Por Salomão Jacob Benchaya
Não tendo o espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião,
na acepção usual do
vocábulo, não podia nem devia enfeitar-se
com um título sobre cujo valor, inevitavelmente, se teria
equivocado.
Eis porque simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.
(Allan Kardec – RE dez/1868)
Adjetivação, origem e contexto
A rigor, o espiritismo não deveria ser adjetivado. A
expressão espiritismo laico só existe
por necessidade comunicacional de distinguir-se do espiritismo cristão ou evangélico,
segmento majoritário liderado pela FEB. No movimento espírita, é constituído
pelos que consideram o espiritismo sob uma perspectiva laica, humanista,
livre-pensadora, progressista, pluralista e alteritária. A expressão “espiritismo
laico” é tão imprópria como “espiritismo cristão” ou “espiritismo religioso”,
mas permite identificar as posturas decorrentes, na prática espírita, de uma ou
de outra posição. Queiramos ou não, é forçoso admitir que os espíritas se
agrupam por preferências e particularidades formando segmentos ou vertentes,
tais como, religiosos ou evangélicos ou cristãos, laicos ou não religiosos,
roustainguistas, ubaldistas, ramatizistas, armondistas, apometristas, chiquistas,
divaldistas, etc.
O espiritismo laico e livre-pensador contrapõe-se ao modelo
dominante de espiritismo religioso, cristão e/ou evangélico. Enquanto o
espiritismo religioso apregoa a tríade ciência-filosofia-religião, os laicos preferem
ciência-filosofia-moral, embora admitam que Kardec nunca propôs essa
tripartição. Kardec classificava o espiritismo como ciência filosófica de
consequências morais. A definição de espiritismo dada por Kardec na Introdução
do livro “O que é o Espiritismo” expressava essa condição epistemológica.
No Cap. I de O Evangelho Segundo o Espiritismo, quando Kardec
idealizou a “Aliança da Ciência e da Religião” sua intenção era de que o
espiritismo se tornasse um traço de união entre as mesmas. Ou seja, o
espiritismo forneceria à Religião argumentos racionais que a fortaleceriam e à
Ciência o elemento espiritual de que esta carece para a melhor compreensão dos
fenômenos que estuda. Mas, para isso, não necessitaria se transformar em uma
religião.
As ideias fomentadas pelo racionalismo e pelo
livre-pensamento originadas com a Revolução Francesa preocupavam a Igreja que
começava a perder o controle sobre o seu rebanho. Kardec percebia o crescente
descrédito das religiões e o anseio da sociedade por uma espiritualidade
desvinculada do dogmatismo clerical. Até então, o domínio da Igreja no terreno
do espiritualismo era completo e apregoava uma moral heterônoma.
A primeira acusação de que o espiritismo surgira como uma
nova religião partiu da própria Igreja na pessoa do Abade François Chesnel, com quem Kardec polemizou
através do periódico “L’Univers” (Allan Kardec, Revista Espírita, maio/1869).
A publicação das obras que se seguiram ao lançamento de “O
Livro dos Espíritos” e “O Livro dos Médiuns” – em especial “O Evangelho Segundo
o Espiritismo”, “O Céu e o Inferno” e “A Gênese, os Milagres e as Predições
Segundo o Espiritismo”, todas enfatizando uma acentuada relação entre a
revelação espírita e o cristianismo – contribuiu, de certa forma, para a
formação de um movimento de caráter religioso, notadamente no Brasil, onde a
nova doutrina encontrou um solo fértil para sua disseminação.
Mas, o que é o Laicismo?
O Laicismo, ou secularismo, é uma doutrina filosófica que
surgiu na França como reação à intromissão religiosa na política e que defende
a autonomia das atividades humanas em relação à religião. O laicismo ganhou prestígio no fim do século XIX e no início do
século XX mas, por contrariar os interesses da Igreja, foi por esta combatido e
acusado de estimular a antirreligiosidade e o ateísmo.
Todavia, ser laico não é ser antirreligioso, nem ser ateu.
Ser laico é ser “arreligioso”, ou seja, isento, autônomo, neutro em relação à
religião, embora tolere, respeite e conviva com esta. A religião é um fenômeno
cultural da humanidade e, como tal, deve ser considerada.
A Laicidade é uma conquista civilizatória associada ao
livre-pensamento, daí encontrar séria oposição nos regimes políticos
totalitários, quer sejam estes relacionados a alguma confissão religiosa, ou a
uma ideologia política. O Brasil é um Estado laico desde a Constituição de
1891, ou seja, deve garantir a liberdade religiosa, o direito do cidadão de ter
ou não ter religião, não deve interferir nos cultos, como também não deve sofrer
influência de natureza religiosa. Se a Constituição é respeitada, isso é outra
questão.
Laicismo não é materialismo
É um equívoco confundir laicismo com materialismo.
Há uma ideia, equivocadamente difundida no meio espírita, por
desinformação ou má fé, de que os espíritas laicos seriam ateus, materialistas,
céticos, sem sentimentos ou sem afetividade. Que o espiritismo laico seria
constituído por espíritas "duros", "secos", que não se
sensibilizam diante do sofrimento humano, ao ouvir uma música melodiosa ou
apreciar a Natureza, que não fazem preces, que não são solidários e caridosos,
que não choram com suas perdas afetivas, etc. Há quem, inclusive, classifique
os laicos como “não espíritas”! Isso proveniente de espíritas ditos “cristãos”.
Kardec e a religião
Kardec recusou classificar o espiritismo como religião,
definindo-o como filosofia espiritualista, ciência filosófica, mas valorizou o
sentimento religioso do homem e o papel da religião. Colocou, inclusive, o espiritismo
como subsídio para o fortalecimento das religiões e para a complementação da
Ciência. Sem, todavia, ser uma religião. Em O
que é o Espiritismo, Kardec assevera que das reuniões espíritas podem
participar adeptos de todas as religiões, destacando, com isso, o caráter de
neutralidade da filosofia espírita.
Por ocasião do discurso de abertura da sessão anual comemorativa
dos mortos, realizada na Sociedade de Paris, em 01 de novembro de 1868, Kardec afirmou:
“No sentido filosófico, o Espiritismo é religião e nós nos ufanamos disso porque é a doutrina que funda os elos da fraternidade
e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases
mais sólidas: as mesmas leis da natureza. ” Os que utilizam essa afirmativa de
Kardec para defender o aspecto religioso da Doutrina, estão desconsiderando o
fato de que o codificador se referia ao “resultado produzido pela comunhão de
pensamentos que se estabelece entre pessoas reunidas com o mesmo objetivo” (RE-dez/1868). Kardec conceitua o
“sentido filosófico” da palavra religião quando diz, no mesmo discurso:
“Dissemos que o verdadeiro objetivo das assembleias religiosas deve ser a
comunhão de pensamentos; é que, com efeito, a palavra religião quer dizer laço.
Uma religião, em sua acepção nata e verdadeira, é um laço que religa os homens
numa comunidade de sentimentos, de princípios e de crenças. ”
Assim, fica evidente que "religião", para Allan
Kardec, não tem o sentido que comumente lhe é atribuído, de “religar o homem a
Deus” - uma interpretação católica, que remete ao mito do “pecado original”, e
da “expulsão do paraíso”, incompatíveis com o Espiritismo, embora conveniente
para a Igreja no seu pretendido papel de intermediária entre Deus e o homem -
mas sim o de “laço” social resultante da
comunhão de pensamentos que o Espiritismo inspira entre os que o estudam e
praticam, portanto, uma relação horizontal, laica.
O Espiritismo não nega a dimensão religiosa do ser humano,
mas prefere não se revestir do caráter de religião para não assimilar desta o
comportamento sectário, exclusivista, dogmático que, definitivamente, ele – o Espiritismo
- recusa. Além de tudo, como crença religiosa, ele se descredencia para o exame
e para a discussão na Academia.
O uso da expressão
Uma das recomendações do I Congresso Espírita Internacional,
celebrado em Barcelona, Espanha, em setembro de 1888, foi: “O Congresso Espírita recomenda um constante esforço para difundir o
LAICISMO por todas as esferas da vida. A absoluta liberdade do pensamento, o
ensino integral para ambos os sexos e o cosmopolitismo como base das relações
sociais”. Essa manifestação vinha corroborar o pensamento de Allan Kardec,
que, afirmou, repetidas vezes, não ser o espiritismo uma religião. Foi,
todavia, após a publicação do livro “Espiritismo Laico”, de David Grossvater,
na Venezuela, em 1966, que se popularizou a expressão “espíritas laicos”.
O Laicismo espírita no Brasil
A autonomia e a laicidade inerentes ao espiritismo logo
seriam corrompidas por alguns continuadores de Kardec, particularmente por
influência da obra Os Quatro Evangelhos – Revelação da Revelação”, de Jean
Baptiste Roustaing, advogado contemporâneo de Kardec, assessorado pela médium
Émilie Collignon.
Os primeiros líderes espíritas brasileiros eram, em sua
maioria, extremamente católicos e roustainguistas. A adoção da obra de
Roustaing, pela FEB, desde os seus primórdios, impingiu ao espiritismo
brasileiro a feição heterônoma das religiões salvacionistas, radicalmente
discordantes da proposta original de Allan Kardec. Na Bahia, onde surgiu o
primeiro centro espírita no Brasil e o primeiro jornal espírita no Brasil – O
Eco de Além-Túmulo – o seu fundador, Luiz Olímpio Teles de Menezes, católico
fervoroso, amigo de Roustaing, convertido ao espiritismo, escreveu, em polêmica
travada com o Padre Juliano José de Miranda, do Arcebispado de Salvador, que “o
Espiritismo e o Catolicismo são a mesma Igreja de nosso Senhor Jesus Cristo:
somente estão mudados os tempos e as palavras; O Espiritismo é o tradutor fiel,
pelos enviados de Deus, das doutrinas do Evangelho”. Mais recentemente, o
médium Francisco Cândido Xavier e o seu espírito-guia Emmanuel tiveram decisivo
protagonismo no desenvolvimento da religião espírita.
No final do século XIX o movimento espírita já se dividia
entre “místicos” e científicos”, os primeiros liderados por Bezerra de Menezes
e os outros pelo jornalista e professor Afonso Angeli Torteroli, fundador do
Centro da União Espírita do Brasil, a primeira instituição unificadora do
movimento espírita nacional. Nessa ocasião, aconteceu a primeira tentativa de
resgate do caráter não religioso do espiritismo. Dos embates travados, resultou
a vitória dos religiosos. A partir da gestão de Bezerra de Menezes à frente da
FEB, em 1895, formatou-se o modelo de religião espírita que logo seria
assimilado e assumido pelo movimento espírita, para o que contribuíram as
características culturais da população brasileira.
O MUE-Movimento Universitário Espírita, de São Paulo, no
final da década de 1960, também viria a discutir a laicidade do espiritismo.
Esse movimento, entretanto, passaria a ostentar um caráter mais social e
político, sob influência do pensamento filosófico dos pensadores argentinos
Humberto Mariotti (1905 – 1982) e seu “Parapsicologia e Materialismo Histórico”
e Manuel S. Porteiro (1881 – 1936) com seu livro “Espiritismo Dialético” além
de outras influências marxistas, como David Grossvater e seu “Espiritismo
Laico”, Eusínio Lavigne e Souza do Prado com a obra “Os espíritas e as questões
sociais”, e Jacob Holzmann Netto (1934 – 1994) com “Espiritismo e Marxismo”,
obras que serviram de inspiração para o discurso crítico, laico e politizado
dos universitários espíritas da época. Esse movimento teve curta duração.
Em 1978, a defesa do caráter laico do Espiritismo ressurge com
grande ímpeto, com o chamado "grupo de Santos", principalmente
através do jornal “Espiritismo e Unificação”, órgão oficial da UMES - União
Municipal Espírita de Santos e da LICESPE-Editora. Esse grupo, liderado pelo
jornalista e psicólogo Jaci Regis, era também integrado por José Rodrigues,
Egydio Régis, Henrique Diegues e outros. Vários deles eram integrantes da UMES,
mantinham forte atuação na USE-SP e instituíram a campanha denominada de
"espiritização" combatendo a igrejificação do espiritismo e
promovendo a cultura espírita.
Nessa época, a
Federação Espírita do Rio Grande do Sul (FERGS) era conduzida pelo grupo
oriundo da S.E. Luz e Caridade (SELC), atual Centro Cultural Espírita de Porto
Alegre (CCEPA), integrado por Maurice Herbert Jones, Salomão Jacob Benchaya e
Milton Rubens Medran Moreira, entre outros. Em 1986, o autor deste artigo, ao
início de seu segundo mandato como presidente da FERGS, lança o “Projeto:
Kardequizar”, em sintonia com a campanha “espiritização” deflagrada por Jaci
Regis e seu grupo. Em outubro de 1986, com o lançamento, pela FERGS, da edição
de nº 402 da revista “A Reencarnação”, cuja capa estampava a expressão
“Espiritismo: Ciência e Filosofia. Até que ponto é Religião? ”, ocorre uma
forte reação conservadora e, na eleição seguinte, uma nova diretoria assume a
Federação e reafirma o caráter religioso da Doutrina Espírita.
O Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE),
idealizado por Jaci Regis, realizado bienalmente, de 1989 a 2017, pelo
Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS) teve destacada importância na
consolidação do segmento laico e livre-pensador espírita no Brasil. Esse evento
contribuiu para o retorno da Confederação Espírita Pan-americana (CEPA) ao
Brasil, do qual estava ausente desde 1949, após a realização do seu II
Congresso Pan-americano, no Rio de Janeiro. Esse evento havia sido organizado
com o apoio da Liga Espírita do Brasil, mas contrariava os interesses da Federação
Espírita Brasileira (FEB) que, reunindo alguns dirigentes de federativas
estaduais presentes no Rio de Janeiro, institui o chamado “Pacto Áureo”,
expresso numa Ata que orienta o movimento espírita federado no Brasil.
A CEPA-Associação Espírita Internacional, antiga Confederação
Espírita Pan-Americana, fundada em 1946, na Argentina, herdeira da tradição
espírita espanhola de características acentuadamente livre-pensadoras, onde se
destacaram José María Fernandez Colavida e Amália Domingo Soler, e que
encontraram ressonância entre pensadores sul-americanos como Cosme Mariño,
Manuel Porteiro, Humberto Mariotti, David Grossvater, Luiz di Cristóforo
Postiglioni e, mais recentemente, Jon Aizpúrua, dentre outros, sempre se
manteve distante do religiosismo vigente no espiritismo brasileiro, sendo hoje
a instituição mais representativa da vertente doutrinária laica e
livre-pensadora.
Felizmente, o movimento espírita, mais amadurecido, aos
poucos se distancia do modelo hegemônico e imobilizante. Líderes e pensadores
identificados com o genuíno projeto kardeciano compõem uma nova força que deverá
impulsionar o espiritismo a assumir a sua verdadeira identidade e a se libertar
das amarras religiosas para exercer o seu papel libertador junto à Humanidade.
(*)
Economista (74), bancário aposentado, microempresário de transporte escolar.
Presidiu o Centro Cultural Espírita de Porto Alegre (CCEPA) por vários
mandatos, ex- presidente da Federação Espírita do Rio Grande do Sul
(1984-1987), onde coordenou a criação e o lançamento da Campanha de Estudo
Sistematizado da Doutrina Espírita (ESDE); delegado da CEPA desde 1996, em 2000
presidiu a organização do XVIII Congresso Espírita Pan-americano, em Porto
Alegre; Secretário Geral da CEPA na gestão do Dr. Milton Medran Moreira
(2000-2008) e na atual gestão da Dra. Jacira Jacinto da Silva. Organizador dos
livros “A CEPA e a atualização do Espiritismo” e “Espiritismo: O pensamento atual
da CEPA” e autor do livro “Da Religião Espírita ao Laicismo: a trajetória do
Centro Cultural Espírita de Porto Alegre”.
Texto muito bom! Bastante elucidativo! Sempre me questionei sobre a condição de religião e sobre esse igrejismo que conduz muitos ao fanatismo!
ResponderExcluirTexto bastante esclarecedor acerca da origem do espiritismo religioso, no Brasil, e seus desdobramentos, nos instigando a pesquisar mais sobre o livre-pensamento espírita.
ResponderExcluirNo próximo dia 10 de abril, sábado, às 16h, em solenidade virtual que será transmitida por diversas plataformas na internet, a CEPA-Associação Espírita Internacional lançará a Coleção Livre-Pensar Espírita: espiritismo para o século XXI, em formato e-book, organizada com o apoio do CPDoc-Centro de Pesquisa e Documentação Espírita. Veja em www.cepainternacional.org
ResponderExcluirPerfeito! Tenho estudado esse tema em profundidade (pelo menos no que tange à parte brasileira) e minhas conclusões a respeito coincidem perfeitamente. Infelizmente o espaço para o artigo não permite que se adicionem informações comprovando muitas das informações passadas. Mas a síntese está excelente, parabéns. Abraços
ResponderExcluirNão vejo problemas com a concepção religiosa do espiritismo. É inegável a ligação com o cristianismo desde o LE (isso sem contar o ESE, CE e AG). Prefiro utilizar a abordagem do Herculano Pires que aceitava o aspecto religioso mas condenava o "igrejismo" do movimento. No mais, acho que esta é mais uma questão de interpretação do que significa religião. Dependendo da forma como você determina o termo, o espiritismo pode ou não ser considerado uma religião.
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