Lidia
Valesca Pimentel[1]
Esse
artigo nasceu de uma inquietação epistemológica acerca das bases da modernidade,
de sua visão eurocêntrica de homem e a influencia do colonialismo no movimento espirita,
desde Kardec até os dias atuais. O uso de termos como “selvagem”, “primitivo”,
“superior” em vários textos Espiritas e as várias alegações de elementos racistas
tem vindo à baila.
Vivemos
em um momento oportuno para introduzir uma reflexão decolonial, em meio a
mudanças no movimento espirita brasileiro, com o aparecimento de coletivos
progressistas trazendo a leitura critica de obras e autores esquecidos, numa
dinâmica dialógica com a ciências sociais e a filosofia e os seus posicionamentos
frente aos acontecimentos da atualidade.
Para
compreender a importância do pensamento decolonial é necessário, inicialmente, compreender
o que significou o pensamento colonial e depois a “virada de chave”, originada,
ainda no século XX, com a crise de paradigmas da modernidade e a irrupção de um
pensamento decolonial, crítico do colonialismo.
O
pensamento colonial apareceu na modernidade não somente como a expansão territorial
dos estados europeus, com a crise do capital, na segunda metade no sec. XIX. Se
constituiu como forma ideológica de entendimento de homem como ser universal, a
imagem e semelhança do europeu, com padrão de civilidade típicos da cultura
ocidental, legitimados a partir de conceitos evolucionistas, em escalas de
evolução social e moral, elaboradas pelos próprios colonizadores.
Os
avanços da biologia com as pesquisas de Charles Darwin, com grande projeção de
sua obra “A Origem das espécies em 1859”, influenciou o pensamento positivista
em sua visão de sociedade, os colonizadores modernos criaram um discurso sobre O
outro colonizado como inferior, legitimando a exploração, como ideia de
progresso e “de missão civilizatória”. Desse modo, podemos dizer que a
colonialidade não é uma questão apenas da administração das colônias, mas uma
epistemologia que influenciou as ciências humanas e a filosofia, tanto no plano
teórico como metodológico.
Foi
assim que o positivismo deu suporte ideológico para que essas sociedades fossem
consideradas primitivas e seus povos inferiorizados, numa escala onde o Europeu
foi considerado moralmente superior, excluindo o conhecimento das tradições
não ocidentais, como diz Walter Mignolo:
“Colonialidade”
equivale a uma “matriz ou padrão colonial de poder”, o qual ou a qual é um
complexo de relações que se esconde detrás da retórica da modernidade (o relato
da salvação, progresso e felicidade) que justifica a violência da
colonialidade. E descolonialidade é a resposta necessária tanto às falácias e
ficções das promessas de progresso e desenvolvimento que a modernidade
contempla, como à violência da colonialidade. (MIGNOLO, 2017 p. 13)
A
agenda colonial produz a descredibilidade de inúmeras formas de existência e de
saber, como também produz a morte, seja ela física, através do extermínio, ou simbólica,
através do desvio existencial (SIMAS e RUFINO, 2018 ) Nasce de um discurso
sobre o outro com subalterno e inferior. Isso não dá para aceitar!
O
pensamento pós colonial é uma tendencia epistemológica nas ciências sociais
desde a emancipação das coloniais africanas que propõe uma reflexão crítica das
epistemologias modernas, que propuseram uma racionalidade ocidental, como
modelo hegemônico de cultura e razão. Como diz Santos (2014) Uma “epistemologia do
sul”. Um modo de pensar que leva em consideração os saberes locais, numa
metáfora do sul não como espaço geográfico, mas como modelo contra hegemônico
do pensamento norte global. Aceitação de
outras cosmovisões, como modelos intuitivos de pensar, representar e viver no
mundo, como as dos indígenas brasileiros, a de tribos africanas, os povos da
índia entre tantos outros na vastidão de manifestação da cultura humana.
Alan
Kardec, assim como outros pensadores espiritas do seu tempo, são herdeiros de
uma filosofia moderna colonial e não teria como ser diferente, dado o seu
contexto. O modelo de ciência no tempo
de Kardec tentava emancipar-se do tradicionalismo e dogmatismo medieval e seus
valores arcaicos. O Espiritismo de Kardec, no plano filosófico, recebeu
influência do iluminismo e sua visão de racionalidade universal. Numa
perspectiva cientifica, foi influenciada pelas ciências naturais e os nascentes
estudos sobre a psiquismo humano.
No
entanto, podemos afirmar que Alan Kardec ultrapassou a ciência do seu tempo, trazendo
o “paradigma do espirito” e uma crítica as ciências a quem chamou de
materialistas, por reduzir o conhecimento apenas ao que pode ser validado a
partir de experimentos comprovados materialmente. O pensamento espirita vai
costurar elementos complexos advindos das respostas dos Espíritos, em sua
maioria cristãos, com a interpretação de Kardec e seu próprio entendimento,
numa perspectiva dialógica entre os conhecimentos de seu tempo e os valores de
uma ética universal dada pelos espíritos.
A
diferenças entre os povos para os franceses era chamada de civilizacion,
como o conjunto dos aspectos da vida material e cultural de um grupo social em
qualquer estágio de seu desenvolvimento. Para os Espíritos em resposta a Kardec
A
civilização tem os seus graus, como todas as coisas. Uma civilização incompleta
é um estado de transição que engendra males especiais, desconhecidos no estado
primitivo, mas nem por isso deixa de constituir um progresso natural,
necessário, que leva consigo mesmo o remédio para aqueles males. A medida que a
civilização se aperfeiçoa, vai fazendo cessar alguns dos males que engendrou, e
esses males desaparecerão com o progresso moral. (O livro dos Espiritos questão
793)
Os
termos primitivo, bem como, selvagem, inferior ao se referir aos povos “não
civilizados” ou de uma civilidade “incompleta” está alçada numa visão de moral.
Seria essa a mesma moral pensada pelo colonizador?
Os
Espíritos esclarecem:
Vós a reconhecereis pelo desenvolvimento moral.
Acreditais estar muito adiantados por terdes feito grandes descobertas e
invenções maravilhosas; porque estais melhor instalados e melhor vestidos que
os vossos selvagens; mas só tereis verdadeiramente o direito de vos dizer
civilizados quando houveres banido de vossa sociedade os vícios que a desonram
e quando passardes a viver como irmãos, praticando a caridade cristã. Até esse
momento não sereis mais do que povos esclarecidos, só tendo percorrido a
primeira fase da civilização.
Kardec
escreve ainda em uma nota essa questão, enfatizando a dimensão ético-moral:
De dois povos que tenham chegado ao ápice da
escala social, só poderá dizer-se o mais civilizado, na verdadeira acepção do
termo, aquele em que se encontre menos egoísmo, cupidez e orgulho; em que os
costumes sejam mais intelectuais e morais do que materiais; em que a
inteligência possa desenvolver-se com mais liberdade; em que exista mais
bondade, boa-fé, benevolência e generosidade recíprocas; em que os preconceitos
de casta e de nascimento sejam menos enraizados, porque esses pré-juízos são
incompatíveis com o verdadeiro amor do próximo; em que as leis não consagrem
nenhum privilégio e sejam as mesmas para o último como para o primeiro; em que
a justiça se exerça com o mínimo de parcialidade; em que o fraco sempre
encontre apoio contra o forte; em que a vida do homem, suas crenças e suas
opiniões sejam melhor respeitadas; em que haja menos desgraçados; e, por fim,
em que todos os homens de boa vontade estejam sempre seguros de não lhes faltar
o necessário
Ainda
na mesma questão, uma nota de Herculano Pires, tradutor dessa edição:
Será essa a civilização cristã que o
Espiritismo estabelecerá na Terra. Como se vê pelas explicações dos Espíritos e
os comentários de Kardec, a civilização incompleta em que vivemos é apenas uma
fase de transição entre o mundo pagão da Antiguidade e o mundo cristão do
Futuro. Nos costumes, na legislação, na religião, na prática dos cultos
religiosos vemos a mistura constante dos elementos do paganismo com os
princípios renovadores do Cristianismo. Cabe ao Espiritismo a missão de remover
esses elementos pagãos para fazer brilhar o espírito cristão em toda a sua
pureza.
O
que deduzir do significado de “costumes mais intelectuais do que materiais”? Como
interpretar os dizeres de Herculano Pires? O que significa remover os elementos
do paganismo? Que elementos são esses? O
pensamento de Pires soa flagrantemente colonialista, de uma visão de
cristianismo como religião superior. Isso deve ser assim?
Admitir
a influência de uma visão colonialista nessa interpretação é fundamental para
poder ultrapassá-la. Se considerarmos que a ideia de costume e leis são
próprias de cada cultura e tem manifestações históricas próprias, cada civilização
teve o seu próprio processo civilizador e não poderíamos classificar como
superior ou inferior, mas como participe de seu próprio processo de mudança,
rumo a uma ideia de progresso moral intrínseca ao próprio conceito. Problematizar
a ideia de uma escala civilizatória para admitir que o processo civilizatório é
necessário para ultrapassar o orgulho do
ocidente, sua noção de desenvolvimento material, para adentrar as noções princípios
ético-morais, como esclareceram os
espíritos a Kardec.
As
Ciências Sociais, nascente no mesmo tempo de Kardec, nasceu sob os auspicio de
uma epistemologia colonialista e com forte influência do darwinismo social. Todavia,
as Ciências Sociais realizaram sua própria critica, se abriram para as
perspectivas pós coloniais. Assim pode ser os estudos espiritas? Essa é a
questão posta, as quais não é mais possível jogar para baixo do tapete, mas
encará-la como dilema epistemológico, que só poderá ser resolvido com a
superação dogmáticas das obras básicas.
A
decolonialidade é como uma chave que pode abrir as portas de uma auto reflexão
do movimento espirita e ajudar os seus estudiosos a revisitar criticamente a
influência do paradigma racionalista da ciência moderna e do positivismo,
método hegemônico na ciência do Sec. XIX, para admitir que o Espiritismo é um conhecimento
produzido a partir de fontes europeias, com a influência de espíritos cristãos,
com os valores ocidentais sobre homem, Deus e sociedade.
Se
no passado o Espiritismo acompanhou as ciências do seu tempo, nos dias atuais,
pode abrir-se aos dilemas do sec. XXI, continuar a produção do saber espirita,
iniciada por Kardec, entender as emergências do novo tempo, seguindo os passos
que o próprio mestre de Lion ensinou, alinhar a Ciência Espirita ás dinâmicas
da própria ciência.
A
superação da mentalidade colonial abre as portas do pensamento para o encontro
de interculturalidade e para o diálogo interreligioso que rejeita o discurso
sobre o outro, valoriza a auto determinação identitária. Proporciona um
encontro entre sujeitos, suas diferenças, tendo em vista a diversidade do
mundo.
A
decolonialidade nos leva a compreensão de uma humanidade ampla, com experiências
reencarnatórias plurais, vividas em corpos sociais diversos, com visões de
mundo distintos e multiculturais. No plano da mediunidade, admite a importância
de outras narrativas de espíritos que viveram realidades não europeias e não cristãs,
admitindo como espiritualidade válida na grande rede de interconexão existente.
Alcançar uma ideia de universalidade constituída por culturas diferentes, respeitadas
em suas manifestações.
A
decolonialidade pode lançar luz as práticas espiritas a partir do pressuposto
que a ação e o pensamento perfazem o sentido do fazer espirita
conjuntamente. A ação espirita deve ser
manifestada com as bases ética do bem comum, do respeito as diferenças dos
povos, da democracia, da tolerância e da cultura de paz entre as nações, sem
superioridade econômica e ou cultural, estabelecendo a cooperação mutua. Os
povos originários, por exemplo, têm muito a ensinar aos povos ocidentais
Um
fazer que propõe uma pedagogia, ao invés de uma evangelização que cria a
caricatura do “evangelizando”, depositário de um conhecimento, desconsiderando
os aprendizados já existentes e a realidade em que vivem. Sujeitos ativos da
aprendizagem, com sua bagagem cultura local e cosmologia própria. Uma pedagogia
da autonomia, como ensina Paulo Freire, com os valores da emancipação, da troca
de saberes e uma construção partilhada do mundo.
Uma
ação fraterna e solidária que supere as práticas assistencialistas que
objetifica as pessoas. Percebe o outro não como um “necessitado” ou “assistido”,
mas como um sujeito de direitos. Cidadania
ativa, transformadora da sociedade rumo a justiça social e a igualdade entre
todos. Uma espiritualidade viva que integre o sentir, o pensar e o fazer com
bases éticas do cuidado e do bem comum.
Por
fim, é preciso esclarecer que o pensamento decolonial não nos dá um roteiro
pronto para os estudos espiritas, mas aponta para as bases epistemológicas, um
jeito de pensar que supere o poder de um conhecimento sobre o outro, supremacia
religiosa, filosófica ou cientifica, que possa engendrar como únicos ou
verdadeiros.
Referencias:
KARDEC,
Alan. O livro dos Espiritos. Tradução de José Herculano Pires. Lake: São Paulo,
2013.
MINOLO,
Walter D. Colonialidade o lado mais obscuro da modernidade. Revista brasileira
de ciências sociais - vol. 32 n° 94 – Tradução de Marco Oliveira. 2017.
SIMAS,
Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. As ciências encantadas da macumba. Mórula: Rio de
Janeiro, 2018.
SANTOS,
Boaventura de Sousa, MENEZES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Edições
Elmedina, Coimbra, 2009.
[1] Doutora
em Sociologia. Professora Universitária. Espirita, membro do Coletivo Girassois
– Espirita pelo Bem Comum.
Respostas às questões que sempre me incomodaram como ser pensante, curioso e reflexivo. Fundamental repensarmos o conceito de "progresso", "civilização" e "modernidade". Excelente artigo!
ResponderExcluirUrge descolonizarmos o Espiritismo!! Excelente texto.
ResponderExcluirUma reflexão necessária. Um desafio e tanto.
ResponderExcluirMaravilhoso texto! Parabéns .
ResponderExcluirImportantes reflexões.
ResponderExcluirExcelente texto! Parabéns!
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