terça-feira, 10 de novembro de 2020

Necropolítica, Psicanálise e Espiritismo

               

        


                                        Por Lindemberg Castro

 

A pandemia causada pelo novo coronavírus escancarou ainda mais diversas contradições a partir do mundo patologicamente considerado “normal”, no qual, mesmo agonizando em inúmeras desigualdades sociais, estávamos “acostumados” a viver (ou sobreviver). Com a ideia de um “novo normal”, que para muitos parece uma realidade alternativa já instalada, vemos que o tal “novo normal” é ainda mais cínico em seus discursos, justificando as desigualdades sociais de toda ordem, movimentando vidas humanas como peças de uma engrenagem (o que surpreenderia até mesmo Foucault), e banalizando a vida, reificando o ser humano (exatamente como nos previu George Lukács). No processo de reificação a partir das atividades capitalistas e produtivas, o ser humano passa a ser identificado cada vez mais como objeto inanimado e seu valor está diretamente relacionado com uma medida quantitativa dentro da produção de objetos ou mercadorias circulantes, perdendo a sua autonomia, a sua autoconsciência e a consciência da realidade que o cerca.

A Necropolítica nunca esteve tão fortalecida, como em nossos tempos atuais! Passamos de uma normose da qual nos queixávamos pela falta de tempo, pela baixa qualidade de vida ou pelo excesso de trabalho, para uma normose amplamente difundida, aceita e justificada pelos discursos neoliberais, discursos de ódio, notícias falsas, e relativização da vida humana possivelmente vitimada em plena pandemia, mas não necessariamente uma vida chorável ao ser perdida, como nos lembra Judith Butler (dentro da necropolítica, nem todas as vidas perdidas são choráveis). O mal-estar da civilização atingiu patamares ainda maiores, que surpreenderiam até mesmo Freud, devido ao esforço contínuo do ser humano em normatizar todos os instintos de morte a que nos alerta Herculano Pires em “Educação para a Morte” (2016).:

Os discursos neoliberais, aliás, nunca estiveram tão em evidência em nosso país, pois agora, parcela considerável da população brasileira (incluindo parte dos espíritas) defende ações de austeridade do governo federal, apesar de não faltarem recursos disponíveis para o combate à pandemia, e mesmo sabendo que milhares de pessoas ou morrerão na miséria e no abandono ou pelo vírus, ou pelos dois simultaneamente. Isso, quando não justificam a inoperância governamental, que, indo além da relativização da gravidade da pandemia e com diversos discursos anticientíficos, vem em constante inação de prevenção e combate ao coronavírus, apesar da dramática situação do nosso país como um dos epicentros da pandemia, no mundo. O Brasil já ultrapassou a marca de 162 mil mortos, e por mais que parte dos espíritas se apoie na lei de causa de efeito para justificarem esses desencarnes, sabemos que a negligência governamental pode ter sido muito mais letal do que o vírus.

Na perspectiva da necropolítica, não possuímos liberdade e nem autonomia, há uma rejeição à crença “romântica” da soberania como algo em “que o sujeito é o principal autor, controlador do seu próprio significado”, Achille Mbembe (2018) preocupa-se, sob uma ótica inteiramente diversa sobre essas questões, “com aquelas formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas ‘a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações’. 

Estamos ignorando o luto coletivo mesmo com nosso dramático cenário, mas um luto dessa magnitude, do ponto de vista psicanalítico, não pode simplesmente ser ignorado, e a seu tempo, deverá cobrar o seu pagamento frente à nossa indiferença. Parte dos espíritas tem se apegado à Lei de Causa e Efeito para justificarem os mais de 162 mil desencarnes em nosso país, devido à pandemia; essa é outra forma de normose e talvez o estágio máximo da necropolítica espírita: justificar desencarnes, dos quais uma parte poderia ter sido evitada com ações governamentais efetivas de proteção às pessoas.

Aprendemos com o Espiritismo que nem todos os acontecimentos durante a reencarnação estão determinados, uma vez que a Filosofia Espírita não admite nenhuma forma de fatalismo; em O Livro dos Espíritos entendemos que a sociedade é responsável por todos os que fazem parte dela, e esse ponto traz consigo a necessidade de cada vez mais lutarmos por condições dignas de existência, de modo que a cada geração o bem-estar social seja ampliado. Aceitar que em meio a uma pandemia, as ações governamentais de prevenção e cuidado com a saúde das pessoas não adiantariam em nada já que “todas” estavam destinadas a morrer, nos coloca no mesmo patamar dos indiferentes citados por Gramsci, e nos conduz em uma perspectiva de alienação justificada pela necropolítica. De que servem então os meios materiais para a qualificação da existência na carne, se não puderem ser utilizados para a ampliação de oportunidades educacionais, culturais, econômicas, sociais, e em favor da saúde física dos Espíritos reencarnados?! A filósofa nigeriana Sophie Oluwole nos lembra que o desenvolvimento humano depende diretamente da ampliação das liberdades em todos os âmbitos da existência: do aspecto econômico ao cultural, do educacional ao social, da qualidade de vida à saúde; quando estamos reencarnados em um país que funciona na base da necropolítica, a nossa liberdade, já limitada pelo progresso espiritual tímido que realizamos até aqui, se torna muito mais diminuta, uma vez que nos são interditadas, muitas vezes, as condições básicas da existência material.

Também temos visto muitos espíritas reabrirem seus centros em plena pandemia, respaldados pelos decretos governamentais estaduais e municipais que permitem uma porcentagem de frequentadores em templos religiosos. Mas, como a pandemia ainda não acabou, é o caso de perguntarmos: há uma necessidade urgente em reabrir centro espírita agora, mesmo que os meses de setembro, outubro e novembro tenham sido os que registram maiores taxas de contaminação pelo coronavírus, no mundo?! Bom, alguns justificam sua decisão com base nas “ordens superiores da Espiritualidade maior” (seja lá o que signifique isso). Parece que parte dos espíritas esqueceu as recomendações de Kardec, na Revista Espírita de 1865, em que ele disserta sobre o papel dos espíritas durante a epidemia de cólera; Kardec afirma que desprezar medidas sanitárias frente a uma epidemia seria verdadeiro suicídio, e que cabe ao espírita velar pela saúde do seu corpo, para cumprir com seus deveres frente à reencarnação.

 

                                                     Quem quer que tenha lido e meditado nossa obra O Céu e Inferno segundo o Espiritismo, sobretudo o capítulo sobre as apreensões da morte, compreenderá a força moral que os espíritas adquirem em sua crença, em presença do flagelo que dizima as populações. Segue-se que vão negligenciar as precauções necessárias em casos semelhantes e baixar a cabeça diante do perigo? Absolutamente não. Eles tomarão todas aquelas que são aconselhadas pela prudência e por uma higiene racional, porque não são fatalistas e porque, se não temem a morte, sabem que não devem procurá-la. Ora, desprezar as medidas sanitárias que podem preservá-los seria um verdadeiro suicídio, cujas consequências conhecem muito bem para a ele se exporem. Consideram como um dever velar pela saúde do corpo, porque a saúde é necessária à realização dos deveres sociais. Se buscam prolongar a vida corporal, não é por apego à Terra, mas para ter mais tempo para progredir, melhorar-se, depurar-se, despojar-se do homem velho e adquirir maior soma de méritos para a vida espiritual (KARDEC, 1865). 

 

Urgentemente, seria fundamental que nós espíritas retomássemos o estudo aprofundado a partir da obra de Kardec, talvez isso nos tiraria da “paz de pantanal”, para usar um termo de Herculano Pires. Adorno (1967), em “Educação após Auschwitz) já nos alertou que os processos civilizatórios não se dão de forma a priori e nem são universais, cabendo à “educação o fim último de que Auschwitz não se repita”; mas, infelizmente a história humana conta em seu inconsciente coletivo, com diversos episódios de desumanização, e ao que parece a normatização da tragédia que envolve a pandemia é apenas mais um triste episódio do nosso processo de autoreificação.

Judith Butler, em entrevista concedida este ano, nos lança as seguintes perguntas: “em que circunstâncias é possível lamentar uma vida perdida? De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público? Quais são essas vidas que, se perdidas, não serão consideradas em absoluto uma perda? É possível que algumas de nossas vidas sejam consideradas choráveis e outras não”? Essas perguntas são absolutamente necessárias para todos nós que estamos reencarnados atualmente, quer sejamos espíritas ou não. Butler (2020) ainda explica que:

 

 

                                                              Faço essas perguntas difíceis e perturbadoras porque eu, como vocês, me oponho à morte violenta; à morte por meio da violência humana; à morte resultante de ações humanas, institucionais ou políticas; à morte provocada por uma negligência sistêmica por parte dos estados ou por modos de governança internacionais.

 

 

Todos nós deveríamos nos opor a todas as mortes provocadas pela negligência sistêmica que apaga as diferenças, as diversidades, que instrumentaliza a vida das pessoas e elege quem pode viver e quem pode morrer! Esse mecanismo não corresponde a uma lei natural, é algo forjado pelos sistemas de opressão que comandam o mundo; em O Livro dos Espíritos vemos que os problemas sociais são criados pelo ser humano, e não por Deus.

Se tivéssemos o hábito de não invisibilizarmos as questões sociais, compreenderíamos facilmente que a Doutrina Espírita reafirma a preocupação com elas, conectando-as ao progresso espiritual. Para o Espiritismo não há divisão entre a realidade social e a realidade espiritual, uma vez que estamos encarnados, somos espíritos encarnados, portanto, somos convidados a atuarmos no mundo. Mariotti (1967) nos diz que “o progresso é uma sucessão de fatos morais e sociais determinados pelas relações entre o elemento espiritual e o elemento material”.

Herculano Pires (2016) nos traz elementos filosóficos e psicanalíticos para compreendermos a indiferença ainda presente no ser humano e a frustração. Herculano diz que a frustração transformou a morte na única herança possível que temos construído. A necropolítica, na visão de Achille Mbembe surge como um projeto de poder dos que detém os poderes político e econômico, contudo, ela se fortalece quando a frustração e a indiferença de todos aqueles que se deixam contaminar por elas, cresce e se multiplica nos setores da sociedade alheios aos poderes impostos.

Para encerrar essas reflexões que ora nos detemos, elencamos abaixo uma citação de Herculano Pires (2016) ainda sobre os resultados da nossa frustração e da nossa indiferença, que alimentam não somente a necropolítica, mas todas as formas de opressão e desigualdades:

 

 

                                                            Restaram em nossas mãos profanadoras apenas as heranças animais: a violência assassina que é o meio normal de que as feras se servem para afastar obstáculos do seu caminho; a astúcia da serpente para engolir e digerir os adversários mais frágeis; a destruição dos bens alheios em proveito próprio, no vampirismo desenfreado da selva social; a dominação arrogante dos que não dispõem de forças para se defender; a mentira, a trapaça, a perfídia de que os próprios selvagens se enojam, e que nós, os civilizados, transformamos, na alquimia da canalhice generalizada, em processos sutis de esperteza, que, para vergonha do século e da espécie, consideramos provas de inteligência. Nossos meios de fuga reduzem-se à covardia da fuga de nós mesmos (p. 63-64).

 

 

O Espiritismo nos convida à transformação de nós mesmos e das realidades sociais na reencarnação, a grande questão é: aceitaremos esse convite, ou continuaremos a reproduzir padrões de comportamento de violência, indiferença e negligência?



REFERÊNCIAS:

 

REFERÊNCIAS:

ADORNO, Theodor. Educação  após Auschwitz. Disponível em: https://rizomas.net/arquivos/Adorno-Educacao-apos-Auschwitz.pdf. Acesso em 07 de novembro de 2020.

BUTLER, Judith. De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público? Disponível em: https://brasil.elpais.com/babelia/2020-07-10/judith-butler-de-quem-sao-as-vidas-consideradas-choraveis-em-nosso-mundo-publico.html. Acessado em 07 de novembro de 2020.

COLOMBO, Cleusa Beraldi. Ideias sociais espíritas. São Paulo: EDITORA COMENIUS, 2014.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: COMPANHIA DAS LETRAS, 2010.

GRAMSCI, Antonio. Odeio os indiferentes. Tradução de Alvaro Bianchi. São Paulo: BOITEMPO, 2020.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de José Herculano Pires. 59ª ed. São Paulo: LAKE, 1998.

KARDEC, Allan. Revista Espírita: edição de 1865. Tradução de Salvador Gentile. 1ª ed. São Paulo: IDE, 1993.

PIRES, José Herculano. Introdução à Filosofia Espírita. São Paulo: FEESP, 1993.

PIRES, José Herculano. Educação para a Morte. 1ª ed. São Paulo: PAIDEIA, 2016.

MARIOTTI, Humberto. O homem e a sociedade numa nova civilização. São Paulo: EDICEL, 1967.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 EDIÇÕES, 2018.


https://institutoherculanopires.blogspot.com/2020/11/necropolitca-psicanalise-e-espiritismo.html

      REFERÊNCIAS:

 

ADORNO, Theodor. Educação 

Link da postagem original no Blog do Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires


2 comentários:

  1. Ótimo texto! São muitas questões, daria um livro.
    Mia Couto diz que a volta a esse "novo normal" é o retorno ao "velho anormal".
    Tenho medo de continuar a mesma de antes, de me acomodar quando tudo isso passar. Temos que refletir muito sobre todas essas questões.

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  2. Meu amigo, parabéns pelo seu artigo, e falo aqui como alguém que se sentiu tocado e contemplado pelo que aqui esta escrito.
    Não poderia ter sido escrito em melhor momento, invizibilização da dor e naturalização da morte e da violência, e em muitos momentos, validados pela incompreensão de uma Doutrina que nos ensina, segundo nos coloca o próprio Herculano, a construirmos o reino de Deus na terra, o Espiritismo, não é uma religião contemplativa.....

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O Ágora agradece seu comentário

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