quinta-feira, 11 de agosto de 2022

SOCIOLOGIA E ESPERANÇA Capitalismo, humanismo e espiritismo Por Jerri Almeida


 


SOCIOLOGIA E ESPERANÇA

Capitalismo, humanismo e espiritismo

 

Em outubro de 2011, foi realizado pelo Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo um seminário sobre o tema: Sociologia e Esperança, com pesquisadores da USP, Universidade de Cambridge e da Universidade de Lisboa. Dentre os vários enfoques, coube ao professor Alfredo Bosi[1] discutir o tema: “Economia e humanismo”.[2] Apesar do desencanto que possamos nutrir por essa relação, trata-se de uma reflexão oportuna e necessária.

O movimento Economia e Humanismo, citado por Bosi, surgiu na França em meados dos anos 40. Fundado por Louis-Joseph Lebret, um ex-marinheiro que se tornou oficial da Marinha, servindo na Primeira Guerra Mundial. Aos 26 anos, ainda muito jovem, Lebret decidiu abandonar sua sólida carreira na Marinha e entrar para a ordem dos padres dominicanos. Após sua ordenação, em 1928, esse jovem da Bretanha, fundou na região de Saint-Malo a Associação dos Jovens Marítimos, passando a dedicar-se aos estudos da estrutura familiar e social dos pescadores. Logo, percebeu as dificuldades dos pescadores locais em concorrer com grandes pesqueiros japoneses.

 

Era a indústria de capitais e dimensões internacionais que causava um duplo dano à pesca artesanal: suplantava a ponto de eliminar os seus meios de trabalho e, ao mesmo tempo, dizimava os cardumes do mar do Norte, desrespeitando os períodos de reprodução e desova. Assim, até mesmo a economia de subsistência acabava subtraída ao pescador pobre da região.[3]

 

Lebret tratou de aproximar os pescadores num sistema de cooperativa, formando uma comunidade de produção e distribuição, organizada por pequenas redes locais e familiares. Criou-se, assim, uma relação de rede solidária que, em momentos de crise, desemprego, fome ou doença, se ajudava mutuamente. Ali, para Alfredo Bosi, estavam plantadas as primeiras sementes do pensamento de “Economia e Humanismo”. A partir de 1943, quase no final da Segunda Guerra, o padre Lebret se voltou para a criação formal do movimento economia e humanismo, construindo sua teoria sobre essa relação. A exploração da pesca por indústrias estrangeiras em prejuízo dos trabalhadores locais deu-lhe o conhecimento da injustiça de um sistema que não se limitava aos problemas de uma determinada região. Era, portanto, necessário pensar de modo mais profundo sobre essas estruturas exploratórias.

As teorias sociais que examinavam a opressão do sistema econômico sobre o trabalhador foram por ele exaustivamente estudadas. Entretanto, o seu caminho não foi o de se filiar a nenhuma corrente ideológica ou partidária existente. Assim, os fundamentos da Economia Humana defendiam uma economia voltada para atender às exigências fundamentais do ser humano em sociedade, avessa tanto ao jogo corrosivo do liberalismo econômico, como também ao controle rígido do Estado. Uma economia humana deveria se voltar para aspectos reais, já que o capitalismo cria necessidades e bens fictícios para estimular o consumismo.

Em sua perspectiva, existiam demandas pessoais e coletivas que precisavam ser atendidas pela economia, como por exemplo: a produção necessária de alimentos, bens e serviços fundamentais, como farmácias e médicos de bairro; vida cultural, educação. Para ele, a capacidade de se compreender uma obra literária também integraria a necessidade por dignidade. É preciso que o indivíduo tenha tempo o suficiente para pensar, estudar, meditar, contemplar e/ou produzir arte. O trabalho excessivo afasta o humano da arte, da literatura, do pensamento.

Uma questão bastante atual, considerando-se o ritmo acelerado dos compromissos impostos pela sociedade capitalista contemporânea. Curiosamente, no entanto, os discursos de Lebret e seu movimento, ocorriam num contexto de crescente industrialização do pós-guerra, de êxodo rural e de aumento da urbanização. O seu ideário de uma economia humanizada não logrou competir com o fascínio do progresso material. O padre Louis-Joseph Lebret faleceu em 26 de julho de 1966, deixando suas contribuições e reflexões para um desenvolvimento não economicista.

Nunca existiu um sistema econômico intrinsecamente justo, humanizado, livre da exploração do homem pelo homem. Seja no feudalismo, no mercantilismo ou no capitalismo, cada um com sua especificidade histórica, o ser humano se defrontou com injustiças das mais diversas. No capitalismo, seria um erro ou muita ingenuidade, crer que produzir riqueza seja o suficiente para tornar uma sociedade humanamente mais digna. Por isso, temos uma certa consciência de que, sendo a economia amoral, necessitamos também da justiça e da política. E como justiça e política também não bastam, é necessário ética, amor e solidariedade.

O capitalismo é um sistema econômico para gerar riqueza. Produzir, com riqueza, mais riqueza. Mas, não para todos. Nem mesmo para uma grande parcela da sociedade. Somente, para alguns. Os mais pobres, por definição, estão excluídos dos benefícios gerados pelo próprio sistema. Qualquer observador mais atento, independentemente de sua “linha ideológica”, perceberá – desde que tenha um mínimo de honestidade intelectual e bom senso – que o capitalismo é um sistema excludente.

Segundo dados do Banco Mundial[4], quase metade da população no mundo vive abaixo da linha da pobreza. Isso representa algo em torno de 3,4 bilhões de pessoas. Trata-se de um dado alarmante e torna evidente que a prosperidade capitalista não é compartilhada. Mais de 1,9 bilhão de pessoas, ou 26,2% da população mundial, viviam com menos de 3,20 dólares por dia, em 2015. Cerca de 46% da população mundial vivia com menos de 5,50 dólares por dia. O relatório do Banco Mundial constata ainda, que mulheres e crianças são mais afetados pela pobreza, pois são mais vulneráveis socialmente.

Na verdade, não se trata apenas de implantar políticas de desenvolvimento econômico, que potencializem o crescimento da riqueza nacional e global. O problema está representado numa famosa frase: “é preciso deixar o bolo crescer, para depois dividi-lo”.  Em algum momento, se coloca muito fermento na economia e o “bolo cresce”, mas os gananciosos não desejam dividi-lo, comem sozinhos, enquanto os mais famintos apenas observam. É desumano o velho e esdrúxulo argumento no qual os pobres são acomodados, inaptos ou despreparados para saírem da pobreza. O sistema que os gera, também os culpa e os condena. Mas, como alertou o filósofo André Comte-Sponville, não devemos cair no erro de pensarmos que um sistema econômico seja “moral”.

A filosofia social espírita não busca argumentos reencarnatórios para justificar os históricos problemas da fome, miséria e exploração, de um lado, e da concentração de riquezas, do outro. A teoria espírita do conhecimento insiste, entre outros aspectos, numa dinâmica humanista. O ser humano deve exercer seu protagonismo na edificação de um mundo melhor, inclusive, questionando os sistemas econômicos, ideologias e políticas de Estado que aumentam o fosso das desigualdades sociais.   

Em seu importante ensaio sobre o humanismo espírita, Eugenio Lara aponta para uma interessante estatística: a palavra “homem”, no sentido de ser humano, aparece 679 vezes na segunda e definitiva edição de O Livro dos Espíritos.  Da mesma forma, a palavra “humanidade” tem 81 ocorrências e a palavra “humano” surge 50 vezes na referida obra. Para Lara: “Esses números são suficientes para demonstrar, ao menos em termos quantitativos, que a filosofia espírita tem no homem, no ser humano, o objeto primordial de suas reflexões, conceituações e ensinamentos”.[5]

No mesmo sentido que o problema das desigualdades das condições sociais é obra do homem, por meio de suas ações no tempo e no espaço, a questão da exploração seja ela antiga ou moderna, não poderá encontrar justificativas plausíveis no espiritismo. Estar numa condição de miserabilidade, por exemplo, não é uma experiência “programada” no mundo dos espíritos. Se assim fosse, estaríamos todos conformados com as injustiças sociais ou com os seis milhões de judeus mortos pelos nazistas. A lógica é a mesma.  Haveria um completo imobilismo histórico e jurídico, contrariando a lei do progresso.

O escritor e pensador argentino, Manuel S. Porteiro, rejeitou o “falso argumento da causalidade reencarnatória”.[6] O espiritismo, por sua natureza racionalista, progressista, pluralista e humanista, não poderia naturalizar a exploração do homem sobre o homem. A reencarnação, à luz da filosofia espírita, faz parte, intrinsicamente, da lei natural, oportunizando etapas biológicas de aprimoramento no cenário da vida física. Todavia, o ser humano é o agente principal que, a partir de sua autonomia, vai construindo o enredo de sua existência. O indivíduo e a sociedade são, portanto, os elementos responsáveis pelo grande projeto de um mundo melhor e mais humanizado. Herculano Pires[7], situou o espiritismo também como uma cosmosociologia, com toda a sua complexidade na interpretação do fato social, a partir de uma perspectiva mais abrangente das realidades sócio-político-espiritual. 

Poderemos, então, situar o pensamento social espírita dentro de uma “sociologia da esperança”, permeada de desafios. E, talvez, o maior deles seja o de colocar definitivamente o ser humano no centro de todas essas discussões. Pensar uma sociologia da esperança implica em questionarmos uma estrutura não apenas política e econômica, mas também uma cultura centralizada na ideia capitalista de progresso. O progresso com base na destruição da natureza, na exploração dos recursos naturais, finitos, no esgotamento da vitalidade dos ecossistemas, na concentração de riquezas, na cultura do descartável e da obsolescência imediata.

A realidade histórica, econômica e cultural predominante na sociedade global, ainda que transitória, define um contexto marcadamente distante do pensamento humanista inserido em O Livro dos Espíritos. O curso da história é formado por permanências e mudanças. A doutrina espírita ao argumentar sobre a Lei do Progresso, abre um horizonte confortador, na medida em que os processos sociológicos não estão estagnados. Em todos os períodos da história houveram reações às injustiças sociais visando a construção de uma nova ordem social.

Esse é um processo lento, pautado no amadurecimento da consciência humana de indivíduos e de grupos. São forças e vozes de resistências que reencarnam na Terra contribuindo para fomentar novos ciclos históricos. A transformação estrutural da sociedade do mercado, na sociedade do amor e do humanismo, é uma meta evolutiva. Reformas sociais são, portanto, processos históricos inseridos numa perspectiva de longa duração. Mas, os espíritas não deveriam depositar seus discursos somente nessa “meta evolutiva”, eximindo-se das responsabilidades de influir, como cidadãos e agentes políticos, nos rumos dessas transformações.

Os dilemas sociais devem ser pautas de reflexão permanente, de fomento para novos questionamentos que contribuam com o humano, numa sociedade ainda tão desumana. A filosofia espírita é esperançosa, mas não ingênua. Precisamos pensar sobre nossa identidade humana, sobre nossa natureza espiritual e, também, sobre o amargor da indiferença. Uma sociologia da esperança à luz do espiritismo implica, inexoravelmente, numa atitude dinâmica e crítica do mundo em que vivemos, e dos nossos posicionamentos como seres na existência. É um tema de reflexão e ação que ainda está por ser descortinado nos movimentos espíritas.

 

 

 

 

NOTAS



[1] Alfredo Bosi é titular de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo e pertence à Academia Brasileira de Letras.

[2] Disponível em: http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/39496

[3] BOSI, Alfredo. Economia e Humanismo. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/39496

[4] Disponível em: https://www.worldbank.org/pt/news/press-release/2018/10/17/nearly-half-the-world-lives-on-less-than-550-a-day-brazilian-portuguese

[5] LARA, Eugenio. Breve Ensaio sobre o Humanismo Espírita. Santos, SP: CPDoc, 2012. p.91.

[6] MOREIRA, Milton Rubens Medran. Direito Natural, Lei Natural e Justiça Social. In. Perspectivas Contemporâneas da Reencarnação. REIS, Ademar Arthur Chioro dos. NUNES, Ricardo de Morais. (Org).  Santos-SP: CPDoc & CEPA Brasil, 2016. p.142.

[7] Ver o livro: Introdução à Filosofia Espírita, de J. Herculano Pires. 



sábado, 6 de agosto de 2022

Espiritismo, política e atualidades por Luiz Gustavo

 



Espiritismo, política e atualidades

 

            Como vem sendo salientado, cada vez mais e por mais estudiosos sérios da doutrina, o Espiritismo trata de assuntos políticos, sociais. Traremos aqui alguns assuntos políticos da atualidade e a posição da doutrina a seu respeito. Assim, veremos um pouco como a doutrina, a política e as atualidades estão intimamente relacionadas. Daí a importância que vemos em citar passagens centrais dos textos. É de especial importância reconhecer como a doutrina espírita se posiciona sobre os diversos assuntos políticos que tocam à nossa vida, até para que, considerando-a, tomemos nossa parte na necessária transformação social da humanidade.

         Deparamo-nos hoje com o grave problema da desigualdade social, que engendra uma multidão de injustiças no mundo, sendo raiz de preconceitos, opressão, abusos, violência etc. Ora, na visão da direita política, a desigualdade social é natural, razão pela qual procura, quando não agravá-la (neoliberalismo), somente administrá-la (liberalismo social). Para a esquerda, por outro lado, a desigualdade não é natural, por isso, propõe mitigá-la (socialismo) e, ao cabo do processo social histórico progressivo, extingui-la (comunismo). Sobre isso, diz nossa doutrina:

 

806. A desigualdade das condições sociais é uma lei da natureza? Não; ela é a obra do homem e não a de Deus.”

— Essa desigualdade desaparecerá um dia? “De eterno só há as leis de Deus. Não a vês se apagar pouco a pouco cada dia? Essa desigualdade desaparecerá com a predominância do orgulho e do egoísmo; não restará senão a desigualdade do mérito. (...) Não há senão o Espírito que é mais ou menos puro, e isso não depende da posição social.” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 806. Destaques meus, assim nas passagens seguintes.)

 

         Lê-se aí a palavra “mérito”. Esse “mérito” de que fala a citação nada tem a ver com a “meritocraciada posse, em voga hoje no meio capitalista. Quando a doutrina espírita fala em mérito, entende-o apenas como mérito moral, que posiciona o Espírito na escala espírita (Livro dos Espíritos, nº 100), e não um “mérito de esforço por enriquecimento” em vista de se elevar na escala social do mundo. Com efeito, o apelo ao “mérito” para justificar o enriquecimento não passa de faceta do orgulho:

 

Crer-se-ia, ao ver a atividade que desdobrais, que a ela se prende uma questão do mais alto interesse para a humanidade, enquanto que se trata, quase sempre, apenas de vos pôr em condições de satisfazer necessidades exageradas, a vaidade, ou de vos entregar aos excessos. Quantas penas, cuidados, tormentos se dá, quantas noites sem sono, para aumentar uma fortuna frequentemente mais que suficiente! Por cúmulo de cegueira, não é raro ver aqueles que um amor imoderado à fortuna e aos gozos que ela proporciona submete a um trabalho penoso prevalecerem-se de uma existência dita de sacrifício e de mérito, como se trabalhassem para os outros e não para si mesmos. Insensatos! Credes, pois, realmente que vos serão levados em conta os cuidados e esforços dos quais o egoísmo, a cupidez ou o orgulho são o móvel... (Allan Kardec, Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XVI, nº 12.)

 

         Em diversos manuais de Economia atuais, encontra-se a “escassez” de recursos naturais figurando como a principal fonte da concorrência econômica e, por conseguinte, da desigualdade social[1]. O Espiritismo, desde seu surgimento, enfatiza que esse mal da escassez não é um problema de recursos, mas de desregramento humano, ou seja, de uma organização social viciada:

 

Por que a Terra não produz sempre bastante para fornecer o necessário ao homem? “É que o homem a negligencia, o ingrato! Ela é, no entanto, uma excelente mãe. Frequentemente também, ele acusa a natureza do que é o feito de sua imperícia ou de sua imprevidência. A Terra produziria sempre o necessário, se o homem soubesse com ele se contentar. Se ela não basta a todas as necessidades, é que o homem emprega no supérfluo o que poderia ser dado ao necessário. (...) Em verdade vos digo, não é a natureza que é imprevidente, é o homem que não sabe se regrar.” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 705.)

Para todo mundo há lugar ao sol, mas é com a condição de aí ocupar o seu, e não o dos outros. A natureza não poderia ser responsável pelos vícios da organização social e pelas consequências da ambição e do amor-próprio. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 707.)   

 

         A acumulação de riquezas, característica da sociedade capitalista, já era contraditada por Jesus: “Não ajunteis tesouros na terra”, dizia ele (Mateus 6:19). A doutrina espírita, considerando ainda que essa acumulação gera o supérfluo de um lado e necessidades do outro, trata-a com bastante rigor:

 

Que pensar daqueles que açambarcam os bens da Terra para se proporcionar o supérfluo em prejuízo daqueles a quem falta o necessário? “Desprezam a lei de Deus e responderão pelas privações que tiverem feito suportar.” ... Os que vivem à custa das privações dos outros exploram os benefícios da civilização em seu proveito; não têm da civilização senão o verniz. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 717 e nota.)

 

A exploração e a concorrência, que fazem o homem rivalizar em vez de se solidarizar, no mundo egoísta do capitalismo, vêm denunciadas com precisão na doutrina:

 

Com o egoísmo, o interesse pessoal passa antes de tudo, cada um puxa para si, cada um vê em seu semelhante apenas um antagonista, um rival que pode entrar em concorrência conosco, que pode nos explorar ou que nós podemos explorar; é de quem passar à frente de seu vizinho: a vitória é do mais esperto, e a sociedade, coisa triste de dizer, consagra frequentemente essa vitória, o que faz com que ela se divida em duas classes principais: os exploradores e os explorados. Disso resulta um antagonismo perpétuo que faz da vida um tormento, um verdadeiro inferno. (Allan Kardec, Viagem espírita em 1862, Discursos, nº III, § 2.)

 

Léon Denis não deixa de se expressar sobre o tema, mostrando que a mudança da sociedade – pautada nas verdadeiras leis de Deus – precisa ser no sentido de extinguir essa rivalidade, a exploração, e implantar a justiça na repartição dos bens:

A verdade sendo conhecida, compreender-se-ia que os interesses de uns são os interesses de todos, e que ninguém deve ser a presa dos outros. Daí, a justiça na repartição e, com a justiça, em vez de rivalidades odiosas, uma mútua confiança, a estima e a afeição recíprocas, numa palavra, a realização da lei de fraternidade, transformada na única regra entre os homens. Tal é o remédio que o ensino dos Espíritos traz aos males da sociedade. (Léon Denis, Depois da morte, cap. LV, “Questões sociais”.)

 

Sim, os Espíritos trazem, como sabemos, remédios não só aos males dos indivíduos, mas aos males da sociedade! Sem dúvida, os direitos trabalhistas também são artigos do código natural-divino:

 

Que pensar dos que abusam de sua autoridade para impor aos seus inferiores um excesso de trabalho? “É uma das piores ações. Todo homem que tem o poder de comandar é responsável pelo excesso de trabalho que impõe aos seus inferiores[2], pois transgride a lei de Deus.” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 684.)

 

         Alguns que têm uma posição social mais ou menos elevada (por nascimento ou enriquecimento) costumam pensar que os pobres o são “por não trabalharem” como eles próprios, ou “por falta de esforço”. Mas Kardec, entrando na Economia Política, faz ver o erro desse pensamento, pois é preciso considerar o problema da estrutura socioeconômica, a qual não permite lugar de trabalho a todos:

 

Não é tudo dizer ao homem que ele deve trabalhar, é preciso ainda que aquele que espera sua existência de seu labor encontre de que se ocupar, e é o que não tem sempre lugar. Quando a suspensão do trabalho se generaliza, ela toma as proporções de um flagelo como a miséria. A Ciência Econômica busca o remédio no equilíbrio entre a produção e o consumo; mas esse equilíbrio, a supor que seja possível, terá sempre intermitências, e durante esses intervalos o trabalhador não deve, por isso, viver menos. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 685, nota.)

 

Tendo isso em conta, enquanto a sociedade não mudar em direção ao socialismo, avançando na justiça social, as reivindicações trabalhistas são consideradas legítimas, como lemos nos filósofos espíritas:

Subscrevemos de bom grado as reivindicações legítimas da classe operária reclamando para o trabalhador sua parte de influência e de bem-estar, seu direito aos benefícios industriais e seu lugar ao sol. (Léon Denis, Socialismo e espiritismo, cap. I.)

O direito de greve é legítimo, é a arma do trabalhador contra as pretensões exageradas dos capitalistas, dos chefes de indústria. (Idem, cap. VIII.)

O socialismo, pois, sob sua face econômica e com as regras morais que estabelece para dignificar e elevar a classe trabalhadora, não pode deixar de se orientar nos mesmos princípios do Espiritismo. (Cosme Mariño, Conceito espírita do socialismo, 1ª conferência.)

 

Prosseguindo em assuntos da atualidade, sabe-se que há quem defenda, geralmente entre os conservadores, propostas políticas desumanas, como o armamento da população e o militarismo, a pena de morte e, coisa lamentável, até a tortura. Um espírita sério poderia aderir a qualquer dessas propostas? Temos o tratamento direto dessas questões na doutrina.

Sobre o porte de armas e o militarismo, vemos o quanto são propostas equivocadas e, pelo progresso, devem desaparecer:

 

“Que responsabilidade assumem aqueles que recusam a instrução às classes pobres da sociedade! Eles creem que com guardas [gendarmes] e a polícia, podem prevenir os crimes. Como estão errados!” (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, pt. II, cap. IV, “Jacques Latour”, nº II.)

Um sinal característico dos costumes do tempo e dos povos está no uso do porte habitual, ostensivo ou escondido, de armas ofensivas e defensivas; a abolição desse uso testemunha o abrandamento dos costumes. (...) Hoje, a morte de um homem é acontecimento que emociona: outrora, não se lhe dava atenção. O Espiritismo levará embora estes últimos vestígios da barbárie, inculcando nos homens o espírito de caridade e de fraternidade. (Allan Kardec, Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XII, nº 16.)

Para que vossa Terra evolua e o homem possa subir sobre um outro planeta, será preciso renunciar às ideias militaristas. Uma nova era psíquica se prepara para vós. (...) Deveis vos inspirar em instituições do porvir, e não nas do passado. (Léon Denis, Socialismo e espiritismo, cap. VII.)

 

O mesmo se pode dizer da pena de morte (cujos defensores bradavam um lema que até recentemente estava na moda: “bandido bom é bandido morto”). Ela é claramente combatida pelo Espiritismo:

 

A pena de morte desaparecerá incontestavelmente, e sua supressão marcará um progresso na humanidade. Quando os homens forem mais esclarecidos, a pena de morte será completamente abolida sobre a Terra; os homens não terão mais necessidade de ser julgados pelos homens. (...) Há outros meios de se preservar do perigo, que não matá-lo. É preciso, aliás, abrir ao criminoso a porta do arrependimento e não fechá-la a ele. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 760, 761.)

 

Finalizando nosso texto, mencionaremos a tortura – decerto, seria ocioso falar, se não houvesse alguns estultos defensores dela na atualidade. A tortura de Jesus, dos profetas e dos apóstolos, bem como dos filósofos e cientistas nos períodos de trevas, são mais que suficientes para fazer repeli-la; aliás, só o que ela significa já deveria causar repulsa a qualquer “homem de bem”, pela crueldade. Fica evidente que seria um absurdo o espírita apoiar ou aderir a quaisquer defensores dessa prática atroz:

 

Teu Espírito não se revolta lendo o relato (...) das torturas que se fazia sofrer o condenado, e mesmo o acusado para lhe arrancar, pelo excesso de sofrimentos, a confissão de um crime que frequentemente ele não tinha cometido? (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 763.)

Destruís mesmo a ideia do inferno tornando-a ridícula e inadmissível às vossas crenças, como o é aos vossos corações o hediondo espetáculo dos carrascos, das fogueiras e das torturas da Idade Média! O quê, então! É quando a era das represálias cegas está para sempre banida das legislações humanas que esperais mantê-la no ideal? (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 1009, comunicação de “Paulo, apóstolo”.)

Ajudai-vos, portanto, sempre em vossas provas respectivas, e não vos olheis jamais como instrumentos de tortura; esse pensamento deve revoltar todo homem de coração, todo espírita sobretudo; pois o espírita, melhor que todo outro, deve compreender a extensão infinita da bondade de Deus. (Allan Kardec, Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, nº 27.)

 

Inumeráveis outros assuntos sociais e políticos há na doutrina, que não pretendemos esgotar neste artigo. Apenas ensaiamos expor o quanto o Espiritismo, a política e as atualidades estão conexas, mostrando, ademais, como é importante o espírita conhecer a posição da sua doutrina para não cair em contradição. É essencial que o espírita se inteire dos problemas sociais de seu tempo e, com o auxílio da doutrina – que trata desses temas –, possa atuar de modo a melhorar a si mesmo e o seu meio, tendo em vista o progresso para um mundo melhor. Conhecendo as posições doutrinárias sobre temas sociopolíticos e econômicos e exercendo sempre sua livre razão, o espírita tem melhores condições de aderir a (e mesmo elaborar) projetos de sociedade, propostas políticas mais condizentes com seus ideais e com o horizonte de um mundo regenerado, que deixará para trás os erros do passado e de hoje. Assim como também estará mais apto a ser agente consciente da transformação da sociedade, buscando aumentar o bem comum e trazer a justiça e a solidariedade fraternal à Terra.

 


Referências bibliográficas

 

BÍBLIA de Jerusalém: nova edição, revista e ampliada. Trad. Gilberto da Silva Gorgulho, Ivo Storniolo, Ana Flora Anderson (Coord.). São Paulo: Paulus, 2002.

DENIS, Léon. Depois da morte. 3.ed. Trad. Maria Lúcia Alcântara de Carvalho. Rio de Janeiro: Celd, 2010.

_______. Socialismo e espiritismo (1924). Trad. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos. Limeira, SP: Editora do Conhecimento, 2018.

KARDEC, Allan. L’Évangile selon le Spiritisme [O Evangelho segundo o Espiritismo]. 4.ed. Paris: Ledoyen, Dentu, Henri, 1868.

_______. Le Ciel et l’Enfer: ou la justice divine selon le Spiritisme [O Céu e o Inferno: ou a justiça divina segundo o Espiritismo]. Paris: Ledoyen, Dentu, Fréd. Henri, 1865.

_______. Le Livre des Esprits: philosophie spiritualiste [O Livro dos Espíritos: filosofia espiritualista]. 17.ed. Paris: Didier et Cie., 1869.

_______. Voyage Spirite en 1862 [Viagem espírita em 1862]. Paris: Ledoyen; Bureu de La Revue Spirite, 1862.

MARIÑO, Cosme. Conceito espírita do socialismo (1913). Trad. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos. Limeira, SP: Editora do Conhecimento, 2022.

TROSTER, Roberto Luís; MORCILLO, Francisco Mochón. Introdução à economia: edição revisada e atualizada. São Paulo, Pearson Makron Books, 2002.



[1] Há manuais que já explicam a relativização necessária da noção de escassez: “Parece estranho a economia abordar a escassez como um problema universal, isto é, como um problema que afeta todas as sociedades. Isso se deve em razão de a economia considerar o problema como de escassez relativa, uma vez que os bens e serviços são escassos em relação ao desejo dos indivíduos. (...) Pode-se dizer que as necessidades são ilimitadas ou, de outra forma, que sempre existirão necessidades que os indivíduos não poderão satisfazer, ainda que seja somente pelo fato de os desejos tornarem-se ‘refinados’.” (Roberto L. Troster e Francisco Mochón, Introdução à Economia, Pearson Makron Books, p. 6-7.)

[2] Entendam-se os termos “superior” e “inferior”, na doutrina, assim como “forte” e “fraco”, com referência às posições ou classes sociais no capitalismo, isto é, como já vimos antes: os “exploradores” e os “explorados”, respectivamente, possuidores e trabalhadores.


I Congresso Ágora Espírita

Estamos muito felizes em te convidar para o I Congresso Ágora Espírita! Este é um evento que visa contribuir para a construção de uma socied...