Espiritismo,
política e atualidades
Como vem sendo salientado, cada vez mais e por
mais estudiosos sérios da doutrina, o Espiritismo trata de assuntos políticos,
sociais. Traremos aqui alguns assuntos políticos da atualidade e a posição da
doutrina a seu respeito. Assim, veremos um pouco como a doutrina, a política e
as atualidades estão intimamente relacionadas. Daí a importância que vemos em
citar passagens centrais dos textos. É de especial importância reconhecer como
a doutrina espírita se posiciona sobre os diversos assuntos políticos que tocam
à nossa vida, até para que, considerando-a, tomemos nossa parte na necessária
transformação social da humanidade.
Deparamo-nos hoje com o grave problema
da desigualdade social, que engendra
uma multidão de injustiças no mundo, sendo raiz de preconceitos, opressão,
abusos, violência etc. Ora, na visão da direita
política, a desigualdade social é natural,
razão pela qual procura, quando não agravá-la (neoliberalismo), somente administrá-la
(liberalismo social). Para a esquerda,
por outro lado, a desigualdade não é
natural, por isso, propõe mitigá-la (socialismo) e, ao cabo do processo
social histórico progressivo, extingui-la (comunismo). Sobre isso, diz nossa
doutrina:
806. A desigualdade das
condições sociais é uma lei da natureza? “Não; ela é a obra do homem e não a de Deus.”
—
Essa desigualdade desaparecerá um dia? “De eterno só há as leis de Deus. Não a
vês se apagar pouco a pouco cada dia? Essa
desigualdade desaparecerá com a predominância do orgulho e do egoísmo; não
restará senão a desigualdade do mérito. (...) Não há senão o Espírito que é
mais ou menos puro, e isso não depende da posição social.” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 806. Destaques
meus, assim nas passagens seguintes.)
Lê-se aí a palavra “mérito”. Esse
“mérito” de que fala a citação nada tem a ver com a “meritocracia” da posse,
em voga hoje no meio capitalista. Quando a doutrina espírita fala em mérito,
entende-o apenas como mérito moral, que posiciona o Espírito na escala espírita
(Livro dos Espíritos, nº 100), e não
um “mérito de esforço por enriquecimento” em vista de se elevar na escala
social do mundo. Com efeito, o apelo ao “mérito” para justificar o
enriquecimento não passa de faceta do
orgulho:
Crer-se-ia, ao ver a atividade que desdobrais,
que a ela se prende uma questão do mais alto interesse para a humanidade, enquanto que se trata, quase sempre, apenas
de vos pôr em condições de satisfazer necessidades exageradas, a vaidade,
ou de vos entregar aos excessos. Quantas
penas, cuidados, tormentos se dá, quantas noites sem sono, para aumentar uma
fortuna frequentemente mais que suficiente! Por cúmulo de cegueira, não é raro ver aqueles que um amor
imoderado à fortuna e aos gozos que ela proporciona submete a um trabalho
penoso prevalecerem-se de uma existência
dita de sacrifício e de mérito, como se trabalhassem para os outros e não para
si mesmos. Insensatos! Credes,
pois, realmente que vos serão levados em conta os cuidados e esforços dos quais o egoísmo, a cupidez ou o orgulho são
o móvel... (Allan Kardec, Evangelho
segundo o Espiritismo, cap. XVI, nº 12.)
Em diversos manuais de Economia atuais,
encontra-se a “escassez” de recursos
naturais figurando como a principal fonte da concorrência econômica e, por
conseguinte, da desigualdade social[1]. O Espiritismo, desde seu
surgimento, enfatiza que esse mal da escassez não é um problema de recursos,
mas de desregramento humano, ou seja,
de uma organização social viciada:
Por que a Terra não
produz sempre bastante para fornecer o necessário ao homem? “É que o homem a negligencia, o ingrato! Ela
é, no entanto, uma excelente mãe. Frequentemente também, ele acusa a natureza
do que é o feito de sua imperícia ou de sua imprevidência. A Terra produziria sempre o necessário, se o homem soubesse com ele se
contentar. Se ela não basta a todas as necessidades, é que o homem emprega no supérfluo o que poderia
ser dado ao necessário. (...) Em verdade vos digo, não é a natureza que é
imprevidente, é o homem que não sabe se
regrar.” (Allan Kardec, Livro
dos Espíritos, nº 705.)
Para
todo mundo há lugar ao sol, mas é com a condição de aí ocupar o seu,
e não o dos outros. A natureza não poderia ser responsável pelos vícios da organização social e pelas
consequências da ambição e do amor-próprio. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 707.)
A acumulação
de riquezas, característica da sociedade capitalista, já era contraditada
por Jesus: “Não ajunteis tesouros na
terra”, dizia ele (Mateus 6:19). A doutrina espírita, considerando ainda que
essa acumulação gera o supérfluo de um lado e necessidades do outro, trata-a
com bastante rigor:
Que pensar daqueles que
açambarcam os bens da Terra para se proporcionar o supérfluo em
prejuízo daqueles a quem falta o necessário? “Desprezam a lei de Deus e responderão pelas privações que tiverem feito
suportar.” ... Os que vivem à custa
das privações dos outros exploram os benefícios da civilização em seu
proveito; não têm da civilização senão
o verniz. (Allan Kardec, Livro dos
Espíritos, nº 717 e nota.)
A exploração
e a concorrência, que fazem o homem rivalizar em vez de se solidarizar, no
mundo egoísta do capitalismo, vêm denunciadas com precisão na doutrina:
Com o egoísmo, o interesse pessoal passa
antes de tudo, cada um puxa para si, cada
um vê em seu semelhante apenas um antagonista, um rival que pode entrar em
concorrência conosco, que pode nos
explorar ou que nós podemos explorar;
é de quem passar à frente de seu vizinho: a vitória é do mais esperto, e a sociedade, coisa triste de dizer,
consagra frequentemente essa vitória, o que faz com que ela se divida em duas classes principais: os exploradores e
os explorados. Disso resulta um antagonismo
perpétuo que faz da vida um
tormento, um verdadeiro inferno. (Allan Kardec, Viagem espírita em 1862, Discursos, nº III, § 2.)
Léon Denis não deixa de se expressar sobre o
tema, mostrando que a mudança da
sociedade – pautada nas verdadeiras leis de Deus – precisa ser no sentido
de extinguir essa rivalidade, a exploração, e implantar a justiça na repartição dos bens:
A
verdade sendo conhecida, compreender-se-ia que os interesses de uns são os
interesses de todos, e que ninguém
deve ser a presa dos outros. Daí, a
justiça na repartição e, com a
justiça, em vez de rivalidades odiosas,
uma mútua confiança, a estima e a afeição recíprocas, numa palavra, a
realização da lei de fraternidade, transformada na única regra entre os homens.
Tal é o remédio que o ensino dos
Espíritos traz aos males da sociedade. (Léon Denis, Depois da morte, cap. LV, “Questões sociais”.)
Sim, os Espíritos trazem, como sabemos,
remédios não só aos males dos indivíduos, mas aos males da sociedade! Sem dúvida, os direitos
trabalhistas também são artigos do código natural-divino:
Que pensar dos que abusam
de sua autoridade para impor aos seus
inferiores um excesso de trabalho? “É uma das piores ações. Todo homem que tem o poder de comandar é responsável
pelo excesso de trabalho que impõe aos seus inferiores[2], pois transgride a lei de Deus.” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 684.)
Alguns
que têm uma posição social mais ou menos elevada (por nascimento ou
enriquecimento) costumam pensar que os pobres o são “por não trabalharem” como
eles próprios, ou “por falta de esforço”. Mas Kardec, entrando na Economia
Política, faz ver o erro desse pensamento, pois é preciso considerar o problema
da estrutura socioeconômica, a qual
não permite lugar de trabalho a todos:
Não
é tudo dizer ao homem que ele deve trabalhar, é preciso ainda que
aquele que espera sua existência de seu labor encontre de que se ocupar, e é o que não tem sempre lugar. Quando a
suspensão do trabalho se generaliza, ela toma as proporções de um flagelo
como a miséria. A Ciência Econômica busca o remédio no equilíbrio entre a produção
e o consumo; mas esse equilíbrio, a
supor que seja possível, terá sempre intermitências, e durante esses
intervalos o trabalhador não deve, por
isso, viver menos. (Allan Kardec, Livro
dos Espíritos, nº 685, nota.)
Tendo isso em conta, enquanto
a sociedade não mudar em direção ao socialismo, avançando na justiça social, as
reivindicações trabalhistas são consideradas legítimas, como lemos nos filósofos
espíritas:
Subscrevemos de bom grado as reivindicações legítimas
da classe operária reclamando para o trabalhador sua parte de influência
e de bem-estar, seu direito aos
benefícios industriais e seu lugar
ao sol. (Léon Denis, Socialismo e
espiritismo, cap. I.)
O
direito de greve é legítimo, é a arma
do trabalhador contra as pretensões exageradas dos capitalistas, dos chefes
de indústria. (Idem, cap. VIII.)
O socialismo, pois, sob sua face
econômica e com as regras morais que estabelece para dignificar e elevar a classe trabalhadora, não pode deixar de se
orientar nos mesmos princípios do
Espiritismo. (Cosme Mariño, Conceito
espírita do socialismo, 1ª conferência.)
Prosseguindo em assuntos da atualidade, sabe-se
que há quem defenda, geralmente entre os conservadores, propostas políticas
desumanas, como o armamento da população e o militarismo, a pena de morte e,
coisa lamentável, até a tortura. Um espírita sério poderia aderir a qualquer
dessas propostas? Temos o tratamento direto dessas questões na doutrina.
Sobre o porte
de armas e o militarismo, vemos o
quanto são propostas equivocadas e, pelo progresso, devem desaparecer:
“Que responsabilidade
assumem aqueles que recusam a instrução às classes pobres da sociedade! Eles creem que com guardas [gendarmes] e a polícia, podem prevenir os crimes. Como estão errados!” (Allan
Kardec, O Céu e o Inferno, pt. II,
cap. IV, “Jacques Latour”, nº II.)
Um sinal característico
dos costumes do tempo e dos povos está no uso
do porte habitual, ostensivo ou escondido, de armas ofensivas e defensivas; a abolição desse uso testemunha o abrandamento dos costumes. (...) Hoje, a morte de um homem é
acontecimento que emociona: outrora, não se lhe dava atenção. O Espiritismo levará embora estes últimos
vestígios da barbárie, inculcando nos homens o espírito de caridade e de
fraternidade. (Allan Kardec, Evangelho
segundo o Espiritismo, cap. XII, nº 16.)
Para que vossa Terra
evolua e o homem possa subir sobre um outro planeta, será preciso renunciar às ideias militaristas. Uma nova era
psíquica se prepara para vós. (...) Deveis vos inspirar em instituições do porvir, e não nas do passado. (Léon Denis, Socialismo e espiritismo, cap. VII.)
O mesmo se pode dizer da pena de morte (cujos defensores bradavam um lema que até recentemente
estava na moda: “bandido bom é bandido morto”). Ela é claramente combatida pelo
Espiritismo:
A pena de morte desaparecerá
incontestavelmente, e sua supressão marcará um progresso na humanidade.
Quando os homens forem mais esclarecidos, a pena de morte será completamente abolida sobre a Terra; os
homens não terão mais necessidade de ser julgados pelos homens. (...) Há outros
meios de se preservar do perigo, que não
matá-lo. É preciso, aliás, abrir ao criminoso a porta do arrependimento e não fechá-la a ele. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 760, 761.)
Finalizando nosso texto, mencionaremos a tortura – decerto, seria ocioso falar, se
não houvesse alguns estultos defensores dela na atualidade. A tortura de Jesus,
dos profetas e dos apóstolos, bem como dos filósofos e cientistas nos períodos
de trevas, são mais que suficientes para fazer repeli-la; aliás, só o que ela
significa já deveria causar repulsa a qualquer “homem de bem”, pela crueldade. Fica
evidente que seria um absurdo o espírita apoiar ou aderir a quaisquer defensores
dessa prática atroz:
Teu
Espírito não se revolta lendo o relato (...) das torturas que se fazia sofrer o condenado, e mesmo o acusado
para lhe arrancar, pelo excesso de sofrimentos, a confissão de um crime que
frequentemente ele não tinha cometido? (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 763.)
Destruís mesmo a ideia
do inferno tornando-a ridícula e
inadmissível às vossas crenças, como
o é aos vossos corações o hediondo espetáculo dos carrascos, das fogueiras
e das torturas da Idade Média! O quê,
então! É quando a era das represálias
cegas está para sempre banida das legislações humanas que esperais mantê-la
no ideal? (Allan Kardec, Livro dos
Espíritos, nº 1009, comunicação de “Paulo, apóstolo”.)
Ajudai-vos, portanto,
sempre em vossas provas respectivas, e não
vos olheis jamais como instrumentos de tortura; esse pensamento deve revoltar todo homem de coração, todo espírita
sobretudo; pois o espírita, melhor que todo outro, deve compreender a
extensão infinita da bondade de Deus. (Allan Kardec, Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, nº 27.)
Inumeráveis outros assuntos
sociais e políticos há na doutrina, que não pretendemos esgotar neste artigo.
Apenas ensaiamos expor o quanto o Espiritismo, a política e as atualidades
estão conexas, mostrando, ademais, como é importante o espírita conhecer a
posição da sua doutrina para não cair em contradição. É essencial que o
espírita se inteire dos problemas sociais de seu tempo e, com o auxílio da
doutrina – que trata desses temas –, possa atuar de modo a melhorar a si mesmo
e o seu meio, tendo em vista o progresso para um mundo melhor. Conhecendo as
posições doutrinárias sobre temas sociopolíticos e econômicos e exercendo
sempre sua livre razão, o espírita tem melhores condições de aderir a (e mesmo
elaborar) projetos de sociedade, propostas políticas mais condizentes com seus
ideais e com o horizonte de um mundo regenerado, que deixará para trás os erros
do passado e de hoje. Assim como também estará mais apto a ser agente
consciente da transformação da sociedade, buscando aumentar o bem comum e
trazer a justiça e a solidariedade fraternal à Terra.
Referências bibliográficas
BÍBLIA de
Jerusalém: nova edição, revista e ampliada. Trad. Gilberto da Silva Gorgulho,
Ivo Storniolo, Ana Flora Anderson (Coord.). São Paulo: Paulus, 2002.
DENIS,
Léon. Depois da morte. 3.ed. Trad.
Maria Lúcia Alcântara de Carvalho. Rio de Janeiro: Celd, 2010.
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Luiz Gustavo Oliveira dos Santos. Limeira, SP: Editora do Conhecimento, 2018.
KARDEC,
Allan. L’Évangile selon le Spiritisme [O Evangelho segundo o Espiritismo].
4.ed. Paris: Ledoyen, Dentu, Henri, 1868.
_______. Le Ciel et l’Enfer: ou la justice divine selon le Spiritisme [O Céu e o Inferno: ou a justiça divina segundo o Espiritismo]. Paris: Ledoyen, Dentu, Fréd. Henri,
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_______. Le Livre des Esprits: philosophie
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_______. Voyage Spirite en 1862 [Viagem espírita em 1862]. Paris: Ledoyen;
Bureu de La Revue Spirite, 1862.
MARIÑO,
Cosme. Conceito espírita do socialismo
(1913). Trad. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos. Limeira, SP: Editora do
Conhecimento, 2022.
TROSTER,
Roberto Luís; MORCILLO, Francisco Mochón. Introdução
à economia: edição revisada e atualizada. São Paulo, Pearson Makron Books,
2002.
[1] Há manuais que já explicam a
relativização necessária da noção de escassez: “Parece estranho a economia
abordar a escassez como um problema universal,
isto é, como um problema que afeta todas as sociedades. Isso se deve em razão
de a economia considerar o problema como de escassez
relativa, uma vez que os bens e serviços são escassos em relação ao desejo dos indivíduos. (...) Pode-se
dizer que as necessidades são ilimitadas
ou, de outra forma, que sempre existirão necessidades que os indivíduos não
poderão satisfazer, ainda que seja somente pelo fato de os desejos tornarem-se ‘refinados’.” (Roberto L. Troster e
Francisco Mochón, Introdução à Economia,
Pearson Makron Books, p. 6-7.)
[2] Entendam-se os termos
“superior” e “inferior”, na doutrina, assim como “forte” e “fraco”, com
referência às posições ou classes sociais no capitalismo, isto é, como já vimos
antes: os “exploradores” e os “explorados”, respectivamente, possuidores e
trabalhadores.
É mais um texto que nos ajuda em nossas reflexões e defesas de ponto de vista. E, mais! Para os que desconhecem ou não reconhecem tais qualidades que o Espiritismo nós trás, é uma ótima ferramenta que ajudará na retificação das idéias erradas sobre o Kardecismo. Como sempre excelente Gustavo!
ResponderExcluirMais um excelente artigo. Reflexão clara e sensata do posicionamento Espírita, em concordância com o Espiritismo. Leonaldo Silvia
ResponderExcluirCaro Alexandre!
ResponderExcluirTexto riquíssimo em proposições para as soluções dos problemas mais
graves que martirizam o povo. O que é mais evidente nesses aspectos,
e você foi muito feliz nas pesquisas, são as ideias de Kardec em sintonia com
principais fundamentos e pensadores socialistas de então. Jorge Luiz
Amigo, este belo artigo é do nosso amigo Luiz Gustavo!!!
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