Texto do Eixo de Pesquisa: Espiritismo,
Políticas e Promoção Social
Produção: Márcio Alexandre
Uma questão está acalorando as
conversas e até as prédicas nas casas espíritas do Brasil nos últimos anos: a
política nacional. Em tempos de polarização desse cenário, o movimento não deixou de ser influenciado
por esse momento que, vez ou outra, eleva ao ringue das discussões adeptos da
causa kardeciana. Por que será que o exercício da política é ainda visto por
muitos como algo malsão? O que tem de errado na política para que esta seja
taxada como algo pernicioso no meio? Seria o espírita um indivíduo superior na
escala dos encarnados e que por isso, inalcançável pelos problemas sociais para
não ter que se (pre)ocupar com eles? Será que o adepto da doutrina dos Imortais
não pode abrir a guarda no trato de tais assuntos sem se enlamear com sua
suposta “sujeira”? Ou o espírita é um ser de dupla vida social: uma pura,
dentro da casa religiosa e outra, devassa, fora dela?:
Desejaria
fugir do clichê de tentar usar o léxico para definir o verbete, mas não posso
me furtar de expor o que, historicamente, entendo por política: Na Grécia
Antiga a palavra referia-se às questões relativas à vida da cidade. A politikós não era uma atividade
qualquer: dela dependia a organização cotidiana e o futuro da polis. O demos (povo) de cada cidade-Estado tinha que se interessar pelos
problemas da comunidade, ou seja o indivíduo não seria um cidadão se não se
interessasse pela política e não a praticasse. Tal concepção foi divulgada na
obra Política de Aristóteles, o
primeiro tratado sobre a natureza do governo, suas configurações e funções. A
partir das revoluções liberais do século XVIII, a palavra passou a ser
empregada para designar as atividades relativas ao controle do Estado, ganhando
os contornos que temos atualmente.
Mas
o verbo politicar não fica apenas
restrito a essas definições técnicas e históricas e, muito menos, pode ficar dissociado
da sua acepção comum. Por exemplo, quando Aristóteles afirma que ”o homem é um ser
político por natureza”, ele quer dizer que naturalmente temos a necessidade de
viver em sociedade e que precisamos desse convívio para estabelecermos
deliberações. Assim, nessa perspectiva não se deve deplorar a atividade
política, classificando-a como algo pernicioso.
Opinar,
concordar, discordar, apresentar propostas, contrapropostas e até ficar isento,
é fazer política. Mesmo quando alguém diz não gostar dela, está politicando (no
sentido negativo), já que se omite e abre espaço para o outro sujeito que é
pernicioso para a coletividade. Digo que é até uma posição
confortável, pra não dizer fingida e, por consequência, hipócrita, um vez que
somos políticos em todas as situações da vida, dentro e fora da casa espírita.
Por que? Respondo: quem, na vida em sociedade, não opina sobre os
preços das coisas, as qualidades dos serviços públicos, sobre os problemas na
saúde, na educação e na segurança públicas? Quem não expõe sua opinião em
questões polêmicas como o aborto, a eutanásia, sobre a pena de morte? Quando
levamos (e levamos!) estes assuntos para a casa espírita, não tratamo-los de
outra forma senão pela perspectiva do convencimento dos assistentes de que não
se deve afrontar as leis divinas, de que devemos ser contra os projetos que
relativizam a Vida tramitados nas esferas dos Poderes políticos e isso, não é
outra coisa, senão politicar, ou seja, persuadir o outro sobre aquilo que achamos
ser o correto. O mesmo acontece quando nos reunimos em assembleias para
deliberar sobre decisões estatutárias ou regimentais na intenção de discutir,
negociar ou convencer os associados sobre nossos projetos ou ainda quando
deliberamos nas escolhas das chapas das diretorias que concorrem às direções
das casas espíritas. Portanto, há várias esferas de atuação na
política: as públicas, as de Estado, as filosóficas, as ideológicas, as
político-partidárias, como também há as que exigem dos espíritas e dos cidadãos
envolvimento, quando elas implicam no exercício da cidadania. O problema é que
muitos acham que tal exercício é partidário. Eis o erro! Por que é impossível,
por exemplo, não discutir política na casa espírita quando falamos da fome, do
racismo, da xenofobia, da violência domestica, do aborto etc., pois tais
problemas não estão limitados à bolha de nossas atividades espirituais, são
problemas de nossa geração! E estes, além de exigirem preces e vibrações, necessariamente,
exigem ações de nossa parte, como fez a própria Federação Espírita Brasileira
ao assinar petições com objetivo de pressionar os parlamentares para que estes
rejeitem qualquer projeto que vá de encontro aos fundamentos de defesa da Vida
que o Espiritismo endossa.
A política partidária, aquela que tem o papel de convencer
terceiros a aderirem a projetos eleitorais não deve ser, claro, pautada nas
casas espíritas. Não se deve fazer de palanque as tribunas do nosso movimento espiritual.
Porque isso personifica e nos separa. Nesse sentido Kardec foi taxativo. E
talvez seja esse o argumento levantado por muitos, de que política não
deve fazer parte das reuniões espíritas. Baseiam-se no seguinte apontamento do
codificador:
“ (...)Também não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai
cuidadosamente de vossas reuniões tudo quanto disser respeito à política e às
questões irritantes; nesse caso, as discussões não levarão a nada e apenas
suscitarão embaraços, enquanto ninguém questionará a moral, quando ela for boa
(...)” (1)
Mas este
é um exemplo de que não devemos fazer leituras apressadas de Kardec. De qual
política o mestre de Lion estava falando? Por que o codificador teve tal
cautela? O que o preocupava? Os desavisados esquecem que o cenário político da
época em que esse texto foi escrito, era perigosamente nocivo às liberdades
individuais, sob pena de prisão, deportação ou pena de morte. Luiz Bonaparte
(1848-1870) deu um Golpe de Estado em 1851 e proclamou-se imperador (Napoleão
III), governando até 1870. Seu governo foi marcado pela “forte repressão ao
movimento operário, implantou censura em todos os níveis, proibiu as greves e
as organizações sindicais, perseguiu adversários e manteve a jornada de doze
horas diárias de trabalho.” (2). Eis aqui um motivo da recomendação
de Kardec aos irmãos de Lion: O Mestre não queria – e com razão – expor a
Sociedade Espírita e muito menos os seus membros, às ameaças da repressão e aos
embaraços de prisões políticas. Para um movimento nascente, que estava ainda
por se estabelecer, não seria de bom tom peitar o regime autoritário do
sobrinho de Napoleão Bonaparte, autoproclamado “Protetor da Igreja Latina” (3).
Permitir discussões na Sociedade que
afrontasse a política napoleônica aliada da Igreja não seria adequado naquela
ocasião. Por isso, tomar a precaução de Kardec como justificativa de
recomendação para não tratar de assuntos “políticos” na casa espírita é fazer
interpretação superficial do codificador e mais ainda do conceito estudado por
Aristóteles. Nesse sentido e apurando melhor o
contexto de sua época, não podemos fazer das obras de Kardec o que muitas
igrejas fazem com a bíblia: apoderar-se de suas letras como exclusivos
intérpretes do que chamam a palavra de deus, numa explícita postura dogmática
que toma para si a autoridade de ser a ‘única boca’ que Deus se utiliza na
Terra para falar à humanidade.
As
políticas que visam o progresso moral e intelectual devem ser obrigações de
cada tarefeiro espírita. Kardec chega a comentar, na questão 783 que o “progresso sendo uma condição da natureza
humana ninguém tem o poder de se opor a ele. É uma força viva que as más leis
podem retardar, mas não asfixiar.” (grifos meus)(4). Ora, como
derrubar essas “leis más” sem mudar nossas legislações - para que estas se
aproximem cada vez mais das divinas - e sem praticarmos o exercício da
persuasão e da educação moral de terceiros?
O
mundo de regeneração não virá como passe de mágica, nem será posto pelos espíritos
nobres. A tal falada era da regeneração só virá depois que a fome não solapar
mais as vidas, quando a pena de morte não fizer mais parte das legislações
humanas, quando a xenofobia não for mais entrave à união dos povos, quando o
machismo não mais existir e nem promover a violência contra a mulher, quando os
empregadores não impuserem excessivos e humilhantes trabalhos aos seus
inferiores. Esta Era Nova só será realizável a partir da mudança feita por cada
um de nós, individualmente, influenciando os que estão ao nosso lado, trabalhando
para acabar com tais mazelas e lutando o bom combate para que ninguém mais seja
promotor desse estado inferior de coisas.
Em
outro texto, na questão 781(a), Kardec recebe dos espíritos a resposta taxativa
sobre nossas influências nas leis humanas: “(...) Quando
estas [leis humanas] se tornam incompatíveis com ele [progresso], despedaça-as
juntamente com os que se esforcem por mantê-las” (5). Em seguida, na
questão 783, se verifica: “As revoluções morais, como as revoluções sociais, se infiltram nas ideias pouco a pouco;
dormitam durante séculos; depois, irrompem subitamente e produzem o desmoronamento do carunchoso edifício do
passado.” (6) (grifos meus). Portanto, está clara como o Sol a
constatação dos Espíritos nobres sobre as lutas sociais que, de tempos em
tempos, animam as civilizações para uma ordem melhor das coisas. Ficou evidente
a responsabilidade de cada indivíduo em fazer com que a sua realidade e a do
seu próximo sejam melhores. Aliás, não foi outra a luta dos grandes mártires de
nossa história, quando preferiram o cadafalso do que negar aquilo que
acreditavam. As lutas pelas liberdades individuais e políticas derramaram muito
sangue e não foram ações mágicas, de cima pra baixo, mas revoluções que “desmoronaram o carunchoso edifício do
passado”.
Por
fim, acreditamos que o cristão e, principalmente o espírita, deve se envolver
com os movimentos de transformação da sociedade. Temas como LGBTfobia,
extermínio da juventude negra, violência contra a mulher, indígenas, sem terra,
sem teto, refugiados, etc., são pautas de nossos debates com o intuito de
buscar na doutrina de Kardec e em Jesus, referências que possam fortalecer
nossos discursos para minimizar o preconceito e toda e qualquer forma de
discriminação dessas minorias sociais. Para nós, o Jesus histórico foi um dos
primeiros e mais inspiradores defensores dos direitos humanos e morreu por
isso.
Jesus
nasceu na ‘periferia’ (socialmente falando), viveu para a ‘periferia’ (seus
contatos mais significativos eram com os despossuídos) e morreu na ‘periferia’
(a crucificação era a pena dada aos mais infames). Jesus, como disse o Frei
Beto, não morreu de hepatite na cama nem de desastre de camelo numa esquina de
Jerusalém. Morreu, como tantos presos políticos, da América Latina das décadas
de 1960 a 1980: foi preso, torturado, julgado por dois poderes políticos e
condenado a ser assassinado na cruz a pedido dos chefes religiosos de sua
época, sob a acusação de ser desordeiro, imoral e subversivo da ordem
estabelecida. Portanto, a pergunta para nós, do Ágora é: que fé cristã é essa
que não questiona a desordem? Porque não há ninguém que não se envolva em
política. Há quem, ingenuamente, se julgue neutro, isento ou alheio a ela e por
isso se enquadra no perfil do analfabeto político declamado por Brecht.
Inspirado
pelo iluminado pastor Henrique Vieira, afirmo que Jesus optou pelos oprimidos e
renegados, pelos miseráveis, leprosos e prostitutas. Solidarizou-se com o
refugo da sociedade em que viveu e contestou a ordem que os excluía. Jesus
democratizou e ampliou a experiência de Deus e desmanchou a crença de que o
culto à divindade só seria verdadeiro se ocorresse nos recintos ou sob a tutela
da religião tradicional.
Jesus,
no nosso entender, fez as mulheres serem protagonistas do seu movimento de
renovação do planeta; denunciou o acúmulo de riquezas e exaltou os pobres. Na
sociedade vazia de moral, andou com gente de má fama e denunciou a hipocrisia
de líderes religiosos; naquela sociedade baseada na vingança do ‘olho por olho e
do dente por dente’, ensinou o perdão infinito, por isso discordamos do
discurso de ódio de que o “bandido bom é o bandido morto”. Jesus, no nosso
entender, foi o grande defensor das minorias sociais do seu tempo, foi O
POLÍTICO DO BEM.
É
essa a nossa proposta e não temos nenhuma intenção de "empurrar goela
abaixo" das casas espíritas, nossas ideias. Somos trabalhadores -
ainda imperfeitos - de Jesus e de Kardec.
REFERÊNCIAS:
(1)
KARDEC, Allan. Revista Espírita. Trad. Salvador Gentile. 1ª ed. São Paulo :
IDE, 1994. 37 p.
(2)
CAMPOS, Flávio de. Oficina da história : vol. 2. 2ª ed. São Paulo : LEYA, 2016.
165.
(3)
http://www.infosbc.org.br/site/artigos/2627-capitulo-lvi-napoleao-iii-e-a-igreja (acessado em
07/06/2020)
(4)
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. José Herculano Píres. 64ª ed. São
Paulo : LAKE, 2004. 262 p.
(5) KARDEC,
Allan. O livro dos espíritos. Trad. José Herculano Píres. 64ª ed. São Paulo :
LAKE, 2004. 262 p.
(6)
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. José Herculano Píres. 64ª ed. São
Paulo : LAKE, 2004. 262 p.
Uma questão está acalorando as
conversas e até as prédicas nas casas espíritas do Brasil nos últimos anos: a
política nacional. Em tempos de polarização desse cenário, o movimento não deixou de ser influenciado
por esse momento que, vez ou outra, eleva ao ringue das discussões adeptos da
causa kardeciana. Por que será que o exercício da política é ainda visto por
muitos como algo malsão? O que tem de errado na política para que esta seja
taxada como algo pernicioso no meio? Seria o espírita um indivíduo superior na
escala dos encarnados e que por isso, inalcançável pelos problemas sociais para
não ter que se (pre)ocupar com eles? Será que o adepto da doutrina dos Imortais
não pode abrir a guarda no trato de tais assuntos sem se enlamear com sua
suposta “sujeira”? Ou o espírita é um ser de dupla vida social: uma pura,
dentro da casa religiosa e outra, devassa, fora dela?:
Desejaria
fugir do clichê de tentar usar o léxico para definir o verbete, mas não posso
me furtar de expor o que, historicamente, entendo por política: Na Grécia
Antiga a palavra referia-se às questões relativas à vida da cidade. A politikós não era uma atividade
qualquer: dela dependia a organização cotidiana e o futuro da polis. O demos (povo) de cada cidade-Estado tinha que se interessar pelos
problemas da comunidade, ou seja o indivíduo não seria um cidadão se não se
interessasse pela política e não a praticasse. Tal concepção foi divulgada na
obra Política de Aristóteles, o
primeiro tratado sobre a natureza do governo, suas configurações e funções. A
partir das revoluções liberais do século XVIII, a palavra passou a ser
empregada para designar as atividades relativas ao controle do Estado, ganhando
os contornos que temos atualmente.
Mas
o verbo politicar não fica apenas
restrito a essas definições técnicas e históricas e, muito menos, pode ficar dissociado
da sua acepção comum. Por exemplo, quando Aristóteles afirma que ”o homem é um ser
político por natureza”, ele quer dizer que naturalmente temos a necessidade de
viver em sociedade e que precisamos desse convívio para estabelecermos
deliberações. Assim, nessa perspectiva não se deve deplorar a atividade
política, classificando-a como algo pernicioso.
Opinar,
concordar, discordar, apresentar propostas, contrapropostas e até ficar isento,
é fazer política. Mesmo quando alguém diz não gostar dela, está politicando (no
sentido negativo), já que se omite e abre espaço para o outro sujeito que é
pernicioso para a coletividade. Digo que é até uma posição
confortável, pra não dizer fingida e, por consequência, hipócrita, um vez que
somos políticos em todas as situações da vida, dentro e fora da casa espírita.
Por que? Respondo: quem, na vida em sociedade, não opina sobre os
preços das coisas, as qualidades dos serviços públicos, sobre os problemas na
saúde, na educação e na segurança públicas? Quem não expõe sua opinião em
questões polêmicas como o aborto, a eutanásia, sobre a pena de morte? Quando
levamos (e levamos!) estes assuntos para a casa espírita, não tratamo-los de
outra forma senão pela perspectiva do convencimento dos assistentes de que não
se deve afrontar as leis divinas, de que devemos ser contra os projetos que
relativizam a Vida tramitados nas esferas dos Poderes políticos e isso, não é
outra coisa, senão politicar, ou seja, persuadir o outro sobre aquilo que achamos
ser o correto. O mesmo acontece quando nos reunimos em assembleias para
deliberar sobre decisões estatutárias ou regimentais na intenção de discutir,
negociar ou convencer os associados sobre nossos projetos ou ainda quando
deliberamos nas escolhas das chapas das diretorias que concorrem às direções
das casas espíritas. Portanto, há várias esferas de atuação na
política: as públicas, as de Estado, as filosóficas, as ideológicas, as
político-partidárias, como também há as que exigem dos espíritas e dos cidadãos
envolvimento, quando elas implicam no exercício da cidadania. O problema é que
muitos acham que tal exercício é partidário. Eis o erro! Por que é impossível,
por exemplo, não discutir política na casa espírita quando falamos da fome, do
racismo, da xenofobia, da violência domestica, do aborto etc., pois tais
problemas não estão limitados à bolha de nossas atividades espirituais, são
problemas de nossa geração! E estes, além de exigirem preces e vibrações, necessariamente,
exigem ações de nossa parte, como fez a própria Federação Espírita Brasileira
ao assinar petições com objetivo de pressionar os parlamentares para que estes
rejeitem qualquer projeto que vá de encontro aos fundamentos de defesa da Vida
que o Espiritismo endossa.
A política partidária, aquela que tem o papel de convencer
terceiros a aderirem a projetos eleitorais não deve ser, claro, pautada nas
casas espíritas. Não se deve fazer de palanque as tribunas do nosso movimento espiritual.
Porque isso personifica e nos separa. Nesse sentido Kardec foi taxativo. E
talvez seja esse o argumento levantado por muitos, de que política não
deve fazer parte das reuniões espíritas. Baseiam-se no seguinte apontamento do
codificador:
“ (...)Também não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai
cuidadosamente de vossas reuniões tudo quanto disser respeito à política e às
questões irritantes; nesse caso, as discussões não levarão a nada e apenas
suscitarão embaraços, enquanto ninguém questionará a moral, quando ela for boa
(...)” (1)
Mas este
é um exemplo de que não devemos fazer leituras apressadas de Kardec. De qual
política o mestre de Lion estava falando? Por que o codificador teve tal
cautela? O que o preocupava? Os desavisados esquecem que o cenário político da
época em que esse texto foi escrito, era perigosamente nocivo às liberdades
individuais, sob pena de prisão, deportação ou pena de morte. Luiz Bonaparte
(1848-1870) deu um Golpe de Estado em 1851 e proclamou-se imperador (Napoleão
III), governando até 1870. Seu governo foi marcado pela “forte repressão ao
movimento operário, implantou censura em todos os níveis, proibiu as greves e
as organizações sindicais, perseguiu adversários e manteve a jornada de doze
horas diárias de trabalho.” (2). Eis aqui um motivo da recomendação
de Kardec aos irmãos de Lion: O Mestre não queria – e com razão – expor a
Sociedade Espírita e muito menos os seus membros, às ameaças da repressão e aos
embaraços de prisões políticas. Para um movimento nascente, que estava ainda
por se estabelecer, não seria de bom tom peitar o regime autoritário do
sobrinho de Napoleão Bonaparte, autoproclamado “Protetor da Igreja Latina” (3).
Permitir discussões na Sociedade que
afrontasse a política napoleônica aliada da Igreja não seria adequado naquela
ocasião. Por isso, tomar a precaução de Kardec como justificativa de
recomendação para não tratar de assuntos “políticos” na casa espírita é fazer
interpretação superficial do codificador e mais ainda do conceito estudado por
Aristóteles. Nesse sentido e apurando melhor o
contexto de sua época, não podemos fazer das obras de Kardec o que muitas
igrejas fazem com a bíblia: apoderar-se de suas letras como exclusivos
intérpretes do que chamam a palavra de deus, numa explícita postura dogmática
que toma para si a autoridade de ser a ‘única boca’ que Deus se utiliza na
Terra para falar à humanidade.
As
políticas que visam o progresso moral e intelectual devem ser obrigações de
cada tarefeiro espírita. Kardec chega a comentar, na questão 783 que o “progresso sendo uma condição da natureza
humana ninguém tem o poder de se opor a ele. É uma força viva que as más leis
podem retardar, mas não asfixiar.” (grifos meus)(4). Ora, como
derrubar essas “leis más” sem mudar nossas legislações - para que estas se
aproximem cada vez mais das divinas - e sem praticarmos o exercício da
persuasão e da educação moral de terceiros?
O
mundo de regeneração não virá como passe de mágica, nem será posto pelos espíritos
nobres. A tal falada era da regeneração só virá depois que a fome não solapar
mais as vidas, quando a pena de morte não fizer mais parte das legislações
humanas, quando a xenofobia não for mais entrave à união dos povos, quando o
machismo não mais existir e nem promover a violência contra a mulher, quando os
empregadores não impuserem excessivos e humilhantes trabalhos aos seus
inferiores. Esta Era Nova só será realizável a partir da mudança feita por cada
um de nós, individualmente, influenciando os que estão ao nosso lado, trabalhando
para acabar com tais mazelas e lutando o bom combate para que ninguém mais seja
promotor desse estado inferior de coisas.
Em
outro texto, na questão 781(a), Kardec recebe dos espíritos a resposta taxativa
sobre nossas influências nas leis humanas: “(...) Quando
estas [leis humanas] se tornam incompatíveis com ele [progresso], despedaça-as
juntamente com os que se esforcem por mantê-las” (5). Em seguida, na
questão 783, se verifica: “As revoluções morais, como as revoluções sociais, se infiltram nas ideias pouco a pouco;
dormitam durante séculos; depois, irrompem subitamente e produzem o desmoronamento do carunchoso edifício do
passado.” (6) (grifos meus). Portanto, está clara como o Sol a
constatação dos Espíritos nobres sobre as lutas sociais que, de tempos em
tempos, animam as civilizações para uma ordem melhor das coisas. Ficou evidente
a responsabilidade de cada indivíduo em fazer com que a sua realidade e a do
seu próximo sejam melhores. Aliás, não foi outra a luta dos grandes mártires de
nossa história, quando preferiram o cadafalso do que negar aquilo que
acreditavam. As lutas pelas liberdades individuais e políticas derramaram muito
sangue e não foram ações mágicas, de cima pra baixo, mas revoluções que “desmoronaram o carunchoso edifício do
passado”.
Por
fim, acreditamos que o cristão e, principalmente o espírita, deve se envolver
com os movimentos de transformação da sociedade. Temas como LGBTfobia,
extermínio da juventude negra, violência contra a mulher, indígenas, sem terra,
sem teto, refugiados, etc., são pautas de nossos debates com o intuito de
buscar na doutrina de Kardec e em Jesus, referências que possam fortalecer
nossos discursos para minimizar o preconceito e toda e qualquer forma de
discriminação dessas minorias sociais. Para nós, o Jesus histórico foi um dos
primeiros e mais inspiradores defensores dos direitos humanos e morreu por
isso.
Jesus
nasceu na ‘periferia’ (socialmente falando), viveu para a ‘periferia’ (seus
contatos mais significativos eram com os despossuídos) e morreu na ‘periferia’
(a crucificação era a pena dada aos mais infames). Jesus, como disse o Frei
Beto, não morreu de hepatite na cama nem de desastre de camelo numa esquina de
Jerusalém. Morreu, como tantos presos políticos, da América Latina das décadas
de 1960 a 1980: foi preso, torturado, julgado por dois poderes políticos e
condenado a ser assassinado na cruz a pedido dos chefes religiosos de sua
época, sob a acusação de ser desordeiro, imoral e subversivo da ordem
estabelecida. Portanto, a pergunta para nós, do Ágora é: que fé cristã é essa
que não questiona a desordem? Porque não há ninguém que não se envolva em
política. Há quem, ingenuamente, se julgue neutro, isento ou alheio a ela e por
isso se enquadra no perfil do analfabeto político declamado por Brecht.
Inspirado
pelo iluminado pastor Henrique Vieira, afirmo que Jesus optou pelos oprimidos e
renegados, pelos miseráveis, leprosos e prostitutas. Solidarizou-se com o
refugo da sociedade em que viveu e contestou a ordem que os excluía. Jesus
democratizou e ampliou a experiência de Deus e desmanchou a crença de que o
culto à divindade só seria verdadeiro se ocorresse nos recintos ou sob a tutela
da religião tradicional.
Jesus,
no nosso entender, fez as mulheres serem protagonistas do seu movimento de
renovação do planeta; denunciou o acúmulo de riquezas e exaltou os pobres. Na
sociedade vazia de moral, andou com gente de má fama e denunciou a hipocrisia
de líderes religiosos; naquela sociedade baseada na vingança do ‘olho por olho e
do dente por dente’, ensinou o perdão infinito, por isso discordamos do
discurso de ódio de que o “bandido bom é o bandido morto”. Jesus, no nosso
entender, foi o grande defensor das minorias sociais do seu tempo, foi O
POLÍTICO DO BEM.
É
essa a nossa proposta e não temos nenhuma intenção de "empurrar goela
abaixo" das casas espíritas, nossas ideias. Somos trabalhadores -
ainda imperfeitos - de Jesus e de Kardec.
REFERÊNCIAS:
(1)
KARDEC, Allan. Revista Espírita. Trad. Salvador Gentile. 1ª ed. São Paulo :
IDE, 1994. 37 p.
(2)
CAMPOS, Flávio de. Oficina da história : vol. 2. 2ª ed. São Paulo : LEYA, 2016.
165.
(3)
http://www.infosbc.org.br/site/artigos/2627-capitulo-lvi-napoleao-iii-e-a-igreja (acessado em
07/06/2020)
(4)
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. José Herculano Píres. 64ª ed. São
Paulo : LAKE, 2004. 262 p.
(5) KARDEC,
Allan. O livro dos espíritos. Trad. José Herculano Píres. 64ª ed. São Paulo :
LAKE, 2004. 262 p.
(6)
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. José Herculano Píres. 64ª ed. São
Paulo : LAKE, 2004. 262 p.
Texto claro, preciso e muito esclarecedor sobre este assunto. Parabéns ao grupo Ágora pela excelente reflexão.
ResponderExcluirObrigado
ExcluirObrigado
ExcluirExcelente!!!🧡
ResponderExcluirCláudia Brandão
ExcluirParabéns pelo artigo! Texto muito bem escrito e objetivo. Que a espiritualidade continue a iluminá-los! ����
ResponderExcluirObrigado
ExcluirExcelente texto. Um alento para as nossas almas.
ResponderExcluirFiz a leitura atenta do texto! Achei muito interessante e esclarecedor...penso que não devemos cruzar os braços, afinal de contas, se estamos inseridos na sociedade, nada mais sensato que usar a nossa força e a nossa voz para a promoção de um mundo melhor!!🧡 Vamos juntxs!!🙋🏽♀️
Cláudia Brandão
Obrigado
ExcluirParabéns! Texto sensacional. A grande contribuição do Espiritismo para a Política está na terceira parte de O LIVRO DOS ESPÍRITOS, denominada AS LEIS MORAIS. Só a reeducação da sociedade poderá conduzir a coletividade a um nivel aceitável de vida.
ResponderExcluirPaz
ExcluirExcelente reflexão. Texto historicamente bem colocado e sensível à conjuntura, notadamente a existente no âmbito do movimento Espírita, onde Kardec está a um passo de ser substituído por francisquismos e divaldismos.
ResponderExcluirObrigado
ExcluirParabéns Márcio oelo excelente texto. É necessário o conhemento para podermos it as discussões.
ResponderExcluirObrigado
ExcluirConteúdos importantíssimos trazidos pelo artigo!
ResponderExcluirParabéns! Vou guardar com carinho para refletir e tentar levar ao máximo de confrades!
Obrigado
Excluir"Parabéns,Márcio, pelo excelente texto. Agradecemos, também, ao Ágora Espírita pela aportunidade deste conteúdo, que já é um Perfil marcante de reflexões aos nossos sentimentos morais e espirituais.
ResponderExcluirPaz em Cristo."
Gercivaldo Siqueira
Obrigado
ExcluirPerfeito. Foi na ferida. Nao sabia da coincidencia de Napoleao III. Prudencia antes de tudo. Hoje estamos `as portas (se permitirmos) de um governo semelhante. O Espirita nao deve se abster da politica, nem fazer proselitismo politico dentro da casa e de eventos espiritas (salvo os que a politica seja o objeto). Acho de bom alvitre, existir sim, uma pagina onde os confrades que sejam candidatos possam expor suas propostas, inclusive enquanto espiritas. Neutro ficou Pilatos e essa atitude prejudicou, tanto sua encarnacao, quanto seu processo evolutivo. Pensemos nisso.
ResponderExcluirObrigado
ExcluirExcelentes reflexões! Parabéns! Não dá para ficarmos alienados/as!
ResponderExcluirOnrigado
ExcluirExcelente texto. Além de trazer dados históricos, nos leva a pensar sobre o real papel do espiritismo no mundo, sem hierarquia e sem farisaísmos.
ResponderExcluirAbraços fraternos, Gustavo
ExcluirMarcio, um texto instigante, que nos leva a mergulhar nas profundezas de nossa sociedade espirita hipócrita. Um movimento espírita, fascinado pela doutrinação do Amém. É neste toada, que somos levados a refletir sobre a doutrina libertadora dos espíritos, tendo como maestro, Allan Kardec. Doutrina que nos revela a lei da reencarnação, a imortalidade, e o compromisso com o social. Sem esta preocupação, viveremos a margem da sociedade, satisfeito em fazer a "caridade" do pão, da moeda no semáforo, na doação da roupa que não nos serve mais. Com o entendimento amplo desta doutrina progressista, vamos exigir o respeito as minorias, a não aceitação de conversas chulas e piadas de todos os gêneros, que levam o ser humano a ser menosprezados e, motivo de chacotas por uma minoria, sem o entendimento da doutrina Kardeciana. Parabéns meu amigo!
ResponderExcluirBeijos, meu amigo
ExcluirMuito esclarecedor o texto!!!
ResponderExcluirSem contextualizar, a fala de Kardec parece proibir qualquer debate político dentro das casas espíritas. O recorte que serve para "barrar" qualquer manifestação, cai por terra.
Obrigado ÁGORA ESPÍRITA!!
Não há como ser espírita e ignorar a dimensão do que é fazer política. Fazemos política constantemente. As casas espíritas têm eleição para composição de diretoria, têm reuniões administrativas para deliberarem sobre assuntos pertinentes ao bom funcionamento , as federativas estão em constante diálogos com suas filiadas...como não discutirmos assuntos de nossa época em nossas casas? Como ignorar as desigualdades sociais e não denunciá-las? Parece que parte significativa do movimento espírita aguarda uma mudança mágica de nossa sociedade, se esquecem que somos reencarnacionistas e por isso, certamente apertamos o nó, que só a nós compete desatar, e o momento é agora.
ResponderExcluirPARABÉNS PELO TEXTO!!
Gostei do Texto. Parabéns ao Ágora por dar espaço a estes debates e questionamentos que são importantes como indivíduos encarnados nestes tempos. - Pedro Henrique
ResponderExcluirExcelente texto!!!Parabéns Márcio pela forma como conduziu a forma de mostrar a maneira correta de fazer sem necessariamente apontar,condenar(como li nos comentários) quem ainda não entendeu a proposta de Jesus e Kardec,que serve para qualquer cristão. Muito claro,esclarecendo o que é Política que muitos só ligam à questão partidária e se põem a analisar neste contexto.Uma aula amigo!!!! Compartilharem com certeza!!!!!
ResponderExcluirExcelente. Muitos que se denominam e políticos, defendem posições conservadoras.
ResponderExcluirExcelente texto, Márcio! Parabéns pela construção das ideias! Quem vejam aqueles que tenham olhos para ver, pois enquanto ainda tivermos mazelas sociais, a "evolução" espiritual será uma quimera mística apenas.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirTexto consubstanciadamente Espírita, que consolida doutrinariamente não só ao ÀGORA ESPÍRITA, mas também dár voz a todo o movimento ESPÍRITA PROGRESSISTA, que é o Espiritismo Kardeciano.
ResponderExcluirParabéns pelo excelente texto! Muito claro e objetivo! A questão 783 é fundamental para mantermos o trabalho revolucionário em andamento. Como vi no documentário "Em busca de Kardec", o Espiritismo é o socialismo pela reencarnação
ResponderExcluirObg pelo esclarecimento.
ResponderExcluirExcelente!!!
ResponderExcluirhttps://youtu.be/QJW9QHr7dJM
ResponderExcluirArtigos como este nos enche de alegria, amplia a nossa perspectiva com relação ao entendimento de política, como a arte do bem viver. Como as discussões que tem como objetivo provocar e produzir igualdade e justiça social. Não haverá mundo de regeneração com fome, com pessoas morrendo porque são negras, homossexuais ou mulheres. E a política, as sociais e as públicas, tem como objetivo cuidar das pessoas, promover políticas de acolhimento, e os Espíritas não devem estar alheios a esta realidade. por não serem apêndices da sociedade. Gratidão Márcio Alexandre, avante Ágora Espírita, que estejamos juntos...
ResponderExcluirO Espiritismo é Ciência, Filosofia e Moral. E a política no meu entender faz interseção com esses pilares do Espiritismo.
ResponderExcluirLacrou geral. O que dizer? Nada. Só pensar... estudar... vivenciar. Obrigada.
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