Por: Luiz Gustavo
Reconhecer o pensamento
político da doutrina espírita é essencial para o espírita se posicionar e atuar
em sociedade de modo coerente com sua crença. Kardec escrevia:
O Espiritismo ..., tocando a todos os ramos da economia social, às quais presta o apoio de suas próprias
descobertas, assimilará sempre
todas as doutrinas progressivas, de
qualquer ordem que sejam. (A Gênese,
cap. I, nº 55.)
[Proceder a] uma comunidade
de ideias em moral, em política,
e sobretudo em religião. Tal será a obra
da filosofia nova, o Espiritismo, que vos ensinamos hoje. (Revista Espírita, nov. 1862, “Da origem
da linguagem”.)
E Léon Denis nos deixou esta
definição clara: “O Espiritismo é,
ao mesmo tempo, uma ciência positiva, uma filosofia, uma doutrina social”. (Síntese
espiritualista doutrinal e prática, nº 89.)
Infelizmente, muitos adeptos
desavisados, ou desviados por orientações alheias aos fundamentos doutrinários,
rejeitam pensar a partir do Espiritismo sobre ideias “políticas” ou de
“economia social”, que tocam à doutrina, como diz Kardec. Pior, rechaçam com
veemência aqueles que as abordam, tachando-os injustamente de
“materialistas”... Isso se explica por uma reflexão de séculos. Desde que há
injustiça na sociedade, que há “forte” e “fraco” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 781),
“exploradores” e “explorados” (Allan Kardec, Viagem espírita em 1862, Discursos, nº III, § 2), isto é, a chama
“dialética senhor-escravo”, surge uma mentalidade apropriada aos dominados,
como explicava o filósofo Hegel:
O “escravo” [isto é, o dominado] encontra “ideologias
escravas” que justificam sua posição, incluindo o estoicismo (na qual ele
rejeita a liberdade externa em troca da mental), o ceticismo (na qual ele
duvida do valor da liberdade externa) e a consciência infeliz (na qual ele
encontra a religião e escapa, só que em outro mundo). Hegel detectava essa
relação “senhor-escravo” [dominante-dominado] em diversos lugares – nas guerras
entre estados mais fortes e mais fracos, e nos conflitos entre classes sociais
e outros grupos. (Paul Kelly et al., O livro da política, cap. “Georg Hegel”,
p. 159.)
É fenômeno frequente e antigo
na história, como se vê (desde o período helenístico), a criação de discursos
conformadores, apassivadores, em religiões e filosofias. Os antigos chineses e
indianos aceitavam a dominação dinástica, numa sociedade de castas, valendo-se
da religião hindu, reencarnacionista; com ela, procuravam abster-se da
“liberdade externa”, social, buscando a “liberdade íntima”, a realização do “Eu
interior”. A fuga da atuação social transformadora atingiu parte do pensamento grego
antigo, no estoicismo e no cinismo, assim também do romano. Na Idade Média, na
Europa, a sociedade feudal criou a mentalidade monástica, praticamente
ascética. No século XV, o capitalismo nascente encontrou grande respaldo à
dominação no protestantismo, quando as igrejas reformadas transformaram a
mensagem cristã em ideologia conservadora, conformadora do trabalhador às novas
formas de exploração, tendo em vista a liberdade no “outro mundo”, como diz
Hegel.
A “ideologia escrava” assume
diversas formas e sempre apresenta caráter fortemente individualista e conservador,
pois ela é precisamente a maneira como o dominado se exime da luta por sua
liberdade. Luta que, levada a cabo, promoveria o progresso[1]. Assim, as “ideologias
escravas”, conservadoras e individualistas que são, sempre se opõem às ideias
sociais progressistas.
E entre os espíritas, houve
exceção a isso? De maneira alguma. A doutrina espírita em si, como a de Jesus e
dos profetas antigos, como ainda a filosofia platônica, é eminentemente
progressista, propondo grandes melhorias sociais e claros posicionamentos
políticos. Mas a dominação social cria uma mentalidade apassivadora, uma
“ideologia escrava” também afeita aos espíritas. E encontrou-se para isso um
respaldo no chamado roustainguismo (ou “rustenismo”, como escreve Sérgio
Aleixo), de J. B. Roustaing, primeiro cismático espírita, cuja doutrina,
diversa daquela trazida por Kardec, fazia aceitar cegamente os ditados
mediúnicos e rechaçava a realidade material como imundície. Esse viés ganhou
vulto no movimento espírita e serviu para que inúmeros livros mediúnicos, sem
controle nem coerência doutrinária, formassem, ao longo de décadas, a
mentalidade apassivadora do movimento espírita hegemônico atual: aceitação das
verdades reveladas sem exame e rejeição do pensamento social. Isso fez com que
se recortassem, das obras espíritas fundantes ou clássicas – de Kardec a Denis,
passando por Lachâtre e Mariño –, o que se referisse ao pensamento político ou
social espírita[2].
A regra é: nada de política nos meios espíritas. Só iluminação da alma, pelo
sentimento e pensamento, no oásis de indiferentismo da chamada “reforma íntima”.
A divulgação e o estudo dos assuntos sociais pelos espíritas –
consequentemente, sua participação política – foram substituídos por pregações
emocionais, enlevadas e motivacionais, características da mentalidade escrava
que permeia toda a história e desnatura as doutrinas progressistas. Mensagens
de conformação ao sofrimento, de culpabilização, de medo e de consolação fora
deste mundo dão o tom para a “moral” do espírita, bem recheadas de estorietas e
“casos” romanceados, que supostamente mostram a lei divina chancelando tal
comportamento... Os espíritas, portanto, não ficaram imunes à “ideologia
escrava” apontada por Hegel.
Porém, Kardec e muitos
espíritas pioneiros perspicazes identificavam esse problema já em seu tempo. Vemos
uma excelente denúncia desse modo de pensar inócuo, dessa ideologia escrava – que
tomava muitos meios religiosos e filosóficos do século XVIII, mas que os
espíritas não encampavam ainda –, neste trecho da fala consciente do dirigente
do grupo de operários espíritas, Sr. Desqueyroux, publicado por Kardec:
É preciso confessá-lo, há momentos na vida em que a razão
poderia talvez nos sustentar, mas há outros em que se tem necessidade de toda a
fé que dá o Espiritismo para não sucumbir. Em
vão os filósofos nos vêm pregar uma firmeza estoica; enunciar-nos suas pomposas
máximas; dizer-nos que o sábio não é abalado por nada, que o homem é feito para
se possuir a si mesmo e dominar os acontecimentos da vida; enfadonhas
consolações! Longe de abrandar minha dor, vós a acidificais; em todas as vossas
palavras, não encontramos senão vazio e secura. (...) Sim, nosso mestre [Allan Kardec]; continua tua augusta missão;
continua a nos mostrar essa ciência que
vos é ditada pela bondade divina; que
faz nossa consolação durante esta vida, e que será o sólido pensamento que
nos firmará no momento da morte. Recebe, caro mestre, essas poucas palavras
saídas do coração de teus filhos, pois
és nosso pai de todos; o pai da classe laboriosa e dos aflitos. (Allan
Kardec, Revista Espírita, nov. 1861,
“Banquete – Discurso do Sr. Desqueyroux, mecânico, em nome do grupo dos
operários”.)
Palestras e oradores espíritas
“emocionantes” e preocupados apenas com o íntimo, hoje, cairiam sob a mesma
crítica. Em vista do quanto se disse, e criticando os rumos ideológicos
conservadores, intimistas e fugitivos da política que têm tomado o movimento
espírita hegemônico, o filósofo espírita brasileiro J. Herculano Pires afirma, categórico:
Criaríamos uma ilusão
anti-espírita se acreditássemos na possibilidade dessa abstenção política,
alvitrada por alguns confrades, em diversas ocasiões. (O sentido da vida, cap. “Sociologia espírita”, p. 78.)
Diante de tal cenário, cabe ao
espírita não mais adotar essa atitude frontalmente anti-espírita, não mais
acolher essa ilusão, essa ideologia escrava conservadora apartada dos
fundamentos doutrinários.
Por exemplo. A preservação
ambiental e a suficiência de recursos naturais para suprir a necessidade de
todos é tema tratado na doutrina:
Por que a terra não produz sempre bastante para fornecer o
necessário ao homem? “É que o homem a negligencia, o ingrato! É, no entanto,
uma excelente mãe. Frequentemente
também, ele acusa a natureza do que só é o feito de sua imperícia ou de sua
imprevidência. A terra produziria
sempre o necessário se o homem soubesse se contentar. Se ela não basta a
todas as necessidades, é que o homem emprega no supérfluo o que poderia ser dado
ao necessário. (...) Em verdade vos digo, não é a natureza que é imprevidente,
é o homem que não sabe se regrar.” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 705.)
Eis a resposta à falácia da
escassez econômica, que só pode existir em função do desregramento humano.
Também vemos a produção de
bens e sua distribuição, numa crítica da organização social, ser tratada nos
textos doutrinários:
Os meios de existência fazem frequentemente falta a certos
indivíduos, mesmo no meio da abundância
que os cerca; a que devem atribuir isso? “Ao egoísmo dos homens, que não
fazem sempre o que devem; em seguida, e o mais frequentemente, a eles mesmos.”
(...) Para todo mundo há lugar ao sol,
mas é com a condição de aí tomar o seu, e não o dos outros. A natureza não poderia ser responsável
pelos vícios da organização social e pelas consequências da ambição e do
amor-próprio. (Allan Kardec, Livro dos
Espíritos, nº 707.)
Sem dúvida, atribuir a Deus,
ao “carma” ou à natureza o que é problema
da má organização social é próprio da ideologia escrava, que teima em não
enxergar na injustiça, na opressão econômica e nos desvios morais tornados sistêmicos
a causa imediata, direta e atual da desigualdade, da pobreza e da maior parte
das dores do mundo[3].
Como falamos no início, a doutrina expõe abertamente o problema político,
econômico, social e moral, permitindo que nos movamos em direção à sua solução
coletivamente, como manda a lei do progresso[4]. O mundo há de se
regenerar, o reino de Deus há de vir sobre a Terra, mas com a condição de que
deixemos a indiferença[5] individualista
conservadora e passemos a caminhar como o ser
coletivo que somos[6].
Para isso, é imprescindível
resgatar a essência progressista da doutrina, a mobilização que ela solicita a
todos, de modo a estudar outros tantos problemas de ordem social, econômica e
política à sua luz e nos colocarmos em movimento transformador. Passemos adiantes
dessas ideologias escravas, imobilizadoras, enfadonhas, apassivadoras, baseadas
no rustenismo e contidas nas obras mediúnicas sem exame, e tornemos às fontes
sustentadoras da consciência social do Espírito encarnado na Terra, isto é, às
obras espíritas fundamentais (Kardec) e filosóficas clássicas (Denis, Mariño,
Lachâtre, Herculano Pires, Mariotti, etc.). A fim de que, com resultado de
nossas práticas, o mundo seja não apenas regenerado pela nossa ação, mas
verdadeiramente regenerador dos Espíritos que nele se encarnem[7].
Referências
bibliográficas
ALEIXO,
Sérgio F. O primado de Kardec:
metodologia espírita e cisma rustenista. Rio de Janeiro: ADE-RJ, 2011.
DENIS,
Léon. Síntese espiritualista doutrinal e
prática (1920). Trad. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos. Limeira, SP:
Editora do Conhecimento, 2021.
DENIS,
Léon. Socialismo e espiritismo
(1924). Trad. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos. Limeira, SP: Editora do
Conhecimento, 2018.
KARDEC,
Allan. Le Livre des Esprits:
philosophie spiritualiste [O Livro dos
Espíritos: filosofia espiritualista]. 17.ed. Paris: Didier et Cie.,
1869.
KARDEC,
Allan. Revue Spirite: journal
d’études psychologiques [Revista Espírita:
jornal de estudos psicológicos]. 12 vol. Paris: Bureau
Rue Sainte-Anne, 1858 – Société Anonyme, 1869.
KARDEC,
Allan. Voyage Spirite en 1862 [Viagem espírita em 1862]. Paris: Ledoyen; Bureu de La Revue
Spirite, 1862.
KELLY, Paul [et
al]. O livro da política. Trad. Rafael Longo.
São Paulo: Globo, 2013.
LACHÂTRE,
Maurice. O espiritismo, uma nova
filosofia (1880). Trad. Irene Goodjes. Bragança Paulista, SP: Lachâtre,
2014.
MARIÑO,
Cosme. Conceito espírita do socialismo
(1913). Trad. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos. Limeira, SP: Editora do
Conhecimento, 2022.
MARIOTTI,
Humberto. O homem e a sociedade numa nova
civilização: do materialismo histórico a uma dialética do espírito. Trad.
J. L. Ovando. Prefácio de J. Herculano Pires. São Paulo: Edicel, 1967.
PIRES, J.
Herculano. O reino. 5.ed. São Paulo:
Paideia, 2002.
PIRES, J. Herculano. O sentido da vida. São Paulo: Paideia,
2005.
SANTOS,
Luiz Gustavo O dos. O suposto “alerta de
Kardec sobre política” e a repulsa à política no movimento espírita.
Disponível em: <http://tiny.cc/6ggqu>. Publicado em: 18 mar. 2022. Acesso
em: 07 abr. 2022.
[1] Entretanto, encontrareis ainda entraves
em vossas tentativas para chegar à
melhoria social. É que não se chega
jamais ao resultado sem que a luta venha afirmar os esforços. (Allan Kardec, Revista Espírita, mar. 1868,
Instruções dos Espíritos, “A regeneração”.)
[2] Para maiores desenvolvimentos
sobre a repulsa do movimento espírita hegemônico à política e o suposto
“alerta” de Kardec sobre política, há um texto meu disponível no link: <http://tiny.cc/6ggquz>.
[3] A desigualdade das condições
sociais é uma lei
natural? “Não, ela é obra do homem e não de Deus. ... Essa desigualdade desaparecerá
juntamente com a predominância do orgulho
e do egoísmo.” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 806.)
[4] Em que consiste a
missão dos Espíritos encarnados?
“Instruir os homens, ajudar em seu avanço; melhorar
suas instituições por meios diretos e materiais.” (Allan Kardec, Livro dos
Espíritos, nº 573.)
[5] Ó homens! Refleti que depende de vós apressar o reino de Deus
sobre a Terra ou afastá-lo; que sois responsáveis uns pelos outros; que,
melhorando-vos, trabalhais para a regeneração
da humanidade; a tarefa é grande; a
responsabilidade pesa sobre cada um, e ninguém pode se recusar. (Allan
Kardec, Revista Espírita, dez. 1859,
“Comunicações externas”.)
[6] O
homem não é um ser isolado, é um ser coletivo. O homem é solidário do homem. É em vão que ele procura o complemento do seu ser, quer dizer, a felicidade
em si mesmo ou no que o rodeia isoladamente: ele não pode encontrá-la senão no homem ou na humanidade. Não fazeis, portanto, nada para ser pessoalmente
felizes, enquanto a infelicidade de um
membro da humanidade, de uma parte de vós mesmos, puder vos afligir. (Allan
Kardec, Revista Espírita, nov. 1866,
“A solidariedade”.)
[7] Que o princípio da
caridade e da fraternidade seja a base das instituições sociais, das
relações legais de povo a povo e de
homem a homem, e o homem pensará menos em sua pessoa quando vir que outros
nele pensaram; ele sofrerá a influência moralizadora
do exemplo e do contato. (Allan Kardec, Livro
dos Espíritos, nº 917.)
Excelentes reflexões!
ResponderExcluirMuito Bom artigo. A correlação aceitação do sofrimento, medo,culpa associados à promessa de culpa é perfeita para a dominação. Milhares de ideias vem fortalecer isso,como o discurso de que "quando cada homem se melhorar, a humanidade estará evoluída. O todo por acaso é a soma das partes? Porque isso não pode começar a acontecer agora? O coletivo precisa acontecer daqui a 10mil anos?Quando vc já usufruiu da dominação? São coisas aparentemente simplórias diante de toda a fundamentação do artigo acima, mas não podem deixar de serem combatidos no nosso cotidiano, pois estão num cestos que esconde um réptil.
ResponderExcluirCorrigindo: promessa de consolação
ResponderExcluirCaríssimo Irmão, Luiz! Quanta luz!! Sabemos, mais do que nunca; que o Espiritismo acerca-se da Reforma Social! E as obras Fundamentais (Kardec) unindo-se às clássicas: Temos aí o Espiritismo por meio de Allan Kardec! Ainda que sob ditadura de Napoleão III; jamais furtou-se a que sua missiva prometera: TRAZER O CAMINHO PARA O REINO DE DEUS NA TERRA! Cabe a nós querê-lo! Especialmente aos Espíritas Progressistas! Obrigada sempre!! Obrigada, ÁGORA!
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