Igreja arrola o que entende serem os grandes erros da modernidade laica, citando como tais: o comunismo, o socialismo, o liberalismo cultural e religioso, o naturalismo, as sociedades secretas e outras ideias em grande ebulição na época. Não fala em espiritismo, mas, na medida em que condena o “naturalismo”, ou a ideia da superioridade do Direito Natural sobre o Direito Divino ou Eclesiástico, toca exatamente no ponto fulcral da moral e da ética espírita, presentes em toda a terceira parte de O Livro dos Espíritos.

Um dos pontos mais atacados no Syllabus é a normatização estatal do matrimônio, antes administrado exclusivamente pela Igreja, que o considerava um sacramento, enquanto, perante o Estado, nada mais é do que um contrato civil entre os cônjuges. Nessa mesma linha, condena o divórcio, eis que, para a Igreja o casamento é um vínculo indissolúvel.

Laicismo e espiritismo

Felizmente, pouco a pouco, vai ficando para trás a ideia, tão fortemente arraigada no movimento espírita brasileiro, de se identificar o espiritismo como uma religião. O aprofundamento do estudo da vida e da obra de Allan Kardec, saudavelmente introduzido há quase meio século no próprio movimento, e objeto, hoje, de ricas ampliações de parte de pesquisadores e intelectuais espíritas, deixaram clara a intenção de seu fundador de conceituar o espiritismo não como uma religião, mas como uma ciência de consequências filosófico-morais.

Não sendo o espiritismo uma religião, e não pretendendo, como disse Kardec, em seu famoso Discurso de Abertura, de 1º de novembro, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, “enfeitar-se” com um título que não possui, pode-se, e deve-se, naturalmente, tratá-lo como um movimento espiritualista, humanista e laico.

Ser laico não implica, necessariamente, em ser antirreligioso. Pode-se, perfeitamente, respeitar todas as crenças, reconhecer nelas algumas contribuições relevantes no campo do processo de desenvolvimento ético e moral da humanidade, mas, e ao mesmo tempo, negar-lhes a possibilidade de interferência baseadas exclusivamente em artigos de fé, no campo das relações estatais e na formulação de leis e políticas administrativas. Esse laicismo, reconhecido mesmo por um papa conservador, como foi Bento XVI, como “saudável”, separando Igreja e Estado é, mais do que isso, necessário para o bom desenvolvimento ético, plural e democrático da sociedade.

As obras fundadoras do espiritismo, mesmo colocando-o na condição de promover a “aliança entre a ciência e a religião”, não cuidam de “revelações divinas”, como o fazem todas as religiões, mediante seus livros sagrados. A moral adotada pelo espiritismo é aquela contida na “lei natural”, que “indica o que devemos fazer e o que não devemos fazer”, e que está inscrita “na consciência” do espírito imortal (questões 614 e seguintes de O Livro dos Espíritos).

Isso não é religião, é filosofia. Uma filosofia progressista que, tendo como fundamento a condição transcendente e espiritual do ser humano, também reconhece na razão e não nos dogmas religiosos, o caminho para o progresso, na busca da verdade, em clima de liberdade, de igualdade e de fraternidade.

A laicidade, sob cuja perspectiva o espiritismo contempla o ESPÍRITO – “princípio inteligente do universo”, consoante a questão 23 de O Livro dos Espíritos – tem como pressuposto inafastável a liberdade de pensamento. Esta, segundo Kardec, significa “livre-exame, liberdade de consciência, fé raciocinada”. Diversamente do dogma religioso, “o livre-pensamento eleva a dignidade do homem, dele fazendo um ser ativo, inteligente, em vez de uma máquina de crer”. (Revista Espírita, 1867) .

Essa perspectiva assumida pelo espiritismo coloca-o inteiramente ao lado do laicismo e não da religião, nesse embate que se trava ao curso de todo o Século 19 entre a Igreja e o Estado Moderno.

E justamente por se postar ao lado da laicidade, o nascente movimento espírita, administrado por Allan Kardec, sofre os ataques da Igreja. Kardec registra isso no seu artigo “Período de Luta”, publicado na Revista Espírita de dezembro de 1863, e que, segundo ele, começou com o Auto de Fé de Barcelona, em 9 de outubro de 1861, onde teria sido dada

 

“…a palavra de ordem: sermões furibundos, mandamentos, anátemas,
excomunhões, perseguições individuais, livros, brochuras, artigos de jornais,
nada foi poupado, nem mesmo a calúnia. estamos, pois, em pleno período de luta,
mas este não terminou.”.

 

A palavra “laicismo” não aparece nas obras de Kardec, mas toda sua obra, fundada nas revelações da ciência e nos ditames das leis naturais rejeita o dogma religioso como fonte de conhecimento, substituindo-o pela razão, pela experiência humana, pelo intercâmbio entre a humanidade encarnada e a humanidade desencarnada, movidas pela lei do progresso.

Laicismo e laicidade seriam bandeiras que apareceriam nas décadas seguintes e foram largamente utilizadas, por exemplo, no I Congresso Internacional Espírita, de 1888, em Barcelona, em cujas conclusões, aparece esta recomendação aos espíritas de todo o mundo:

 

“O esforço constante para difundir o Laicismo por todas as esferas da vida. – A absoluta liberdade de Pensamento, o Ensino integral para ambos os sexos e o Cosmopolitismo como base das relações sociais.”.

 

No Congresso Espírita de Barcelona, como também no Congresso Hispano-Ameriano de Espiritismo, de Madri (1892), pensadores como o espanhol Visconde de Torres-Solanot (1840/1902) e o francês Charles Fauvety (1813/1893) usaram largamente a expressão “religião laica” para definir o espiritismo.

A expressão “religião laica”, talvez por carregar certa ambiguidade, não se sustentaria com o tempo.

No meu entender, os esforços dos espíritas verdadeiramente livres-pensadores, da atualidade, devem ser no sentido de identificar o espiritismo com movimentos laicos, humanistas, capazes de se inspirar em pesquisas científicas e vocacionados a criar políticas de bem-estar social, de progresso e de fraternidade entre todos os povos e pessoas. A proposta espírita, difundida na sua integralidade e, notadamente, a partir das perguntas e respostas, contidas em sua terceira parte, tratando das “leis divinas ou naturais” está em consonância com todos os anseios em favor de uma sociedade próspera e feliz. O movimento espírita, como um todo, pode ser um eficiente auxiliar nesse processo. Como afirmou Kardec:

“O Espiritismo não cria a renovação social; a madureza da Humanidade é que fará dessa renovação uma necessidade. Pelo seu poder moralizador, por suas tendências progressistas, pela amplitude de suas vistas, pela generalidade das questões que abrange, o Espiritismo é mais apto, do que qualquer outra doutrina, a secundar o movimento de regeneração; por isso, é ele contemporâneo desse movimento." 

 

Secundar, como desejava Kardec, significa integrar-se a todos esses movimentos progressistas, contribuindo com eles a partir de sua visão de Deus, de homem e de mundo. Saliente-se que a própria Igreja Católica, hoje, sob a condução do Papa Francisco assume posições em sentido diametralmente oposto àquelas expostas nos documentos oficiais da Igreja do Século 19. Na medida em que acolhe e deixa de condenar a homossexualidade, em que convida a integrar-se a seus cultos casais que se divorciaram de seus cônjuges anteriores, em que volta a ação da Igreja às populações mais carentes, desenvolvendo políticas sociais em defesa dos socialmente excluídos, pode-se dizer que a Igreja se laiciza e vai ao encontro do pluralismo religioso e do secularismo que tanto condenou no Século 19.

Por outro lado, entretanto, há um crescente segmento cristão que assume posturas conservadoras, nos costumes, na política, na pregação da fé cega que separa os “bons” dos “maus”. E esses segmentos, notadamente no Brasil, ganham posições políticas importantes. Tiveram, no governo dos últimos quatro anos enorme influência e foram responsáveis pela implantação de um clima de ódio. Pretensamente escudados na fé, obstaculizaram avanços importantes da própria ciência e, no campo político/social, em matérias como igualdade de sexo e de gênero. Contaminaram o setor educativo com ultrapassados conceitos moralistas e semearam muita intolerância religiosa, especialmente com relação a crenças e cultos de matriz africana. Enfim, tentaram implantar um regime teocrático, onde a Bíblia, e não a Constituição, deveria ser tida como a Lei Maior.

É preciso estarmos atentos à História. Todos os grandes avanços cilvilizatórios da Modernidade, a democracia, a igualdade de direitos civis, a abolição da escravatura, a extinção da pena de morte na maioria dos países, etc., foram conquistas da sociedade laica e, quase sempre, contra os interesses defendidos pela religião. Por séculos, fomos treinados para crer e para aceitarmos as injustiças sociais como provações divinas. O conhecimento tomando o lugar da crença foi – e, em muitas circunstâncias, continua sendo – uma luta árdua.

É da natureza da religião o desejo de preservar sob seu domínio, fantasiados de dogmas e mistérios insondáveis, os temas relativos à alma humana, sua natureza, sua origem, seu destino. Entretanto, a espiritualidade é muito mais do que religião e bem mais do que simples crença. É a busca da compreensão integral do ser humano, que extrapola ritos e mistérios, para se compatibilizar com a ciência, com a filosofia, com o amor e todos os sentimentos nobres semeados pela natureza na alma humana.

Para finalizar, o laicismo é importante e indispensável ao Estado Democrático de Direito. Uma sociedade regida por dogmas de fé, e não pela expressão de vontade de seus cidadãos, não se compatibiliza com a liberdade de pensamento, torna-se escrava, subserviente, de indivíduos geralmente incapazes do exercício do poder, mas que, por força de um pensamento mágico e irracional, se arvoram em “representantes de divindades”.

Só o laicismo pode assegurar o mandamento primeiro de uma democracia: “Todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido”.

 

Referências bibliográficas e de informação midiática

1) Jornal Zero Hora, edição de 23 de setembro de 2012.

2) Encíclica “Mirari Vos”, promulgada pelo Papa Gregório XVI, em 1832.

3) Encíclica “Quanta Cura”, promulgada pelo Papa Pio XIX, em 1864.

4) “Monopólio do Sagrado”, Francisco Catão e Magno Vilella – Editora Best Seller.

5) “O Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec.

6) “A Gênese”, 5ª edição – Allan Kardec.

7) “Revista Espírita”, Fevereiro 1867 e dezembro de 1868.

8) Anais do Primeiro Congresso Internacional Espírita de Barcelona/1888 – www.autoresespiritas clássicos.com . 

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