1.0 INTRODUÇÃO
Atualmente, os contextos que envolvem a Saúde Mental, tem merecido cada vez mais atenção, na sociedade em geral, pois cresce a demanda por formações/cursos/palestras/orientações que englobem prevenção aos diversos tipos de adoecimento psíquico, bem como os protocolos de atendimento e manejo básico de casos mais graves como a ocorrência da depressão e do suicídio. É importante ressaltarmos que, antes mesmo da pandemia pelo novo Coronavírus, já vivenciávamos outra, a de suicídio, mas, devido aos tabus sociais no trato com as temáticas da saúde mental (inclusive no meio espírita) e à falta de políticas públicas adequadas ao atendimento e manejo da população em adoecimento psíquico, essa situação é amplamente invisibilizada ou tratada apenas no âmbito moralista do religiosismo.:
De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde, cerca de 1 milhão de pessoas se suicidam por ano no mundo, sendo o suicídio a segunda maior causa de morte entre pessoas com faixa etária entre 15 e 29 anos; atualmente temos mais de 400 milhões de pessoas diagnosticadas com depressão, que é a segunda maior causa da incidência do suicídio. Apesar desses dados alarmantes, e da urgência do movimento espírita desenvolver trabalho de profilaxia e de orientação em torno das questões de adoecimento psíquico, o que temos visto é um cenário nada animador: de um lado, o suicídio é tratado em parte do movimento espírita com todas as representações situacionais que vemos em livros como “Memórias de um suicida”, ao ponto de, o que acontece com o suicida no plano espiritual e para onde ele vai despertarem mais interesse do que a prevenção e o papel pedagógico das próprias instituições espíritas nessa prevenção; de outro lado, na perspectiva de parte do movimento espírita, a depressão ganha ares de doença pautada na obsessão espiritual somente, esquecendo-se assim, de todos os contextos existenciais que são os causadores da doença depressiva, e ignorando-se, inclusive, os próprios contextos sociais de desigualdades, que concorrem para a incidência da depressão e de outros transtornos.
A demanda por projetos de saúde mental também cresce em diversos meios, como grupos religiosos (inclusive os grupos espíritas), grupos sociais mais vulneráveis como LGBTs, profissionais de segurança, professores da educação básica e superior, população negra e população indígena, instituições dos diferentes setores da sociedade, e nas políticas públicas; quanto a estas últimas, a Organização Mundial de Saúde provê relatórios periódicos de orientação para os diferentes governos do mundo, a fim de que haja a universalização de políticas públicas que atendam a todas as pessoas, independente de sua classe social ou de qualquer outro marcador da diferença, daí a necessidade dos governos não apenas desenvolverem projetos de saúde mental que atendam à população como um todo, mas também projetos que fomentem o atendimento específico para grupos que requerem cuidados específicos, sobretudo os grupos sociais mais vulneráveis historicamente.
A Organização Mundial de Saúde
alerta para o fato de o Brasil ser um país que pouco investe em projetos de saúde
mental para a sua população; apesar de manter uma Rede de Atenção Psicossocial
dentro da Política Nacional de Saúde Mental, vemos ainda a ampla dificuldade de
universalização das informações quanto aos serviços prestados por essas
políticas públicas, e o próprio acesso a atendimento especializado que está
muito longe ainda de ser universalizado em nosso país. O Brasil permaneceu durante
67 anos com uma legislação psiquiátrica (criada em 1934) que não garantia
atendimento humanizado às pessoas em sofrimento mental, não reconhecendo essas
pessoas enquanto sujeitos de direitos. Essa situação só foi alterada a partir
de 2001, com a criação da Lei 10.216, que trata da proteção e dos direitos das
pessoas em sofrimento mental e modifica o modelo de assistência em saúde
mental.
A Reforma Psiquiátrica no Brasil foi de suma importância para a humanização no atendimento e no tratamento das pessoas em sofrimento mental, evitando que episódios como os ocorridos no Manicômio de Barbacena, considerado o Holocausto Brasileiro, em que mais 60 mil pessoas pereceram em suas instalações, a maior parte delas (70%) sem qualquer diagnóstico mental; eram alcoólatras, viciados, prostitutas, homossexuais, mendigos, ou seja, os “indesejados” da sociedade eram internados nesse Manicômio, e passavam o resto das suas vidas em tratamento desumano.
No nosso contexto histórico e político, vale lembrar que há um movimento ideológico excludente de revisionismo histórico, a saber, a partir de 2016 com o acirramento dos conflitos no âmbito da política no Brasil, houve uma espécie de retrocesso que vai de encontro com a luta empreendida pela Reforma Psiquiátrica, que lutou no sentido de desinstitucionalização dos sujeitos e sua consequente inserção social, e que agora esse clamor revisionista, age no sentido de desmontar a política nacional de saúde mental brasileira, ou seja, a de segregar os sujeitos com base na ausência do estado em relação às políticas protetivas e preventivas em saúde mental.
2.0 SAÚDE MENTAL E DIREITOS HUMANOS ENQUANTO TEMAS PROGRESSISTAS
Quando falamos em Saúde Mental e Direitos Humanos, estamos indo além das questões do autocuidado e da psicoterapia, que são temas básicos no âmbito da saúde mental; a relação da saúde mental com os direitos humanos se dá a partir de uma compreensão ampla sobre como os sistemas de opressão existentes, afetam as pessoas em diferentes níveis e de forma diversa a depender dos grupos sociais envolvidos, podendo desencadear processos diversos de adoecimento psíquico, o que pode levar por consequência ao suicídio, como já é o caso de grupos como a população LGBTQIA+ (dados do Grupo Gay da Bahia mostram que entre 2016 e 2018, o suicídio entre a população LGBTQIA+ cresceu 284%, e nenhuma política pública foi pensada como prevenção, pois vemos a cada ano os dados de suicídio aumentarem vertiginosamente em determinados grupos sociais, também devido à grande desigualdade que assola o nosso país. Dados publicados no dia 08 de setembro de 2020, pela ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais, apontam que o ano de 2020 é o ano mais violento dos últimos quatro anos para a população transexual e travesti, aumentando em 79% o número de assassinatos em comparação com o primeiro semestre de 2019; o cenário escancarado de violência alinhado à falta de políticas públicas de amparo a essa população atingida, desencadeia processos graves de adoecimento, deslocamento social, ansiedade e suicídio.
Leonardo Boff, em artigo publicado no dia 18/08 (disponível em leonardoboff.org), nos diz que “Quatro sombras escuras pairam sobre um país solar que nunca puderam ser dissipadas pela nossa consciência e inconsciência coletivas”: a sombra do genocídio dos povos originários, a sombra da colonização, a sombra da escravidão e a sombra da elite do atraso (fazendo menção ao conceito de Jessé Souza, 2017). Essa análise de Boff casa perfeitamente com a perspectiva de Carla Akotirene, em seu livro “O que é interseccionalidade?”, em que ela fala sobre como os sistemas de opressão se articulam, baseados no racismo, no cisheteropatriarcado e no capitalismo, mantendo a estrutura de desigualdade presente na sociedade brasileira. Mencionamos ainda a análise da filósofa Angela Davis, em seu livro “Mulheres, Raça e Classe”, em que ela elenca o racismo, o machismo e o capitalismo, como os catalisadores da opressão existente em diferentes campos da vida social. São referências que nos ajudam a pensar a partir de uma perspectiva decolonial, ou seja, em contraposição à colonialidade presente nos sistemas de opressão nos âmbitos cultural, social, educacional, racial, e também na saúde mental e nos direitos humanos. O olhar psicanalítico para a sociedade nos permite identificar como os processos sociais causam toda sorte de transtornos mentais nos grupos que formam uma população.
3.0 O QUE O ESPIRITISMO TEM A VER COM ISSO
O Espiritismo, enquanto doutrina progressista, e que desperta a atenção das pessoas igualmente progressistas, assim como define Allan Kardec, naturalmente se relaciona com as perspectivas humanitárias que visam corrigir as injustiças sociais pautadas em sistemas de opressão robustos e que dialogam entre si, com vistas a manter a estrutura de dominação histórica. Portanto, podemos dizer que ser espírita não é apenas investir em seu próprio progresso espiritual, individualista e alheio ao contexto social; é preciso ainda contribuir de forma positiva para o progresso dos costumes, das instituições, com vistas a ampliar o bem-estar social e as práticas que configurem em atos e sentimentos fraternos; é preciso agir no mundo, de modo a construirmos perspectivas antirracistas, anticapitalistas, antipreconceituosas, antimachistas, antimisóginas, de forma a que todas as pessoas tenham os seus direitos básicos garantidos, e ainda possamos desfrutar de um mundo acolhedor, fraterno, e pautado no respeito às diferenças; que os nossos marcadores da diferença não justifiquem as opressões descabidas que vivenciamos todos os dias.
A Saúde Mental ainda é um tema pouco explorado pelo movimento espírita, que acaba por ignorar as amplas relações entre Espiritismo e Psicanálise, Psicologia e Psiquiatria. Herculano Pires já nos disse, em “A Pedra e o Joio”, que nosso país possui um déficit gigantesco de cultura, junte-se a isso a indolência de parte do movimento espírita em não desenvolver estudos e pesquisas, que poderiam relacionar o Espiritismo com os diversos campos do conhecimento humano.
Portanto, implementar ações de pesquisa, ensino e divulgação em torno da relação entre Saúde Mental e Espiritismo, é urgente e necessário, sobretudo no que diz respeito à relação entre Saúde Mental e Direitos Humanos, construindo ações que poderão colaborar para a reconstrução de narrativas e perspectivas para o movimento espírita. A interseccionalidade entre Saúde Mental e Direitos Humanos, aliada à diversidade epistemológica do Espiritismo em relação às diferentes áreas do conhecimento humano, tem muito a colaborar com a perspectiva progressista do movimento espírita, ao mesmo tempo em que inova na pesquisa voltada para essas relações, que ainda são pouco difundidas mesmo dentro do movimento progressista. O Ágora Espírita é o primeiro coletivo progressista no Brasil a reconhecer a importância dessas questões que levantamos aqui nesse breve artigo, e a criar um eixo de pesquisa chamado “Espiritismo, Saúde Mental e Direitos Humanos”, com o intuito de fomentar o debate e a produção de conhecimentos, e ainda colaborar com a desmistificação de tabus e referências relacionadas à saúde mental e aos direitos humanos, descontruindo rótulos, propondo intervenções, e desconstruindo as perspectivas tradicionais do movimento espírita, em tratar questões como depressão e suicídio como meras representações espirituais baseadas em culpa e punição. Precisamos avançar muito ainda.
REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
BOFF, Leonardo. Indignação contra a boçalidade de grupos da população brasileira. Disponível em https://leonardoboff.org, acesso em 18 de agosto de 2020.
Davis, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 1º ed., 2016.
KARDEC, Allan. A Gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo. São Paulo: LAKE, 20º ed., 2001.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão a Lava-jato. Rio de Janeiro: Leya,
2017.
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ResponderExcluirDemoramos muito tempo até que alguns espiritas demonstrassem preocupação com o tema, e a sua relação com os direitos afetos aos humanos. Agradeço enquanto estou humano por belissimo artigo, e os felicito pela colaboração, não só ao movimento espirita como a todos que tem preocupação, temos que entender que a desistencia de uma encarnação tem inicio do preterito reencarnatório, mas a alimentação desse sentimento perpassa pela indiferença de todos envolvidos no processo, culminando com a falta de valor com o direito de estar humano,
ResponderExcluirParabens a todos e todas.
Temas importantes, necessários e urgentes. Parabéns ao Coletivo Àgora Espírita, por se debruçarem nesses temas da realidade social à luz do Espiritismo Progressista.
ResponderExcluirParabéns ao Ágora Espírita pela inciativa de comunicação e informações.
ResponderExcluirA nossa responsabilidade como espíritas, é descobrir as necessidades atuais, as dores do momento, os desequilíbrios que atuam no atual contexto do espírito encarnado. Há um século, o espiritismo no Brasil, vem se preocupando mais com o pós morte e suas implicações para a alma, do que tomar medidas preventivas, amparando e acolhendo os que nesta existência apresentam as dores trazidas por traumas de toda ordem. Quero parabenizar ao Eixo de Saúde Mental pela iniciativa e construção de um esclarecedor tema, além de buscar o despertar das mentes que podem contribuir para uma mudança desta estrutura deplorável que enfrentamos no momento doentio do nosso país.
ResponderExcluirParabéns ao Eixo de Pesquisa: Espiritismo, Saúde Mental e Direitos Humanos, pela partilha. Em um momento tão importante, onde as nossa saúde mental tem sido tão aviltada pelas demandas sociais, que o Espiritismo possa ser esta ferramenta emancipatória que nos leve a uma autonomia, através de uma interação social, que se preocupe na formação de uma sociedade integralmente saudável...
ResponderExcluirQuem é o homem de óculos pequeno e bigode na foto do site?
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