quarta-feira, 13 de abril de 2022

Política e Coletividade como Caminhos do Progresso



Por: Luiz Gustavo


Reconhecer o pensamento político da doutrina espírita é essencial para o espírita se posicionar e atuar em sociedade de modo coerente com sua crença. Kardec escrevia:


O Espiritismo ..., tocando a todos os ramos da economia social, às quais presta o apoio de suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam. (A Gênese, cap. I, nº 55.)

[Proceder a] uma comunidade de ideias em moral, em política, e sobretudo em religião. Tal será a obra da filosofia nova, o Espiritismo, que vos ensinamos hoje. (Revista Espírita, nov. 1862, “Da origem da linguagem”.)

E Léon Denis nos deixou esta definição clara: “O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência positiva, uma filosofia, uma doutrina social”. (Síntese espiritualista doutrinal e prática, nº 89.)

Infelizmente, muitos adeptos desavisados, ou desviados por orientações alheias aos fundamentos doutrinários, rejeitam pensar a partir do Espiritismo sobre ideias “políticas” ou de “economia social”, que tocam à doutrina, como diz Kardec. Pior, rechaçam com veemência aqueles que as abordam, tachando-os injustamente de “materialistas”... Isso se explica por uma reflexão de séculos. Desde que há injustiça na sociedade, que há “forte” e “fraco” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 781), “exploradores” e “explorados” (Allan Kardec, Viagem espírita em 1862, Discursos, nº III, § 2), isto é, a chama “dialética senhor-escravo”, surge uma mentalidade apropriada aos dominados, como explicava o filósofo Hegel:


O “escravo” [isto é, o dominado] encontra “ideologias escravas” que justificam sua posição, incluindo o estoicismo (na qual ele rejeita a liberdade externa em troca da mental), o ceticismo (na qual ele duvida do valor da liberdade externa) e a consciência infeliz (na qual ele encontra a religião e escapa, só que em outro mundo). Hegel detectava essa relação “senhor-escravo” [dominante-dominado] em diversos lugares – nas guerras entre estados mais fortes e mais fracos, e nos conflitos entre classes sociais e outros grupos. (Paul Kelly et al., O livro da política, cap. “Georg Hegel”, p. 159.)

É fenômeno frequente e antigo na história, como se vê (desde o período helenístico), a criação de discursos conformadores, apassivadores, em religiões e filosofias. Os antigos chineses e indianos aceitavam a dominação dinástica, numa sociedade de castas, valendo-se da religião hindu, reencarnacionista; com ela, procuravam abster-se da “liberdade externa”, social, buscando a “liberdade íntima”, a realização do “Eu interior”. A fuga da atuação social transformadora atingiu parte do pensamento grego antigo, no estoicismo e no cinismo, assim também do romano. Na Idade Média, na Europa, a sociedade feudal criou a mentalidade monástica, praticamente ascética. No século XV, o capitalismo nascente encontrou grande respaldo à dominação no protestantismo, quando as igrejas reformadas transformaram a mensagem cristã em ideologia conservadora, conformadora do trabalhador às novas formas de exploração, tendo em vista a liberdade no “outro mundo”, como diz Hegel.

A “ideologia escrava” assume diversas formas e sempre apresenta caráter fortemente individualista e conservador, pois ela é precisamente a maneira como o dominado se exime da luta por sua liberdade. Luta que, levada a cabo, promoveria o progresso[1]. Assim, as “ideologias escravas”, conservadoras e individualistas que são, sempre se opõem às ideias sociais progressistas.

E entre os espíritas, houve exceção a isso? De maneira alguma. A doutrina espírita em si, como a de Jesus e dos profetas antigos, como ainda a filosofia platônica, é eminentemente progressista, propondo grandes melhorias sociais e claros posicionamentos políticos. Mas a dominação social cria uma mentalidade apassivadora, uma “ideologia escrava” também afeita aos espíritas. E encontrou-se para isso um respaldo no chamado roustainguismo (ou “rustenismo”, como escreve Sérgio Aleixo), de J. B. Roustaing, primeiro cismático espírita, cuja doutrina, diversa daquela trazida por Kardec, fazia aceitar cegamente os ditados mediúnicos e rechaçava a realidade material como imundície. Esse viés ganhou vulto no movimento espírita e serviu para que inúmeros livros mediúnicos, sem controle nem coerência doutrinária, formassem, ao longo de décadas, a mentalidade apassivadora do movimento espírita hegemônico atual: aceitação das verdades reveladas sem exame e rejeição do pensamento social. Isso fez com que se recortassem, das obras espíritas fundantes ou clássicas – de Kardec a Denis, passando por Lachâtre e Mariño –, o que se referisse ao pensamento político ou social espírita[2]. A regra é: nada de política nos meios espíritas. Só iluminação da alma, pelo sentimento e pensamento, no oásis de indiferentismo da chamada “reforma íntima”. A divulgação e o estudo dos assuntos sociais pelos espíritas – consequentemente, sua participação política – foram substituídos por pregações emocionais, enlevadas e motivacionais, características da mentalidade escrava que permeia toda a história e desnatura as doutrinas progressistas. Mensagens de conformação ao sofrimento, de culpabilização, de medo e de consolação fora deste mundo dão o tom para a “moral” do espírita, bem recheadas de estorietas e “casos” romanceados, que supostamente mostram a lei divina chancelando tal comportamento... Os espíritas, portanto, não ficaram imunes à “ideologia escrava” apontada por Hegel.

Porém, Kardec e muitos espíritas pioneiros perspicazes identificavam esse problema já em seu tempo. Vemos uma excelente denúncia desse modo de pensar inócuo, dessa ideologia escrava – que tomava muitos meios religiosos e filosóficos do século XVIII, mas que os espíritas não encampavam ainda –, neste trecho da fala consciente do dirigente do grupo de operários espíritas, Sr. Desqueyroux, publicado por Kardec:


É preciso confessá-lo, há momentos na vida em que a razão poderia talvez nos sustentar, mas há outros em que se tem necessidade de toda a fé que dá o Espiritismo para não sucumbir. Em vão os filósofos nos vêm pregar uma firmeza estoica; enunciar-nos suas pomposas máximas; dizer-nos que o sábio não é abalado por nada, que o homem é feito para se possuir a si mesmo e dominar os acontecimentos da vida; enfadonhas consolações! Longe de abrandar minha dor, vós a acidificais; em todas as vossas palavras, não encontramos senão vazio e secura. (...) Sim, nosso mestre [Allan Kardec]; continua tua augusta missão; continua a nos mostrar essa ciência que vos é ditada pela bondade divina; que faz nossa consolação durante esta vida, e que será o sólido pensamento que nos firmará no momento da morte. Recebe, caro mestre, essas poucas palavras saídas do coração de teus filhos, pois és nosso pai de todos; o pai da classe laboriosa e dos aflitos. (Allan Kardec, Revista Espírita, nov. 1861, “Banquete – Discurso do Sr. Desqueyroux, mecânico, em nome do grupo dos operários”.)

Palestras e oradores espíritas “emocionantes” e preocupados apenas com o íntimo, hoje, cairiam sob a mesma crítica. Em vista do quanto se disse, e criticando os rumos ideológicos conservadores, intimistas e fugitivos da política que têm tomado o movimento espírita hegemônico, o filósofo espírita brasileiro J. Herculano Pires afirma, categórico:


Criaríamos uma ilusão anti-espírita se acreditássemos na possibilidade dessa abstenção política, alvitrada por alguns confrades, em diversas ocasiões. (O sentido da vida, cap. “Sociologia espírita”, p. 78.)

Diante de tal cenário, cabe ao espírita não mais adotar essa atitude frontalmente anti-espírita, não mais acolher essa ilusão, essa ideologia escrava conservadora apartada dos fundamentos doutrinários.

Por exemplo. A preservação ambiental e a suficiência de recursos naturais para suprir a necessidade de todos é tema tratado na doutrina:


Por que a terra não produz sempre bastante para fornecer o necessário ao homem? “É que o homem a negligencia, o ingrato! É, no entanto, uma excelente mãe. Frequentemente também, ele acusa a natureza do que só é o feito de sua imperícia ou de sua imprevidência. A terra produziria sempre o necessário se o homem soubesse se contentar. Se ela não basta a todas as necessidades, é que o homem emprega no supérfluo o que poderia ser dado ao necessário. (...) Em verdade vos digo, não é a natureza que é imprevidente, é o homem que não sabe se regrar.” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 705.)

Eis a resposta à falácia da escassez econômica, que só pode existir em função do desregramento humano.

Também vemos a produção de bens e sua distribuição, numa crítica da organização social, ser tratada nos textos doutrinários:


Os meios de existência fazem frequentemente falta a certos indivíduos, mesmo no meio da abundância que os cerca; a que devem atribuir isso? “Ao egoísmo dos homens, que não fazem sempre o que devem; em seguida, e o mais frequentemente, a eles mesmos.” (...) Para todo mundo há lugar ao sol, mas é com a condição de aí tomar o seu, e não o dos outros. A natureza não poderia ser responsável pelos vícios da organização social e pelas consequências da ambição e do amor-próprio. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 707.)

Sem dúvida, atribuir a Deus, ao “carma” ou à natureza o que é problema da má organização social é próprio da ideologia escrava, que teima em não enxergar na injustiça, na opressão econômica e nos desvios morais tornados sistêmicos a causa imediata, direta e atual da desigualdade, da pobreza e da maior parte das dores do mundo[3]. Como falamos no início, a doutrina expõe abertamente o problema político, econômico, social e moral, permitindo que nos movamos em direção à sua solução coletivamente, como manda a lei do progresso[4]. O mundo há de se regenerar, o reino de Deus há de vir sobre a Terra, mas com a condição de que deixemos a indiferença[5] individualista conservadora e passemos a caminhar como o ser coletivo que somos[6].

Para isso, é imprescindível resgatar a essência progressista da doutrina, a mobilização que ela solicita a todos, de modo a estudar outros tantos problemas de ordem social, econômica e política à sua luz e nos colocarmos em movimento transformador. Passemos adiantes dessas ideologias escravas, imobilizadoras, enfadonhas, apassivadoras, baseadas no rustenismo e contidas nas obras mediúnicas sem exame, e tornemos às fontes sustentadoras da consciência social do Espírito encarnado na Terra, isto é, às obras espíritas fundamentais (Kardec) e filosóficas clássicas (Denis, Mariño, Lachâtre, Herculano Pires, Mariotti, etc.). A fim de que, com resultado de nossas práticas, o mundo seja não apenas regenerado pela nossa ação, mas verdadeiramente regenerador dos Espíritos que nele se encarnem[7].

 

Referências bibliográficas

ALEIXO, Sérgio F. O primado de Kardec: metodologia espírita e cisma rustenista. Rio de Janeiro: ADE-RJ, 2011.

DENIS, Léon. Síntese espiritualista doutrinal e prática (1920). Trad. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos. Limeira, SP: Editora do Conhecimento, 2021.

DENIS, Léon. Socialismo e espiritismo (1924). Trad. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos. Limeira, SP: Editora do Conhecimento, 2018.

KARDEC, Allan. Le Livre des Esprits: philosophie spiritualiste [O Livro dos Espíritos: filosofia espiritualista]. 17.ed. Paris: Didier et Cie., 1869.

KARDEC, Allan. Revue Spirite: journal d’études psychologiques [Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos]. 12 vol. Paris: Bureau Rue Sainte-Anne, 1858 – Société Anonyme, 1869.

KARDEC, Allan. Voyage Spirite en 1862 [Viagem espírita em 1862]. Paris: Ledoyen; Bureu de La Revue Spirite, 1862.

KELLY, Paul [et al]. O livro da política. Trad. Rafael Longo. São Paulo: Globo, 2013.

LACHÂTRE, Maurice. O espiritismo, uma nova filosofia (1880). Trad. Irene Goodjes. Bragança Paulista, SP: Lachâtre, 2014.

MARIÑO, Cosme. Conceito espírita do socialismo (1913). Trad. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos. Limeira, SP: Editora do Conhecimento, 2022.

MARIOTTI, Humberto. O homem e a sociedade numa nova civilização: do materialismo histórico a uma dialética do espírito. Trad. J. L. Ovando. Prefácio de J. Herculano Pires. São Paulo: Edicel, 1967.

PIRES, J. Herculano. O reino. 5.ed. São Paulo: Paideia, 2002.

PIRES, J. Herculano. O sentido da vida. São Paulo: Paideia, 2005.

SANTOS, Luiz Gustavo O dos. O suposto “alerta de Kardec sobre política” e a repulsa à política no movimento espírita. Disponível em: <http://tiny.cc/6ggqu>. Publicado em: 18 mar. 2022. Acesso em: 07 abr. 2022.

 



[1] Entretanto, encontrareis ainda entraves em vossas tentativas para chegar à melhoria social. É que não se chega jamais ao resultado sem que a luta venha afirmar os esforços. (Allan Kardec, Revista Espírita, mar. 1868, Instruções dos Espíritos, “A regeneração”.)

[2] Para maiores desenvolvimentos sobre a repulsa do movimento espírita hegemônico à política e o suposto “alerta” de Kardec sobre política, há um texto meu disponível no link: <http://tiny.cc/6ggquz>.

[3] A desigualdade das condições sociais é uma lei natural? “Não, ela é obra do homem e não de Deus. ... Essa desigualdade desaparecerá juntamente com a predominância do orgulho e do egoísmo.” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 806.)

[4] Em que consiste a missão dos Espíritos encarnados? “Instruir os homens, ajudar em seu avanço; melhorar suas instituições por meios diretos e materiais.” (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 573.)

[5] Ó homens! Refleti que depende de vós apressar o reino de Deus sobre a Terra ou afastá-lo; que sois responsáveis uns pelos outros; que, melhorando-vos, trabalhais para a regeneração da humanidade; a tarefa é grande; a responsabilidade pesa sobre cada um, e ninguém pode se recusar. (Allan Kardec, Revista Espírita, dez. 1859, “Comunicações externas”.)

[6] O homem não é um ser isolado, é um ser coletivo. O homem é solidário do homem. É em vão que ele procura o complemento do seu ser, quer dizer, a felicidade em si mesmo ou no que o rodeia isoladamente: ele não pode encontrá-la senão no homem ou na humanidade. Não fazeis, portanto, nada para ser pessoalmente felizes, enquanto a infelicidade de um membro da humanidade, de uma parte de vós mesmos, puder vos afligir. (Allan Kardec, Revista Espírita, nov. 1866, “A solidariedade”.)

[7] Que o princípio da caridade e da fraternidade seja a base das instituições sociais, das relações legais de povo a povo e de homem a homem, e o homem pensará menos em sua pessoa quando vir que outros nele pensaram; ele sofrerá a influência moralizadora do exemplo e do contato. (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 917.)

4 comentários:

  1. Muito Bom artigo. A correlação aceitação do sofrimento, medo,culpa associados à promessa de culpa é perfeita para a dominação. Milhares de ideias vem fortalecer isso,como o discurso de que "quando cada homem se melhorar, a humanidade estará evoluída. O todo por acaso é a soma das partes? Porque isso não pode começar a acontecer agora? O coletivo precisa acontecer daqui a 10mil anos?Quando vc já usufruiu da dominação? São coisas aparentemente simplórias diante de toda a fundamentação do artigo acima, mas não podem deixar de serem combatidos no nosso cotidiano, pois estão num cestos que esconde um réptil.

    ResponderExcluir
  2. Luciana Batista de Lima11 de agosto de 2022 às 17:13

    Caríssimo Irmão, Luiz! Quanta luz!! Sabemos, mais do que nunca; que o Espiritismo acerca-se da Reforma Social! E as obras Fundamentais (Kardec) unindo-se às clássicas: Temos aí o Espiritismo por meio de Allan Kardec! Ainda que sob ditadura de Napoleão III; jamais furtou-se a que sua missiva prometera: TRAZER O CAMINHO PARA O REINO DE DEUS NA TERRA! Cabe a nós querê-lo! Especialmente aos Espíritas Progressistas! Obrigada sempre!! Obrigada, ÁGORA!

    ResponderExcluir

O Ágora agradece seu comentário

Não há colônias espirituais, segundo a codificação

Muito se trata do que se passa nas chamadas “colônias” espirituais, no Movimento Espírita Brasileiro hegemônico, ou de como se vai para lá, ...