sexta-feira, 22 de abril de 2022

Contribuições Para um Pensar Decolonial nos Estudos Espiritas

 



Por Lídia Pimentel


Lidia Valesca Pimentel[1]

 

Esse artigo nasceu de uma inquietação epistemológica acerca das bases da modernidade, de sua visão eurocêntrica de homem e a influencia do colonialismo no movimento espirita, desde Kardec até os dias atuais. O uso de termos como “selvagem”, “primitivo”, “superior” em vários textos Espiritas e as várias alegações de elementos racistas tem vindo à baila.   

Vivemos em um momento oportuno para introduzir uma reflexão decolonial, em meio a mudanças no movimento espirita brasileiro, com o aparecimento de coletivos progressistas trazendo a leitura critica de obras e autores esquecidos, numa dinâmica dialógica com a ciências sociais e a filosofia e os seus posicionamentos frente aos acontecimentos da atualidade.  

Para compreender a importância do pensamento decolonial é necessário, inicialmente, compreender o que significou o pensamento colonial e depois a “virada de chave”, originada, ainda no século XX, com a crise de paradigmas da modernidade e a irrupção de um pensamento decolonial, crítico do colonialismo. 

O pensamento colonial apareceu na modernidade não somente como a expansão territorial dos estados europeus, com a crise do capital, na segunda metade no sec. XIX. Se constituiu como forma ideológica de entendimento de homem como ser universal, a imagem e semelhança do europeu, com padrão de civilidade típicos da cultura ocidental, legitimados a partir de conceitos evolucionistas, em escalas de evolução social e moral, elaboradas pelos próprios colonizadores.

Os avanços da biologia com as pesquisas de Charles Darwin, com grande projeção de sua obra “A Origem das espécies em 1859”, influenciou o pensamento positivista em sua visão de sociedade, os colonizadores modernos criaram um discurso sobre O outro colonizado como inferior, legitimando a exploração, como ideia de progresso e “de missão civilizatória”. Desse modo, podemos dizer que a colonialidade não é uma questão apenas da administração das colônias, mas uma epistemologia que influenciou as ciências humanas e a filosofia, tanto no plano teórico como metodológico. 

Foi assim que o positivismo deu suporte ideológico para que essas sociedades fossem consideradas primitivas e seus povos inferiorizados, numa escala onde o Europeu foi considerado moralmente superior, excluindo o conhecimento das tradições não ocidentais, como diz Walter Mignolo:    

“Colonialidade” equivale a uma “matriz ou padrão colonial de poder”, o qual ou a qual é um complexo de relações que se esconde detrás da retórica da modernidade (o relato da salvação, progresso e felicidade) que justifica a violência da colonialidade. E descolonialidade é a resposta necessária tanto às falácias e ficções das promessas de progresso e desenvolvimento que a modernidade contempla, como à violência da colonialidade. (MIGNOLO, 2017 p. 13)

 

A agenda colonial produz a descredibilidade de inúmeras formas de existência e de saber, como também produz a morte, seja ela física, através do extermínio, ou simbólica, através do desvio existencial (SIMAS e RUFINO, 2018 ) Nasce de um discurso sobre o outro com subalterno e inferior. Isso não dá para aceitar!    

O pensamento pós colonial é uma tendencia epistemológica nas ciências sociais desde a emancipação das coloniais africanas que propõe uma reflexão crítica das epistemologias modernas, que propuseram uma racionalidade ocidental, como modelo hegemônico de cultura e razão.  Como diz Santos (2014) Uma “epistemologia do sul”. Um modo de pensar que leva em consideração os saberes locais, numa metáfora do sul não como espaço geográfico, mas como modelo contra hegemônico do pensamento norte global.  Aceitação de outras cosmovisões, como modelos intuitivos de pensar, representar e viver no mundo, como as dos indígenas brasileiros, a de tribos africanas, os povos da índia entre tantos outros na vastidão de manifestação da cultura humana.   

Alan Kardec, assim como outros pensadores espiritas do seu tempo, são herdeiros de uma filosofia moderna colonial e não teria como ser diferente, dado o seu contexto.  O modelo de ciência no tempo de Kardec tentava emancipar-se do tradicionalismo e dogmatismo medieval e seus valores arcaicos. O Espiritismo de Kardec, no plano filosófico, recebeu influência do iluminismo e sua visão de racionalidade universal. Numa perspectiva cientifica, foi influenciada pelas ciências naturais e os nascentes estudos sobre a psiquismo humano.

No entanto, podemos afirmar que Alan Kardec ultrapassou a ciência do seu tempo, trazendo o “paradigma do espirito” e uma crítica as ciências a quem chamou de materialistas, por reduzir o conhecimento apenas ao que pode ser validado a partir de experimentos comprovados materialmente. O pensamento espirita vai costurar elementos complexos advindos das respostas dos Espíritos, em sua maioria cristãos, com a interpretação de Kardec e seu próprio entendimento, numa perspectiva dialógica entre os conhecimentos de seu tempo e os valores de uma ética universal dada pelos espíritos.   

A diferenças entre os povos para os franceses era chamada de civilizacion, como o conjunto dos aspectos da vida material e cultural de um grupo social em qualquer estágio de seu desenvolvimento.  Para os Espíritos em resposta a Kardec

A civilização tem os seus graus, como todas as coisas. Uma civilização incompleta é um estado de transição que engendra males especiais, desconhecidos no estado primitivo, mas nem por isso deixa de constituir um progresso natural, necessário, que leva consigo mesmo o remédio para aqueles males. A medida que a civilização se aperfeiçoa, vai fazendo cessar alguns dos males que engendrou, e esses males desaparecerão com o progresso moral. (O livro dos Espiritos questão 793)

 

Os termos primitivo, bem como, selvagem, inferior ao se referir aos povos “não civilizados” ou de uma civilidade “incompleta” está alçada numa visão de moral. Seria essa a mesma moral pensada pelo colonizador?

Os Espíritos esclarecem:

Vós a reconhecereis pelo desenvolvimento moral. Acreditais estar muito adiantados por terdes feito grandes descobertas e invenções maravilhosas; porque estais melhor instalados e melhor vestidos que os vossos selvagens; mas só tereis verdadeiramente o direito de vos dizer civilizados quando houveres banido de vossa sociedade os vícios que a desonram e quando passardes a viver como irmãos, praticando a caridade cristã. Até esse momento não sereis mais do que povos esclarecidos, só tendo percorrido a primeira fase da civilização.

 

Kardec escreve ainda em uma nota essa questão, enfatizando a dimensão ético-moral:

De dois povos que tenham chegado ao ápice da escala social, só poderá dizer-se o mais civilizado, na verdadeira acepção do termo, aquele em que se encontre menos egoísmo, cupidez e orgulho; em que os costumes sejam mais intelectuais e morais do que materiais; em que a inteligência possa desenvolver-se com mais liberdade; em que exista mais bondade, boa-fé, benevolência e generosidade recíprocas; em que os preconceitos de casta e de nascimento sejam menos enraizados, porque esses pré-juízos são incompatíveis com o verdadeiro amor do próximo; em que as leis não consagrem nenhum privilégio e sejam as mesmas para o último como para o primeiro; em que a justiça se exerça com o mínimo de parcialidade; em que o fraco sempre encontre apoio contra o forte; em que a vida do homem, suas crenças e suas opiniões sejam melhor respeitadas; em que haja menos desgraçados; e, por fim, em que todos os homens de boa vontade estejam sempre seguros de não lhes faltar o necessário

 

Ainda na mesma questão, uma nota de Herculano Pires, tradutor dessa edição:

 Será essa a civilização cristã que o Espiritismo estabelecerá na Terra. Como se vê pelas explicações dos Espíritos e os comentários de Kardec, a civilização incompleta em que vivemos é apenas uma fase de transição entre o mundo pagão da Antiguidade e o mundo cristão do Futuro. Nos costumes, na legislação, na religião, na prática dos cultos religiosos vemos a mistura constante dos elementos do paganismo com os princípios renovadores do Cristianismo. Cabe ao Espiritismo a missão de remover esses elementos pagãos para fazer brilhar o espírito cristão em toda a sua pureza.

 

O que deduzir do significado de “costumes mais intelectuais do que materiais”? Como interpretar os dizeres de Herculano Pires? O que significa remover os elementos do paganismo?  Que elementos são esses? O pensamento de Pires soa flagrantemente colonialista, de uma visão de cristianismo como religião superior. Isso deve ser assim?

Admitir a influência de uma visão colonialista nessa interpretação é fundamental para poder ultrapassá-la. Se considerarmos que a ideia de costume e leis são próprias de cada cultura e tem manifestações históricas próprias, cada civilização teve o seu próprio processo civilizador e não poderíamos classificar como superior ou inferior, mas como participe de seu próprio processo de mudança, rumo a uma ideia de progresso moral intrínseca ao próprio conceito.   Problematizar a ideia de uma escala civilizatória para admitir que o processo civilizatório é  necessário para ultrapassar o orgulho do ocidente, sua noção de desenvolvimento material, para adentrar as noções princípios ético-morais,  como esclareceram os espíritos a Kardec.

As Ciências Sociais, nascente no mesmo tempo de Kardec, nasceu sob os auspicio de uma epistemologia colonialista e com forte influência do darwinismo social. Todavia, as Ciências Sociais realizaram sua própria critica, se abriram para as perspectivas pós coloniais. Assim pode ser os estudos espiritas? Essa é a questão posta, as quais não é mais possível jogar para baixo do tapete, mas encará-la como dilema epistemológico, que só poderá ser resolvido com a superação dogmáticas das obras básicas.

A decolonialidade é como uma chave que pode abrir as portas de uma auto reflexão do movimento espirita e ajudar os seus estudiosos a revisitar criticamente a influência do paradigma racionalista da ciência moderna e do positivismo, método hegemônico na ciência do Sec. XIX, para admitir que o Espiritismo é um conhecimento produzido a partir de fontes europeias, com a influência de espíritos cristãos, com os valores ocidentais sobre homem, Deus e sociedade.  

Se no passado o Espiritismo acompanhou as ciências do seu tempo, nos dias atuais, pode abrir-se aos dilemas do sec. XXI, continuar a produção do saber espirita, iniciada por Kardec, entender as emergências do novo tempo, seguindo os passos que o próprio mestre de Lion ensinou, alinhar a Ciência Espirita ás dinâmicas da própria ciência.

A superação da mentalidade colonial abre as portas do pensamento para o encontro de interculturalidade e para o diálogo interreligioso que rejeita o discurso sobre o outro, valoriza a auto determinação identitária. Proporciona um encontro entre sujeitos, suas diferenças, tendo em vista a diversidade do mundo.

A decolonialidade nos leva a compreensão de uma humanidade ampla, com experiências reencarnatórias plurais, vividas em corpos sociais diversos, com visões de mundo distintos e multiculturais. No plano da mediunidade, admite a importância de outras narrativas de espíritos que viveram realidades não europeias e não cristãs, admitindo como espiritualidade válida na grande rede de interconexão existente. Alcançar uma ideia de universalidade constituída por culturas diferentes, respeitadas em suas manifestações. 

A decolonialidade pode lançar luz as práticas espiritas a partir do pressuposto que a ação e o pensamento perfazem o sentido do fazer espirita conjuntamente.  A ação espirita deve ser manifestada com as bases ética do bem comum, do respeito as diferenças dos povos, da democracia, da tolerância e da cultura de paz entre as nações, sem superioridade econômica e ou cultural, estabelecendo a cooperação mutua. Os povos originários, por exemplo, têm muito a ensinar aos povos ocidentais

Um fazer que propõe uma pedagogia, ao invés de uma evangelização que cria a caricatura do “evangelizando”, depositário de um conhecimento, desconsiderando os aprendizados já existentes e a realidade em que vivem. Sujeitos ativos da aprendizagem, com sua bagagem cultura local e cosmologia própria. Uma pedagogia da autonomia, como ensina Paulo Freire, com os valores da emancipação, da troca de saberes e uma construção partilhada do mundo.

Uma ação fraterna e solidária que supere as práticas assistencialistas que objetifica as pessoas. Percebe o outro não como um “necessitado” ou “assistido”, mas como um sujeito de direitos.  Cidadania ativa, transformadora da sociedade rumo a justiça social e a igualdade entre todos. Uma espiritualidade viva que integre o sentir, o pensar e o fazer com bases éticas do cuidado e do bem comum.    

Por fim, é preciso esclarecer que o pensamento decolonial não nos dá um roteiro pronto para os estudos espiritas, mas aponta para as bases epistemológicas, um jeito de pensar que supere o poder de um conhecimento sobre o outro, supremacia religiosa, filosófica ou cientifica, que possa engendrar como únicos ou verdadeiros.

 

Referencias:

KARDEC, Alan. O livro dos Espiritos. Tradução de José Herculano Pires. Lake: São Paulo, 2013.

MINOLO, Walter D. Colonialidade o lado mais obscuro da modernidade. Revista brasileira de ciências sociais - vol. 32 n° 94 – Tradução de Marco Oliveira. 2017.

SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. As ciências encantadas da macumba. Mórula: Rio de Janeiro, 2018. 

SANTOS, Boaventura de Sousa, MENEZES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Edições Elmedina, Coimbra, 2009.

 

 

 

 



[1] Doutora em Sociologia. Professora Universitária. Espirita, membro do Coletivo Girassois – Espirita pelo Bem Comum.

6 comentários:

  1. Respostas às questões que sempre me incomodaram como ser pensante, curioso e reflexivo. Fundamental repensarmos o conceito de "progresso", "civilização" e "modernidade". Excelente artigo!

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  2. Urge descolonizarmos o Espiritismo!! Excelente texto.

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  3. Uma reflexão necessária. Um desafio e tanto.

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  4. Importantes reflexões.

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  5. MARIA LUIZA DE CARVALHO20 de maio de 2022 às 19:09

    Excelente texto! Parabéns!

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O Ágora agradece seu comentário

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