Muito se trata
do que se passa nas chamadas “colônias” espirituais, no Movimento Espírita Brasileiro
hegemônico, ou de como se vai para lá, sempre buscando justificar os relatos
espirituais sobre elas.
Com efeito, a
ideia de “cidades” ou “regiões” espirituais, etéreas, remonta à tradição religiosa
antiga (Jerusalém celestial, Campos Elíseos, Ilha dos Bem-aventurados, andares
do Inferno e do Paraíso dantescos, etc.), sendo retomadas por alguns médiuns em
tempos mais próximos do surgimento do Espiritismo, como Swedenborg.
No entanto,
como isso foi tratado por Kardec? Observando as obras fundamentais, vemos ali
não a ausência do assunto, como se costuma pensar; ao contrário, constatamos a presença de relatos sobre essas
“cidades” do além, por Espíritos e por médiuns extáticos, acompanhados da
argumentação de Kardec pela recusa da
realidade das mesmas.
Neste
artigo, veremos as tentativas feitas pelos espíritas para respaldar em
conceitos kardecianos a realidade das “colônias”, decerto infrutíferas. Depois,
identificaremos a qual matriz de pensamento espírita cabe a admissão dessas
“cidades” e a sua razão de ser, bem como a razão da sua inexistência na matriz
kardeciana. Por fim, conheceremos textos seletos de Kardec tratando do assunto
e seus comentários a respeito. Importa conhecermos a visão trazida por Kardec
sobre esse tema, de vez que – havendo o mau hábito da aceitação muitas vezes
cega de relatos espirituais nos meios espíritas atuais –, o crivo racional,
para todo espírita, é mais que bem-vindo: faz-se sempre necessário.
1. Tentativas infrutíferas de respaldar as “colônias” nas obras de
Kardec
Costuma-se
forçar um respaldo para as “colônias espirituais” em três conteúdos da doutrina
espírita:
1) Mundos transitórios. As
“colônias”, segundo seus defensores, teriam relação com os “mundos
transitórios” (Livro dos Espíritos,
questões 234 a 236). Assim, na edição comemorativa de 150 anos de O Livro dos Espíritos, pela editora FEB,
o verbete “Colônias espirituais” remete aos “mundos transitórios”.
Isso
é simplesmente falso. Basta ler e se verificará que os mundos transitórios se referem a planetas não habitados por vida
biológica, em que os Espíritos errantes aguardam enquanto planam pelo espaço. Interpretar
que esses Espíritos construam “colônias espirituais” ao redor desses mundos implica
em extrapolação das informações do texto doutrinário. Nada sobre isso é dito ou
sugerido aí. Ademais, contradiz o que ele diz em outras passagens, como
veremos.
2) Sociedades ou famílias de espíritos. As
“colônias” seriam, ainda, para seus defensores, as chamadas “sociedades” ou
“famílias” de Espíritos que se juntam por afinidade (indicadas no Livro dos Espíritos, questões 278 e
279).
Na verdade,
essas sociedades, grupos ou famílias, que os Espíritos formam por afinidade de
gostos, nada mais são do que isto mesmo: reuniões de Espíritos. Nada implica ou
sugere a construção de casas, campos, cidades ou coisas que o valham, para
essas reuniões acontecerem. A palavra “sociedade”, na doutrina, não é tomada no
sentido de sociedade urbanizada ou cidade, mas no sentido análogo ao de uma
“sociedade científica”, um grupo de amantes de certos assuntos que se associam,
sem qualquer estrutura física ou fluídica exigida. Mais uma vez, aí nada se trata
das tais “colônias”.
3) Laboratório do mundo invisível. Costuma-se
também justificar a possibilidade das “colônias” pela explicação dada no
“Laboratório do mundo invisível” (Livro
dos Médiuns, parte II, cap. VIII), para construção das “cidades”.
Mas é patente
que esse capítulo visa apenas explicar fenômenos mediúnicos de materialização e
aparição. Explica-se que as vestimentas apresentadas pelos Espíritos quando
aparecem, ou os objetos que carregam, são extensões dos seus perispíritos, que
eles podem modelar para fins unicamente de reconhecimento.
Não formam “cidades” com os fluidos. O capítulo nada diz, nem aventa a
possibilidade, de cidades fluídicas permanecerem pairando no mundo espírita,
para satisfação das “necessidades” físicas dos Espíritos. Muito menos “regiões”
como “umbral”, para sofrimento. Não é isso o que a doutrina ensina. Se os
Espíritos materializados mantêm certas “necessidades”, isso se deve a uma ilusão, que eles devem se esforçar por
vencer, não alimentá-las ainda mais. (Voltaremos a esse tópico adiante.)
2. A matriz espírita americana, que não aceita a reencarnação, é que exige,
por isso, a evolução dos Espíritos em “cidades” espirituais
As “esferas ou
cidades espirituais” servem à matriz americana, que nega a reencarnação. Portanto,
fica-se obrigado a crer que a evolução se faz na erraticidade. Por essa razão,
transferem-se as experiências evolutivas para “esferas” ou “cidades”
espirituais, que sirvam de ponte de aperfeiçoamento (e isso, não sem incorrer
em contradições ou problemas).
Lemos em
Kardec:
A reencarnação é, para
eles [espíritas americanos], uma necessidade na qual não pensam senão quando ela chega; eles sabem que o
Espírito progride, mas de que maneira? É para eles um problema. Então, se lhes
perguntardes, eles vos falarão de sete céus superpostos como andares; há mesmo
os que vos falarão da esfera do fogo,
da esfera das estrelas,
depois, da cidade das flores, da dos eleitos. (Allan Kardec, Livro
dos Médiuns, abr. 1869, “Profissão de fé espírita americana”. Grifo nosso,
assim nas passagens seguintes.)
A
doutrina codificada por Kardec não necessita dessa solução problemática, porque
resolve a questão admitindo a reencarnação
nos mundos como escola do progresso:
A única diferença [para o espiritismo americano] consiste em que o
Espiritismo europeu [de Kardec] admite essa pluralidade
de existências sobre a Terra, até que o Espírito nela tenha adquirido o
grau de adiantamento intelectual e moral que comporta este globo, após o que o
deixa por outros mundos, onde adquire
novas qualidades e novos conhecimentos. (Allan Kardec, Revista
Espírita, abr. 1869, “Profissão de fé espírita americana”.)
3. A recusa da ideia de cidades espirituais na obra de Kardec
Às vezes,
tenta-se levianamente defender a ideia de que Kardec passou ao largo das ditas
“cidades” ou “colônias” espirituais; que esses assuntos deveriam ser expostos
depois da codificação, porque, na época, não se estava “preparado” para tais
revelações... Ora, nada disso! Essas revelações, como lembramos acima, não
constituem nenhuma novidade, pois são o paradigma antigo[1], superado pelo Espiritismo.
Quanto a Kardec, seu material de estudo foi vastíssimo; seus métodos, suas
observações e comparações, para estabelecer a concordância dos Espíritos,
permanecem ainda inigualadas:
Interrogamos milhares deles,
tendo pertencido a todos os postos da
sociedade, a todas as posições
sociais; estudamo-los em todos
os períodos de sua vida espírita, desde o instante em que deixaram seu corpo;
seguimo-los passo a passo nessa vida
de além-túmulo para observar as mudanças que se operavam neles, em suas
ideias, em suas sensações (...). (Allan Kardec, Livro dos Espíritos, nº 257.)
Em nossa posição, recebendo as comunicações
de perto de mil centros espíritas sérios, disseminados sobre os diversos pontos
do globo, estamos em condições de ver os princípios sobre os quais essa
concordância se estabelece: é essa observação que nos tem guiado até este dia,
e é igualmente a que nos guiará nos novos campos que o Espiritismo é chamado a
explorar. (Allan Kardec, Evangelho
segundo o Espiritismo, Introdução, nº II.)
Aqui, vimos
que Kardec, sim, conheceu bem esse tema. Sabia que essa era a matriz de
pensamento americana. Mais que isso, sabia
que era a maneira pagã e cristã de pensar a “materialidade” das
penas, aliás, comentada e refutada por ele em O Céu e o Inferno, primeira parte.
Kardec recebeu
diversas comunicações sobre o assunto, mas, com base na razão e no controle
universal, recusou esse
“ensinamento”, mostrando, para tanto, os problemas que o envolvem. Vejamos como
o codificador trata do assunto, em algumas de suas passagens brilhantes.
Kardec comenta
as impressões do Espírito Voltaire acerca de construções espirituais, recusando-as
como um caso de “influência das ideias terrestres” sobre as ideias espirituais:
Voltaire: “(...) Era, tenho dito, como zombeteiro e lançando o desafio
que abordei o mundo espírita. Primeiro, fui conduzido longe das habitações dos Espíritos, e
percorri o espaço imenso. Em seguida, foi-me permitido lançar o olho sobre as construções maravilhosas das moradas espíritas
e, com efeito, elas me pareceram surpreendentes; fui impelido, cá e lá, por uma
força irresistível; devi ver, e ver até que a minha alma fosse transbordada pelos
esplendores, e esmagada diante do poder que controlava tais maravilhas. Enfim, fui
querer me esconder e me encolher nas cavidades
dos rochedos, mas não o pude. (...) Eu estava, enfim, de tal modo caído de cansaço e de humilhação,
que me foi permitido me juntar a alguns dos habitantes. Foi daqui que pude contemplar
a posição que me fizera sobre a Terra, e a que disso resultava para mim no
mundo espírita. Deixo-vos crer se essa apreciação devia me sorrir. Uma
revolução completa, uma convulsão de cima a baixo teve lugar em meu organismo espírita, e, de mestre
que eu fora, tornei-me o aluno mais ardente. (...)”
Nota [de Kardec]: (...) Jamais, talvez, um quadro mais grandioso e mais impressionante foi dado do
mundo espírita, e da influência das
ideias terrestres sobre as ideias de além-túmulo. (Allan Kardec, Revista Espírita, set. 1859, “Confissão
de Voltaire”.)
Observando
as condições materiais do paraíso islâmico, Kardec comenta:
Tal é o famoso paraíso de Maomé sobre o qual tanto se divertiu, e que nós seguramente não procuraremos justificar.
Diremos somente que estava em harmonia
com os costumes desses povos, e que devia afagá-los bem mais que a
perspectiva de um estado puramente espiritual, por esplêndido que fosse, porque
eles eram demasiado materiais
para compreendê-lo e lhe apreciarem o valor; era-lhes preciso alguma coisa de
mais substancial, e pode-se dizer que eles foram servidos a contento.
Notar-se-á, sem dúvida, que os rios,
as fontes, os frutos abundantes e as sombras nele desempenham um grande
papel, pois está aí o que falta sobretudo aos habitantes do deserto. Leitos macios e roupas de seda,
para pessoas habituadas a deitar sobre a terra e vestidas de grossas coberturas
em pele de camelo, deviam também ter um grande atrativo. Por ridículo que tudo isso nos pareça, pensemos no meio onde
vivia Maomé e não o repreendamos demais, uma vez que, com a ajuda desse atrativo [fr.: appât, “isca, chamariz”], ele soube
tirar um povo da barbárie e dele fazer uma grande nação. (Allan Kardec, Revista
Espírita, nov. 1866, “Maomé e o islamismo, 2º artigo”.)
As partes destacadas mostram que, para Kardec, coisas como roupas,
fontes, frutos, camas, etc. na erraticidade são, hoje, algo “ridículo”, sendo próprio
da crença materializada de outrora. Ele diz que “seguramente não pretende justificar” a existência dessas coisas no
além – também nós não deveríamos fazê-lo. Além disso, que tudo não passava de
um “atrativo” ou para levar um povo materializado ao progresso. Nada aí é
aceito ou justificado como real; antes, tudo passa apenas por crenças baseadas
em costumes próprios ao meio material em que o povo vivia então.
Seguindo o
tema, a doutrina trazida nas obras de Kardec ensina que não há lugares circunscritos (como deveriam ser as tais “colônias”,
ou “regiões” como “umbral” etc.), nem para alegrias, nem para sofrimentos dos
Espíritos. Como se sabe, eles estão por toda parte e portam consigo seu estado
feliz ou infeliz, onde estiverem:
As penas e os gozos são inerentes ao grau de perfeição dos
Espíritos; cada um tira de si mesmo o princípio de sua própria felicidade ou
infelicidade; e, como eles estão por
toda parte, nenhum lugar circunscrito nem fechado é afeito a um antes
que ao outro. (Allan Kardec, Livro dos
Espíritos, questão 1.012.)
O sofrimento estando ligado à imperfeição, como o gozo o está à
perfeição, a alma leva em si mesma seu próprio castigo por toda parte onde se
encontra: não há necessidade para isso
de um lugar circunscrito. (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, 1ª parte, cap. VII, “Código Penal da vida
futura”, 5º.)
Onde
ficam, portanto, os Espíritos? Ora: no
espaço, havendo apenas a limitação de sua vontade, condicionada ao seu
adiantamento:
Oh! decerto, não sou mais de vosso mundo. (...) Sou Espírito; minha pátria é o espaço. (Allan
Kardec, O Céu e o Inferno, 2ª parte,
cap. II, “Sr. Sanson”, nº 2.)
Nada mais de corpo
material, nada mais de vida terrestre: a
vida imortal! Nada mais de homens carnais, mas formas leves, Espíritos que deslizam de todos os lados, giram
em torno de vós e que não
podeis abarcar todos com o olhar, pois é
no infinito que eles flutuam! Ter diante
de si o espaço e poder transpô-lo só pela vontade; comunicar-se pelo
pensamento com tudo o que vos rodeia! Amigo, que vida nova! (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, 2ª parte, cap. II, “Sr.
Van Durst”.)
Léon Denis
responde, mais tarde, de modo bem direto:
16. Onde estava a alma antes de se encarnar em um corpo?
R. – No espaço; o espaço é
o lugar dos Espíritos, como o mundo terrestre é o lugar dos corpos.
18. O que é o espaço?
R. – É a imensidade, quer dizer, o infinito onde se movem os mundos, a esfera sem limites que
nosso pensamento limitado não pode nem conceber nem definir. (Léon Denis, Síntese espiritualista doutrinal e prática,
cap. I, nºs 16 e 18.)
Eles ficam
no espaço; mas também ficam por aqui, entre nós, sem obstrução.
[Os Espíritos são] as almas mesmas daqueles que viveram sobre a
Terra, onde deixaram seu envoltório corporal, que povoam os espaços, nos
rodeiam e nos acotovelam sem cessar. (Allan Kardec, O que é o Espiritismo, cap. I, Primeiro
diálogo, “Origem das ideias espíritas modernas”.)
Pelo conhecimento que o Espiritismo nos dá da natureza dos
Espíritos, sabe-se que um Espírito pode estar
entre nós, não somente pelo pensamento, mas de sua pessoa, com a ajuda de seu corpo etéreo, que dele
faz uma individualidade distinta. Um Espírito pode, portanto, habitar entre nós após a morte, tão
bem quanto quando vivo em seu corpo; e melhor ainda, uma vez que pode vir e se ir quando quer. Nós temos, assim, uma multidão de
comensais invisíveis, uns indiferentes, outros que nos são apegados
pela afeição. (Allan Kardec, O Céu e o
Inferno, 2ª parte, cap. II, “Jobard”, nº 4.)
As
referências que as obras mediúnicas atuais, pretensamente
alinhadas com Kardec, trazem sobre as tais colônias ou “cidades” espirituais
nos dizem que lá persistem ainda necessidades “físicas” para os Espíritos, que
as sentem no perispírito; que essas “cidades” constituem lugares circunscritos;
que, uma vez nessas “colônias”, há para muitos Espíritos vários impedimentos para
irem a outros lugares ou mesmo para visitarem seus afins; que os Espíritos
sofrem de fadiga e de enfermidades diversas no perispírito, que se submetem a “trabalhos”,
além de materializados, constrangedores e desagradáveis; que há “espíritos” de
animais lá, etc. (Ver Nosso Lar e
assemelhados). Pois bem, tudo isso vem expressamente
negado na obra de Allan Kardec.
É preciso
dizer logo que não há necessidades “físicas” na erraticidade. Sequer há uma
“fisiologia” do perispírito. É o que se constata pela concordância universal e
pela lógica. Os Espíritos, quando falam de “fome, sede, frio, calor, fadiga
etc.”, falam por repercussão moral ou lembrança (reminiscência); essas
sensações não são uma realidade como em nós, encarnados. São, sim, “ilusões”,
que importa desfazer pelo esclarecimento, ainda que sem fruto imediato, e não
alimentar ou administrar:
“... Mas tive também sob os olhos o espetáculo atroz da fome entre os Espíritos.
Encontrei lá em cima numerosos desses infelizes, que morreram nas torturas da
fome, procurando ainda satisfazer em
vão uma necessidade imaginária,
lutando uns contra os outros para se arrancar um retalho de comida que se furta
sob suas mãos ... Numerosos desses infelizes me reconheceram, e seu primeiro
grito foi: Pão! É em vão que eu
tentava lhes fazer compreender sua situação; eles estavam surdos às minhas consolações.”
(...) A quem quer que não conheça a verdadeira constituição do
mundo invisível, parecerá estranho que Espíritos que, segundo eles, são seres
abstratos, imateriais, indefinidos, sem corpo, sejam vítimas dos horrores da
fome; mas o espanto cessa quando se sabe (...) que, deixando o seu envoltório
carnal, certos Espíritos
continuam a vida terrena com as mesmas vicissitudes, durante um tempo mais ou menos longo. Isto parece singular,
mas assim é, e a observação nos ensina que essa é a situação dos Espíritos que
viveram mais a vida material do que a vida espiritual, situação por vezes
terrível, porque a ilusão das
necessidades da carne se faz sentir, e eles têm todas as angústias de uma necessidade impossível de saciar.
O suplício mitológico de Tântalo, entre os antigos, acusa um conhecimento mais
exato do que se supõe do estado do
mundo de além-túmulo, sobretudo mais exato do que entre os modernos. (Allan
Kardec, Revista Espírita, jun. 1868, “Morte
do Sr. Bizet, cura de Sétif – A fome entre os Espíritos”.)
Para
melhor me expressar, compararei a morte a uma viagem (como Kardec fazia muitas
vezes). Se não temos o mapa nem estudamos sobre o lugar para onde vamos, a
confusão ao chegar será grande. Tal é o estado do materialista, que sequer pensa
no mundo espírita. Por outro lado, ter um
mapa errado e estudar informações equivocadas sobre o destino produzirá
confusão e sofrimento não menos penosos! É o caso dos que “procuram informações”,
sem controle, sobre o mundo espírita. A orientação espírita é: estudar, com
lógica e exame constantes, a partir das informações mais garantidas, passadas
pelo controle.
Sendo
assim, importa que se busque desiludir os Espíritos que ainda se acham em
confusão (por exemplo, sentindo necessidades e sensações corporais). O ideal,
porém, é que eles busquem se esclarecer: largar as ilusões é passo sofrível,
mas possível e desejável, pelo estudo, mesmo na erraticidade, como se lê nesses
exemplos:
“Meus amigos, já sofri muito
repassando as ilusões com as quais alimentei meu espírito: não vos enganeis. Eu aprendera
muito, e, posso dizê-lo, minha inteligência, pronta a se apropriar desses
vastos e diversos estudos [espíritas], guardara de minha última encarnação o amor do maravilhoso e do composto,
haurido nas imaginações populares. Ocupei-me ainda pouco das questões puramente intelectuais no sentido em que
o tomais.” (Allan Kardec, O Céu e o
Inferno, parte II, cap. II, “Jobard”.)
“Eu vos espero [membros da Sociedade Espírita de Paris], e durante
o tempo em que estiverdes sobre a Terra, virei
frequentemente me instruir perto de vós, pois não sei ainda tanto
quanto muitos dentre vós; mas o
aprenderei depressa aqui onde não tenho mais entraves que me retenham e
onde não tenho mais idade que enfraqueça minhas forças. Aqui se vive em linhas gerais [fr.: à grands traits, lit.: em grandes traços, sem pormenores] e se
avança.” (Allan Kardec, O Céu e o Inferno,
parte II, cap. II, “Sr. Van Durst”.)
Sobre a
questão do perispírito, é preciso reconhecer que nele não há “órgãos”, nem
sensoriais (porque, na erraticidade, ele todo sente, a sensação sendo “geral”),
nem fisiológicos; não se deve confundir as “sensações” do Espírito com as do
corpo. Isso é bastante frisado, repetidamente, na codificação:
[O perispírito] é, além disso, o agente das sensações exteriores.
No corpo, os órgãos, servindo-lhe de condutos, localizam essas sensações.
Destruído o corpo, elas se tornam
gerais. Daí o Espírito não
dizer que sofre mais da cabeça do que dos pés, ou vice-versa. Não se confundam, porém, as
sensações do perispírito, que se tornou independente, com as do corpo. Estas últimas só por termo de comparação as
podemos tomar e não por identidade.
Libertos do corpo, os Espíritos podem sofrer, mas esse sofrimento não é corporal. (...) A dor que
sentem não é, pois, uma dor física
propriamente dita: é um vago sentimento íntimo, que o próprio espírito nem sempre compreende bem, precisamente
porque a dor não se acha localizada
e porque não a produzem agentes exteriores; é mais uma reminiscência do que uma realidade,
reminiscência, porém, igualmente penosa. ... Todos [os Espíritos], porém, assim
os inferiores como os superiores, não ouvem, nem sentem, senão o que queiram
ouvir ou sentir. Não possuindo órgãos
sensitivos, eles podem, livremente, tornar ativas ou nulas suas percepções. Uma
só coisa são obrigados a ouvir: os conselhos dos Espíritos bons. (Allan Kardec,
Livro dos Espíritos, nº 257, §2,6).
[Os Espíritos] não podem sentir a fadiga, como a entendeis;
conseguintemente, não precisam de descanso corporal, como vós, pois que não possuem órgãos cujas forças devam ser
reparadas. O Espírito, entretanto, repousa, no sentido de não estar em
constante atividade. Ele não atua
materialmente. Sua ação é toda intelectual e inteiramente moral o seu
repouso. (Allan Kardec, Livro dos
Espíritos, nº 254.)
O Espírito, apanhado no imprevisto, está como que atordoado; mas,
sentindo que pensa, acredita
que ainda está vivo, e essa ilusão
dura até que se tenha dado conta de
sua posição. Esse estado intermediário entre a vida corporal e a vida
espiritual é um dos mais interessantes de estudar, porque apresenta o singular
espetáculo de um Espírito que toma seu
corpo fluídico pelo seu corpo material, e que experimenta todas as sensações da
vida orgânica. Ele oferece uma variedade infinita de nuanças segundo o caráter, os conhecimentos e o
grau de adiantamento moral do Espírito. (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, parte II, cap. I, nº 12.)
O envoltório semimaterial [perispírito] do Espírito constitui uma
espécie de corpo, de forma definida, limitada e análoga à do corpo físico. Mas
esse corpo não tem os nossos órgãos
e não pode sentir todas as nossas impressões. ... Há sensações que têm por
fonte o próprio estado dos nossos órgãos. Ora, as necessidades inerentes ao
corpo não podem se verificar desde que
não existe mais o corpo. Assim, pois, o Espírito não experimenta fadiga, nem necessidade de repouso ou de alimentação, porque não tem nenhuma perda a reparar.
Ele não é acometido por nenhuma de nossas enfermidades. As necessidades do
corpo determinam necessidades sociais,
que para eles não existem. (Allan Kardec, Revista Espírita, abr. 1859, “Quadro da vida espírita”, §6 e 10).
Assim,
todos os motivos que servem de pretexto e/ou que compõem o quadro da vida
espiritual em “cidades” ou “colônias” vêm diretamente desconstruídos nas obras
fundamentais, como nesta passagem bem completa:
Que se ganha, então, em estar no
outro mundo, dirão certas pessoas, se aí não se goza do repouso? A isso
lhes perguntaremos primeiro se não é nada não
ter mais nem cuidados, nem as
necessidades, nem as
enfermidades da vida, ser
livre, e poder, sem fadiga,
percorrer o espaço com a
rapidez do pensamento, ir ver seus
amigos a toda hora, a qualquer
distância em que se encontrem? Depois acrescentaremos: Quando
estiverdes no outro mundo, nada vos
forçará a fazer o que quer que seja; sereis perfeitamente livres para permanecer numa beata ociosidade
tão longo tempo quanto isso vos aprouver; mas cansareis logo desse repouso
egoísta. (...) É assim que a atividade
espiritual não é um constrangimento; ela é uma necessidade, uma
satisfação para os Espíritos que
buscam as ocupações em relação com seus gostos e aptidões, e escolhem
de preferência as que podem ajudar em seu adiantamento. (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, 2ª parte, cap. II, “O
Doutor Demeure”, nota.)
Note-se
que essas atividades espirituais não
são as quiméricas atividades “institucionais” ou “sociais”, de uma “cidade” ou
“região” do além, mas aquelas bem descritas nas obras de Allan Kardec: Livro dos Espíritos, parte II, cap. X,
“Ocupações e missões dos Espíritos”, nºs 558 a 569; também, sinteticamente: O Céu e o Inferno, parte I, cap. III, nº
13.
Prosseguindo
no assunto, Kardec explica que a materialidade das descrições do mundo espírita,
feitas pelos Espíritos na erraticidade, se deve à sua inferioridade ou ignorância.
Não podem ser aceitas sob palavra, pois os Espíritos falam a partir das ideias materiais que tinham quando
encarnados:
Quando são inferiores, e não completamente desmaterializados, eles
[os Espíritos] conservam uma parte de
suas ideias terrestres, e rendem suas impressões pelos termos que lhes são
familiares. Encontram-se num meio que lhes permite sondar apenas
medianamente o porvir, é o que causa que frequentemente Espíritos errantes, ou recentemente
desprendidos, falem como o teriam
feito em sua vida. (Allan Kardec, Livro
dos Espíritos, questão 1.014.)
“(...) Quando se pergunta a um Espírito se ele está no inferno; se é
infeliz, dirá sim, porque, para ele, inferno
é sinônimo de sofrimento; mas ele sabe muito bem que não é uma fornalha. Um
pagão teria dito que estava no Tártaro.”
Dá-se o mesmo com outras expressões análogas, tais como as de cidade das flores, cidade dos eleitos, primeira, segunda ou terceira esfera,
etc., que não são senão alegorias empregadas por certos Espíritos, seja como figuras, seja, algumas vezes,
por ignorância da realidade das coisas e mesmo das mais simples noções
científicas. (Allan Kardec, Livro
dos Espíritos, questão 1.017.)
Quanto a
“espíritos” de animais passeando por esses supostos ambientes da erraticidade,
ou perambulando entre nós ou em qualquer parte no mundo dos Espíritos, não
podem existir, conforme se lê expressamente no Livro dos Médiuns:
“Após a morte do animal, o princípio inteligente que estava nele
está num estado latente; ele é imediatamente utilizado por certos Espíritos
encarregados desse cuidado para animar novos seres nos quais continua a obra de
sua elaboração. Assim, no mundo dos
Espíritos, não há Espíritos de animais errantes, mas somente Espíritos
humanos.” (Allan Kardec, Livro dos Médiuns,
pt. II, cap. XXV, nº 283, q. 36ª.)
Por fim,
mesmo as percepções dos médiuns extáticos,
dando conta de “cidades espirituais”, tampouco podem ser aceitas, visto que essas
“cidades” não existem, que tais
revelações são muito inseguras e que
estão imbuídas de ideias terrestres e
crenças hauridas ao longo da vida
desses médiuns:
“Pareceria,
segundo o relato da santa, que há
cidades no inferno; ela viu ali, ao menos, uma espécie de ruela longa e estreita, como há tantas nas velhas
cidades; ela entrou lá, andando com horror sobre um terreno lamacento, fétido, onde pululavam monstruosos répteis; mas foi
detida em sua marcha, por uma muralha
que barrava a ruela; nessa muralha havia um nicho onde Teresa se
enfiou, sem nem saber como isso aconteceu. (...) Outros viajantes espirituais
foram mais favorecidos. Viram no inferno grandes
cidades em fogo, Babilônia e Nínive, mesmo Roma, seus palácios e seus templos abrasados, e todos os habitantes acorrentados; o
traficante, ao seu balcão,
sacerdotes reunidos com cortesãos em salas
de festins, e urrando em seus
assentos dos quais não se podiam mais arrancar, e levando aos lábios, para matar a sede, taças de onde
saíam chamas. (...) Dispersavam-se em bandos até o horizonte, indo buscar ao
longe, mas em vão, terras mais venturosas, e logo eram substituídos, nos campos que abandonavam, por
outras colônias errantes de danados.
Houve quem visse no inferno montanhas
cheias de precipícios, florestas
gementes, poços sem água,
fontes alimentadas pelas
lágrimas, ribeiros de sangue, turbilhões de neve em desertos de gelo, barcas de desesperados vogando
sobre mares sem praias. Reviu-se
aí, numa palavra, tudo o que os pagãos ali viam, um reflexo lúgubre da terra, uma sombra desmedidamente aumentada de suas misérias, seus sofrimentos naturais eternizados,
e até os calabouços e patíbulos,
e instrumentos de tortura que nossas próprias mãos forjaram.”
(...) Pergunta-se como homens puderam ver essas coisas no êxtase,
se elas não existem. Não é
aqui o lugar de explicar a fonte das imagens
fantásticas que se produzem às vezes com as aparências da realidade. Diremos somente que é preciso
ver nisso uma prova do princípio de que o êxtase é a menos segura de todas as revelações, porque esse estado de
superexcitação não é sempre o feito de
um desprendimento da alma tão completo quanto se poderia crer, e que aí
se encontra bem frequentemente o
reflexo das preocupações da véspera. (...) Os extáticos de todos os
cultos sempre viram coisas em relação
com a fé de que estavam penetrados; não é então surpreendente que
aqueles que, como Santa Teresa, estão fortemente imbuídos das ideias do
inferno, tais como as apresentam as descrições verbais ou escritas e os
quadros, tenham visões que não são,
propriamente falando, senão a reprodução daquelas, e produzam o efeito
de um pesadelo. Um pagão cheio de fé teria visto o Tártaro e as Fúrias, como
teria visto, no Olimpo, Júpiter tendo o raio em mão. (Allan Kardec, O Céu e o Inferno, 1ª parte, cap. IV,
“Quadro do inferno cristão”, nºs 12, 15.)
Pelo que
já vimos, temos resolvida a questão da inexistência de organizações “sociais” –
tais como colônias ou cidades – no mundo espiritual. Com seu raciocínio
sintético, Allan Kardec deixa patente:
(...) É preciso se reportar a este princípio fundamental, de que,
entre os Espíritos, há deles de todos os graus em bem e em mal, em ciência e em
ignorância; que os Espíritos pululam
em torno de nós, e que, quando cremos estar sós, estamos, sem cessar, rodeados de seres que nos acotovelam,
uns com indiferença como estranhos, outros que nos observam com intenções mais
ou menos benevolentes segundo sua natureza. O provérbio: “Quem se assemelha se
assembleia” tem sua aplicação entre os Espíritos como entre nós, e mais ainda
entre eles, se é possível, porque eles
não estão, como nós, sob a influência de considerações sociais. (Allan
Kardec, Revista Espírita, fev. 1859,
“Escolho dos médiuns”.)
As necessidades do corpo acarretam necessidades sociais, que não existem mais para os Espíritos;
assim, para eles, os cuidados (...) que se dão para se proporcionar as necessidades ou as superfluidades da
vida não existem mais. (Allan Kardec, Revista Espírita, abr. 1859, “Quadro da vida espírita”.)
Luiz Gustavo Oliveira
dos Santos
Brasília-DF,
03 ago. 2022.
P. S. – Agradecimentos especiais ao irmão e
amigo Sérgio F. Aleixo, que há muito busca abrir os olhos dos confrades (entre
os quais felizmente me incluo) para essa e outras questões, disseminando valorosamente
o conhecimento espírita embasado em Kardec, de que procuramos, ainda
imperfeitamente, aproveitar, e estimulando a pesquisa constante.
[1] O mesmo se dá com
as chamadas “regiões” de purgação ou sofrimento, tais como o famigerado
“umbral” (descrito em Nosso Lar e
sequências), onde, diz-se, os Espíritos tomam formas animalescas e onde se chega
a beber lama!... Isso nada tem de novo, encontra-se coisa semelhante nas
crenças primitivas dos povos mesopotâmicos sobre a vida depois da morte: “Segundo
as crenças mesopotâmicas, os mortos precisavam atravessar um deserto, montanhas
e um rio e depois descer,
passando pelas sete portas do
mundo inferior. Embora descrito na literatura mesopotâmica como um lugar de escuridão onde os
habitantes se vestiam de penas de aves
e comiam terra, relatos mais
amenos também eram comuns.” (Walton, J; Mathews, V.; Chavalas, M. Comentário Bíblico Atos: Antigo
Testamento. Belo Horizonte: Atos, 2003, p. 625.)