terça-feira, 26 de março de 2024

Decolonizar – Descolonizar – Contracolonizar – Ecologia decolonial





 Muito tem-se discutido sobre os temas acima, e gostaria de trazer o pensamento de alguns autores sobre eles. Nós que moramos no hemisfério sul do planeta, estamos refletindo sobre a colonização de nossos países, e seus desdobramentos.  A metrópole pode ser Portugal, Espanha, França, Inglaterra etc tanto faz, pois, a devastação que aconteceu e acontece em nossos territórios são iguais, modificando apenas a intensidade.

Decolonial – É o desligamento das metrópoles, por processo histórico-administrativos das ex-colônias. A “independência de muitos países” conseguindo deixar de ser submisso a sua metrópole, realizando sua própria administração e crescimento.

DESCOLONIAL – Apesar da diferença ser apenas por um “S”, é um movimento contínuo, de romper as amarradas com a colônia,  de tornar pensamentos e práticas cada vez mais livres da colonialidade, assumindo sua história, sua cultura, suas crenças etc.

Antonio Bispo, autor quilombola nos faz a seguinte reflexão: Adestrar e colonizar são a mesma coisa. Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-o de seus sagrados, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro nome. O processo de denominação é uma tentativa de apagamento de uma memória para que outra possa ser composta.

Todo adestramento tem a mesma finalidade: fazer trabalhar ou produzir objetos de estimação e satisfação. Contudo, não são todos os animais que conseguimos adestrar. Alguns ficam atrofiados fisicamente quando se exige do animal um esforço físico para além do que é capaz. Outros ficam atrofiados mentalmente – quando o animal recebe um choque mental violento.

Fanon relata: todo povo colonizado, isto é, todo povo em cujo seio se originou um complexo de inferioridade em decorrência do sepultamento da originalidade cultural local – se vê confrontado com a linguagem da nação civilizadora, quer dizer, da cultura metropolitana.

Aimé: “A colonização desumaniza até o homem mais civilizado; a ação colonial, o empreendimento colonial, a conquista colonial fundada no desprezo pelo homem nativo e justificada por esse desprezo, inevitavelmente, tende a modificar a pessoa que o empreende; o colonizador, ao acostumar-se a ver o outro como animal, ao treinar-se para tratá-lo como um animal, tende objetivamente, para tirar o peso da consciência, a se transformar, ele próprio, em animal.

Sociedades esvaziadas de si mesmas, culturas pisoteadas, instituições solapadas, terras confiscadas, religiões assassinadas, magnificências artísticas destruídas, possibilidades extraordinárias suprimidas. Milhões de homens em quem foram inteligentemente inculcados o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, o ajoelhar-se, o desespero, o servilismo”.

Apesar dos autores falarem de homem como ser humano, trago uma reflexão de Vergè sobre as mulheres que diz: “Todos os dias, em todo lugar, milhares de mulheres negras, racializadas, “abrem” a cidade. Elas limpam os espaços de que o patriarcado e o capitalismo neoliberal precisam para funcionar. Elas desempenham um trabalho perigoso, mal pago e considerado não qualificado, inalam e utilizam produtos químicos tóxicos e empurram ou transportam cargas pesadas, tudo muito prejudicial à saúde delas. Geralmente viajam por longas horas de manhã cedo ou tarde da noite. Um segundo grupo de mulheres racializadas, que compartilha com o primeiro uma interseção entre classe, raça e gênero, vai às casas da classe média para cozinhar, limpar, cuidar das crianças e das pessoas idosas para que aquelas que as empregam possam trabalhar, praticar esporte e fazer compra nos lugares que foram limpos pelo primeiro grupo de mulheres racializadas.

Essa economia do esgotamento dos corpos está historicamente ancorada na escravatura. O medo é uma de suas armas preferidas para produzir conformismo e consentimento. A colonialidade que institui uma política de vidas descartáveis.

Os objetivos das políticas desses patriarcas são os mesmos: servir ao capitalismo racial, explorar, extrair, dividir, despojar, decidir quais vidas importam e quais não importam”.

“Economias naturais, harmoniosas e viáveis, na medida do homem indígena que foram desorganizadas, culturas alimentares destruídas, subnutrição instalada, desenvolvimento agrícola orientado para o benefício único das metrópoles, roubo de produtos, roubo de matérias-primas. Cada dia que passa, cada negação de justiça, cada blitz policial, cada manifestação operária afogada em sangue, cada escândalo abafado, cada expedição punitiva, cada viatura, cada policial e cada milícia nos fazem sentir o preço de nossas antigas sociedades. Eram sociedades comunitárias, nunca de todos para alguns. Eram sociedades anticapitalistas, democráticas, cooperativas, sociedades fraternas”. (Aimé)

Galeano, no seu livro esplêndido, relata como todos os países da América Latina foram colonizados, suas populações originais e as racializadas sofreram e sofrem grandes destruições, por vezes, povos inteiros exterminados. “ En América Latina es lo normal: siempre se entregan los recursos en nombre de la falta de recursos. El siempre soplo de las glorias y el peso siempre perdurable de las catástrofes. La ley de la ganancia puede más que todas las leyes”.

Antonio Bispo: “A cidade é um território arquitetado exclusivamente para os humanos. Qualquer outra vida que tenta existir na cidade é destruída. Para andar descalço, é preciso desinfetar o chão. A humanidade se desconectou da natureza.

Os humanos não se sentem como entes do ser animal. Essa desconexão é um efeito da cosmofobia. Na cidade, as pessoas têm medo de gente. A cidade é um território colonialista. Os povos da cidade precisam acumular. A cultura é uma coisa padronizada, mercantilizada, colonial. Só precisa armazenar quem não confia, quem tem medo da natureza não fornecer, medo da natureza castigar.

A cosmofobia é responsável por esse sistema cruel de armazenamento, de desconexão, de expropriação e de extração desnecessária. Porque existe tanto lixo? O desperdício é um resultado da cosmofobia”.

 Ferdinand:  começa desfazendo um equívoco recorrente em análises contemporâneas provenientes tanto do movimento ambiental como do movimento antirracista e decolonial: a separação entre a questão ecológica e a questão colonial. Essa “dupla fratura”, como ele define, impede perceber em que medida a destruição do meio ambiente e o legado colonial estão inextricavelmente ligados, tanto em sua origem como em suas nefastas consequências.

“Habitar a Terra começa nas relações com os outros. Assim, o habitar colonial designa uma concepção singular da existência de certos humanos sobre a Terra – os colonizadores-, de suas relações com outros humanos – os não colonizadores-, assim como de suas maneiras de se reportar à natureza a aos não humanos.

Além dessas vidas, o ecossistema como um todo foi sendo destruído no processo de exploração colonial da Terra e de escravização Negra, processos que serviram de base para a modernidade, pois embora todo mundo seja exposto a ecossistemas contaminados, permanecem grupos de senhores proprietários, cujos interesses financeiros coincidem com as contaminações perenes da Terra, nessa configuração do habitar colonial em que a condição tóxica, é a um só tempo, a consequência da exploração capitalista desses ecossistemas por seus senhores e a causa que reforça a dominação de tais territórios por esses mesmos senhores”.

Malcom vai nos mostrando esta dupla fratura (ambiental e colonial) como um problema central da crise ecológica, que abala as maneiras como esta é pensada e as suas traduções políticas.

“A fratura ambiental decorre desta “grande partilha” da modernidade, a oposição dualista que separa natureza e cultura, meio ambiente e sociedade, estabelecendo uma escala vertical de valores que coloca “o Homem” acima da natureza. Tal fratura abrange também uma homogeneização horizontal e esconde as hierarquizações internas de ambas as partes. Os termos “planeta”, “natureza” ou “meio ambiente” escondem a diversidade de ecossistemas, dos lugares geográficos e dos não humanos que os constituem. Florestas, montanhas, e reservas naturais mascaram as imagens das naturezas urbanas, das favelas e das plantações.

A fratura animal como as hierarquizações entre animais selvagens “nobres”, e os animais domésticos são colocados acima dos animais de criação.

“ Racismo ambiental” A descriminação racial na elaboração de políticas ambientais, a aplicação de regulamentos e leis, o direcionamento deliberado de comunidades racializadas para instalações de resíduos tóxicos, a sanção oficial da presença de venenos e poluentes que representam uma ameaça à vida em nossas comunidades e a história da exclusão de pessoas racializadas dos espaços de liderança nos movimentos ecológicos.  Dr. Benjamin Chavis.

O racismo não adentra o cenário simplesmente como fator determinante da maneira como os perigos ambientais são vividos de forma desigual pelos seres humanos, ele cria as próprias condições de possibilidades de ataques contínuos ao meio ambiente, inclusive aos animais humanos e não humanos, cujas vidas são sempre desvalorizadas pelo racismo, pelo patriarcado e pelo especismo.

Ecologia decolonial articula a confrontação das questões ecológicas contemporâneas com a emancipação da fratura colonial, com a “saída do porão do navio negreiro”. Trata-se de questionar as maneiras coloniais de habitar a Terra e de viver junto. O confronto das destruições ecossistêmicas está intimamente ligado a uma exigência de igualdade e de emancipação. Ela compreende também relações específicas com não humanos, paisagens e terras.

Da Fratura ambiental à Fratura colonial e vice-versa, tem como questão central a crise ecológica, decorrente da constatação de que a poluição, as perdas de biodiversidade e o aquecimento global são os vestígios materiais desse habitar colonial da Terra, compreendendo desigualdades sociais globais, discriminações de gênero e de raça.

As exclusões sociais e políticas dos ex-escravizados, dos pobres, dos racializados e das mulheres manifestam-se também por meio da contaminação de seus corpos biológicos pelos produtos tóxicos das plantações e das fábricas, pelas desigualdades de exposição, de tratamento e de pesquisas médicas sobre as consequências dessas exposições.

Longe de uma oposição entre causa animal, causa Negra e causa feminista, essas diversas alianças interespécies contra o habitar colonial continuam sendo hoje as chaves de um “navio-mundo”. Um “navio-mundo” guiado pelos ventos da justiça, onde humanos e não humanos possam viver juntos.

Compor um mundo plural, diverso e transgeracional a partir das pluralidades humanas e não humanas na Terra. Essa tarefa desdobra-se, no mínimo, nos planos ontológicos, estético e político.

O fato de tudo estar conectado ao todo não permite, necessariamente, pensar como esse todo se torna o mundo nem pensar os desafios de igualdade e de justiça. O mundo é fruto de um agir conjunto. A ecologia do mundo requer uma cosmopolítica da relação”.

Antonio Bispo nos sugere:

“Modos e falas, para contrariar o colonialismo: Se o inimigo adora dizer desenvolvimento isso é ruim, a palavra boa é “envolvimento”. Para enfraquecer o desenvolvimento sustentável, nós trouxemos a biointeração; para a coincidência, trouxemos a confluência; para o saber sintético, o saber orgânico; para o transporte, a transfluência; para o dinheiro (ou a troca), o compartilhamento; para a colonização a contracolonização.... e assim por diante.

Antonio Bispo - O grande debate hoje é o debate decolonial, que só consigo compreender como a depressão do colonialismo, como a sua deteriorização, decomposição. É importante se defender, mas não é necessário atacar agora. Não precisamos destruir os colonialistas. Deixemos que vivam, desde que vivam com o sol deles e não venham roubar o nosso sol ou o nosso vento.  

O mundo é grande e tem lugar para todo mundo. O mundo é redondo exatamente para as pessoas não se atropelarem.

As pessoas falam de racismo, mas discutem o racismo apenas dentro da espécie humana. Mas a questão é mais ampla. Basta pensar nas variedades de peixes que tínhamos naquele tempo e em quantas temos hoje. Peixes que não são criados em cativeiros. Não são mais considerados peixes em alguns lugares. O racismo acontece contra todas as vidas. Não temos mais peixes nos rios porque jogam veneno nas plantações no período da piracema, durante a reprodução dos peixes. Desmataram as matas e não desce mais matéria orgânica para os rios. As águas que iam para o rio levando matéria orgânica agora vão levando veneno.

Nós pensamos sempre na circularidade, quebrando o monismo, a dualidade e o binarismo.

Quando eles falam em “globalizar”, estão dizendo “unificar”. Quando dizemos “globo”, estamos englobando e, ao mesmo tempo, reconhecendo as individualidades que existem dentro do globo. Essa é uma questão germinante, que precisa ser tratada e cultivada.

Dentro do reino animal, só existe política na espécie humana. Nas outras espécies, existe a autogestão.

A política é eurocristão monoteísta e a cosmopolítica também é uma invenção eurocristã. O nosso movimento é o movimento da transfluência. Transfluindo somos começo, meio e começo. Porque a gente transflui, conflui e transflui. Conflui, transflui e conflui. A ordem pode ser qualquer uma.

Os colonialistas, povos sintéticos, são lineares e não transfluem, eles apenas refluem, porque são o povo do transporte.  Os eurocristãos colonialistas só podem ir e refluir, porque não circulam, como nós o transporte vai e volta, em linha reta. Já no sistema cosmológico, não há refluência. A água não reflui, ela transflui, e por transfluir, chega ao lugar de onde partiu, na circularidade”.

Kardec já nos mostrava este caminho através das Leis morais, no livro 3 do livro dos Espíritos, principalmente com a Lei de Justiça, amor e caridade.

 “A lei de amor e de justiça proíbe que se faça a outrem o que não queremos que nos seja feito, e condena, por esse mesmo princípio, todo meio de adquirir que o contrarie”.

 

 

 

Bibliografia

 

Césaire Aimé: Discurso sobre o colonialismo. Ed. Veneta.

Fanon, Frantz: Pele negra, Máscaras Brancas. Ed. Ubu.

Ferdiand, Malcom – Uma ecologia decolonial – Pensar a partir do mundo caribenho. Ed. Ubu.

Galeano, Eduardo – Las venas abiertas de América Latina. Siglo Veintiuno editores.

Kardec, Allan – Livro dos Espíritos. Ed. Lake.

Santos, Antônio Bispo dos – A terra dá, a terra quer. Ed. Ubu.

Vergès, Francoise – Um feminismo decolonial. Ed. Ubu

 

 







3 comentários:

  1. Parabéns 👏🏻 😉 como sempre.. ótima com as palavras. Bjs Carla Guerra

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  2. Parabéns Alcione! Excelente sua reflexão. Você trouxe Fanon, Aimé e Galeano para as reflexões espíritas!E, claro, nosso bom e velho Kardec!Ricardo Nunes

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