Ao longo das últimas décadas circulou entre os espíritas brasileiros a
ideia de que o Espiritismo é uma doutrina apolítica para responder ao
questionamento de que os assuntos sobre Espiritismo e Política não poderiam se
misturar, dialogar ou provocar compromissos de atuação na sociedade através dos
movimentos sociais e da luta pela garantia e manutenção de direitos advindos
desses mesmos movimentos.
O fazer espírita, segundo os que defendem um Espiritismo apolítico,
deveria ser restrito ao estudo das obras de Allan Kardec e o centro espírita se
tornaria o lugar mais adequado para construir o chamado “trabalho espírita” que
também passou a ser entendido através da prática de palestras públicas com um
mesa na tribuna em que um único palestrante fala por quase uma hora, aplicação
de passes e fluidoterapia, seguido da água fluidificada, atendimento fraterno, tratamento
espiritual da obsessão, evangelização infantojuvenil, distribuição de sopa e
cestas básicas, livraria e biblioteca junto com bazar e cantina de lanches,
campanha do quilo e a chamada divulgação doutrinária com a publicação de
textos, vídeos e artigos em jornais e redes sociais falando sobre o Espiritismo
e o evangelho de Jesus.
Nessa seara de afazeres espíritas, recheada de muitos trabalhos, falar de
Política e seus desdobramentos nas questões sociais tornou-se algo proibido,
evitado e silenciado ao ponto de ser enquadrado como assunto antidoutrinário.
O espírita encarnado ou desencarnado que defende e divulga a ideia de
que o Espiritismo é apolítico e ajuda a difundir o pensamento de que falar de
Política é algo antidoutrinário, evidencia o quanto que desconhece sobre o que
de fato é o fazer espírita a partir da noção fundamental de Espiritismo
apresentada por Allan Kardec. E a razão desse desconhecimento se dá pelo fato
de não saber o que é algo “apolítico” e “antidoutrinário” e ainda correlacionar
essas palavras com um sentimento de advertência de modo a evitar o diálogo
sobre Espiritismo e Política.
Apolítico, segundo o dicionário, é tudo aquilo que não é político, que
não apresenta significado político, é aquilo ou aquele que não se interessa por
política ou por ela tem aversão. Já antidoutrinário seria significado também
pelo dicionário como tudo aquilo que está em desacordo com uma certa doutrina. Além
disso, o próprio conceito de Política precisa também ser esclarecido de modo a espantar
o fantasma que essa palavra representa.
No imaginário de muitos espíritas encarnados e desencarnados, a Política
é entendida como sinônimo de politicagem o que acaba trazendo para essa palavra
o sentido de algo sujo, errado, imoral, não ético ou que vibratoriamente não é
bom para as energias da casa espírita e nem para a mente dos ditos médiuns que
podem se desequilibrar e serem assediados por maus Espíritos que encontrariam
brechas se assuntos ligados à Política fossem trazidos e abordados pelo
Espiritismo. Quando, em verdade, a Política é uma ciência da sociedade, fruto
de saberes humanos que foram desenvolvidos e aprimorados ao longo da História,
acompanhando a evolução das sociedades e da própria compreensão dos seres
humanos sobre as necessidades que possuem nos grupos sociais em que estão
inseridos e que compõem as nações ao redor de todo o planeta Terra.
Política é uma arte de pensar e estruturar as instituições oferecedoras
de serviços que objetivam atender as demandas e necessidades das pessoas que se
relacionam socialmente. Em outras palavras, a Política é a expressão pensada,
falada, estruturada, registrada e sentida dos Espíritos encarnados e
desencarnados ao longo da História, nas diversas sociedades com seus aspectos
culturais característicos. É, portanto, fruto das escolhas dos Espíritos
encarnados com todas as suas boas ou más influências por parte dos Espíritos
desencarnados.
Devidamente conceituadas estas palavras, façamos agora o exercício de
questionar se de fato o Espiritismo não pode dialogar com a Ciência Política,
como muitos defendem. Consultando o próprio Kardec, como pedem aqueles que
defendem um Espiritismo apolítico, questiona-se como podemos estudar a pergunta
573 de O Livro dos Espíritos quando Kardec busca entender em que consiste a
missão dos Espíritos encarnados, cuja resposta fala sobre a instrução dos
homens para auxiliar com o progresso desses e complementa falando sobre o
melhoramento das instituições por meios diretos e materiais, e não vermos o
conceito de Política presente?
Ainda dessa obra, como estudar em sua questão 818, que aborda a
inferioridade moral da mulher em certas regiões como sendo o resultado do
predomínio injusto e cruel que sobre ela assumiu o homem e também resultado das
instituições sociais e do abuso da força sobre a fraqueza, e não vermos de
forma clara o conceito de Política presente? Sobretudo a Política de acolhimento e proteção
às mulheres e a luta pela garantia dos direitos civis dessas mulheres de modo a
tornar justa e equivalente a posição social ocupada por elas e os homens, que historicamente
fizeram as leis só para si e venderam a ideia de que a mulher é o sexo frágil,
sendo este último pensamento uma imensa tolice de homens moralmente pouco
adiantados que formatam seus direitos através da força e da opressão.
Como estudar a questão 797, do mesmo livro, sobre a reformulação das
leis da sociedade cuja resposta central passa pelo reconhecimento de que é pela
força das coisas e pela influência das pessoas de bem que guiam a marcha do
progresso e que são essas as responsáveis a reformular tantas leis que ainda
são cruéis e injustas e que validam desigualdades e encobertam violências dos
mais diversos matizes, e não vermos a flagrante presença da Política como
essência do ensinamento? Ou ainda, quando vemos o conceito de que todos os Espíritos
possuem fundamentalmente e primariamente o direito à vida, na pergunta 880, e
não reconhecermos o compromisso político que se lança sobre os ombros dos
espíritas para garantir uma vida com qualidade para mulheres, crianças, idosos,
negros, indígenas, gays, lésbicas, transexuais, travestis, pobres, periféricos,
suburbanos e pessoas em condição de rua e extrema miséria?
É tão nítido o potencial dialógico do Espiritismo com a arte Política e
com todos os desdobramentos possíveis através das temáticas presentes na
sociedade, que nem de longe, nem no pior dos pesadelos, nem na mais complexa
obsessão, nem na maior obscuridade umbralina se pode admitir chamar o
Espiritismo de apolítico ou que dialogar sobre Política seja considerado
assunto antidoutrinário. O Espiritismo nunca foi e nunca será apolítico porque
o fazer espírita é por si só um fazer político que visa atuar no mundo trazendo
a perspectiva do Espírito imortal de modo a contribuir com a espiritualização
dos seres humanos.
O Espiritismo almeja mudar hábitos culturalmente engessados em crenças
materialistas e inaugurar uma nova fase na humanidade marcada pela renovação
social em que os homens e mulheres, espiritualizados e conscientes das suas
missões enquanto encarnados, assumam as instituições presentes na sociedade
direcionando-as para o atendimento das demandas de um mundo que clama por
justiça e igualdade social e sobretudo por amor, o mais elevado de todos os
sentimentos.
Sendo
assim, conclamemos: Espíritas, amai-vos, instruí-vos e politizai-vos hoje,
amanhã e sempre. Assim seja!
Referencial Bibliográfico
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos:
princípios da doutrina espírita. Livraria Allan Kardec Editora, 2007.
Enquanto a maioria dos espíritas encararem a política como algo antidoutrinário e negativo para a casa espíritas, deixaremos de cumprir com nossa missão de espíritos imortais que é ajudar ao progresso do planeta. O silêncio dos " bons" propicia a ação dos maus!
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